Justiça do Amazonas autoriza que índio tenharim preso seja empossado como cacique de aldeia

Por Elaíze Farias Publicado em: 12/11/2014 às 15:29

A Justiça do Amazonas determinou a transferência dos cinco indígenas da etnia tenharim acusados pelas mortes de três homens na BR-230 (Transamazônica) da cadeia no município de Lábrea, no sul do Estado, para um território onde vivem índios isolados, a reserva Hi-Merimã. Também autorizou que um deles, Gilvan Tenharim, seja empossado como novo cacique, em festa celebrada na sua aldeia, na Terra Indígena Tenharim. Outro indígena preso, Domiceno Tenharim, foi liberado para participar do principal ritual dos tenharim, a Festa do Mboatawa.

Gilvan Tenharim assumirá a chefia como cacique da aldeia Kampinhu´ú, no lugar do pai, Ivan Tenharim, morto ano passado. Ele é o filho mais velho de Ivan e irmão de Gilson, que também está preso.

O secretário municipal de povos indígenas de Humaitá, Ivanildo Tenharim, disse à agência Amazônia Real que o período das festas será de 10 dias. Este será o prazo que os dois indígenas poderão ficar nas aldeias. Depois, retornam para a Terra Indígena Hi-Merimã.

A Festa do Mboatawa, composta, entre outros, por cerimônias de casamento e ritos de iniciação de passagem para a vida adulta, tradicionalmente ocorre em julho, mas foi suspensa devido à prisão de Domiceno Tenharim, cacique da aldeia Taboca. Ele havia sido escolhido em 2013 como o organizador do ritual deste ano.

A transferência de Gilvan Tenharim, Gilson Tenharim, Domiceno Tenharim, Valdinar Tenharim e Simeão Tenharim da cadeia do município de Lábrea para a Terra Indígena Hi-Merimã foi autorizada no início deste mês pelo juiz Jéferson Galvão de Melo, titular da Comarca do município de Humaitá, onde está localizada a Terra Indígena Tenharim.

Jéferson Galvão de Melo atendeu um pedido da Procuradoria da Funai (Fundação Nacional do Índio), que assumiu há dois meses a defesa dos cinco indígenas no lugar da Defensoria Pública da União (DPU). O advogado do CIMI (Conselho Indigenista Missionário), Adelar Kupsinski, continua na assistência aos índios.

A Terra Indígena Hi-Merimã faz parte da jurisdição de Lábrea. Da sede do município até a reserva, são cerca de oito horas de viagem de voadeira (pequena embarcação de motor) pelo rio Purus. Não há acesso via terrestre. A reserva é ocupada por populações de índios isolados. No local, a Funai mantém uma base da Frente Etnoambiental, onde servidores se revezam no trabalho de monitoramento.

Em nota enviada à agência Amazônia Real, o Ministério Público do Estado do Amazonas disse que a promotoria de Humaitá deu parecer favorável à solicitação da Procuradoria da Funai de transferir os cinco índios tenharim para que eles pudessem participar de rituais na aldeia. Segundo a nota, a decisão não foi monocrática (apenas do juiz).

Na sua solicitação, segundo o MPE, a Procuradoria da Funai informou que a ausência dos indígenas no ritual ocasionaria “graves consequências para a aldeia toda, inclusive com o risco de suicídio coletivo entre os índios”.

“Foi no sentido de atender a questão cultural indígena e evitar mortes que o MP-AM se manifestou de forma favorável ao pedido da Funai, mas reforça que o posicionamento do órgão não representa, de forma alguma, impunidade, visto que o MP-AM já denunciou os cinco indígenas pelos assassinatos dos três homens não índios, e que o processo do caso tem tramitado de forma regular na Comarca de Humaitá, caminhando para o julgamento”, disse nota da assessoria de imprensa do Ministério Público do Estado do Amazonas.

Na nota, o MPE informa que a “participação dos indígenas no ritual também não coloca em risco a integridade física deles, até pelo fato de que o local onde será feito o evento é isolado, e explica que não há risco de fuga deles, visto que os cinco serão acompanhados pela Funai”.

Em entrevista à agência Amazônia Real, o juiz Jéferson Galvão de Melo disse que optou por não dar liberdade para os indígenas, como pediu inicialmente a defesa, para evitar “uma grande repercussão na cidade”.

“Não há ambiente para se soltar. Poderia ocorrer uma desordem generalizada. As famílias dos mortos não têm nenhuma dúvida que foram eles e se soltá-los no atual momento poderia ocorrer manifestação. Mas também não havia a menor condição de mantê-los no lugar (cadeia) onde estavam. Ali não tem presídio e tinha a questão da segurança. Então decidi pela transferência para outra área. A Funai e a família optaram pela terra dos índios Hi-Merimã. Eles serão entregues à Funai e caberá ao órgão monitorá-los”, disse Jéferson Galvão de Melo.

Ivanildo Tenharim, 35, disse à Amazônia Real que, apesar de ser em uma área de difícil acesso, a Terra Indígena Hi-Merimã é “melhor do que cadeia”.

“Eles ficarão sob a custódia da Funai. Toda vez que o juiz precisar ouvi-los a Funai será responsável por eles. Vai ficar complicado para visitá-los, mas pelo menos a família poderá fazer isso de vez em quando”, disse Ivanildo.

O secretário afirmou que, até nesta terça-feira (11) esperava “resposta” da Funai a respeito da operacionalização da transferência dos indígenas.

Nos próximos dias 10 e 11 de dezembro, o juiz Jéferson Galvão de Melo realizará a fase de depoimentos das testemunhas de acusação e de defesa para decidir se os indígenas vão a julgamento de júri. Ele disse que o julgamento deverá ocorrer em Manaus. “Aqui em Humaitá não tem clima para esse julgamento, pois corre o risco de não ser justo e isento. O mais prudente é transferir para Manaus”, disse o juiz.

Os cinco indígenas são acusados de homicídio, sequestro e ocultação de cadáver de Stef Pinheiro, Luciano Freire e Aldeney Salvador. Os três homens desapareceram no dia 16 de dezembro passado na rodovia BR-230 (Transamazônica), no trecho dentro da Terra Indígena Tenharim Marmelos, que fica no município de Humaitá, no sul do Amazonas, a 591 quilômetros de Manaus. Eles negam serem os autores das mortes dos três homens.

Decisão revolta famílias

A decisão da Justiça de Humaitá pela transferência de local de prisão dos cinco indígenas tenharim, além da autorização para que eles participem de um ritual na aldeia Marmelos, revoltou os familiares dos mortos Stef Pinheiro de Souza e Luciano Freire.

A viúva de Luciano Freire, Adriana Lopes Freire, 28, disse que as famílias pretendem “fechar a estrada” no próximo dia 16.

“Nunca vi índio preso em aldeia. Não aceitamos essa decisão por isso vamos pedir que o juiz volte na sua decisão. Queremos que as viúvas e os filhos também sejam atendidos. Para os índios, têm tudo. Para nós, ninguém olha. Saiu na mídia que o governo prometeu ajudar as famílias e até agora não recebemos nada. Não temos ajuda de custo, nem cesta básica”, disse a viúva. Segundo Adriana, desde a morte do marido, os filhos Luigi, de três anos, e a Aliandra, de 10, passam por tratamento psicológico.

Irisneia Santos Azevedo de Souza, 37 anos, viúva de Stef Pinheiro de Souza, disse que é contra a transferência e a autorização para que os índios participem de um ritual na aldeia. Segundo ela, a população de Humaitá está revoltada com a decisão judicial, que acontece no momento em que a cidade se prepara para celebrar a missa de um ano das mortes dos três rapazes.

“Desde que recebemos essa notícia da decisão da Justiça não durmo direito. Sinto dor de cabeça e estou nervosa e tomando remédios. É um pouco caso com a vida do meu marido, que está enterrado. Foi através de um ritual, segundo a Polícia Federal, que um pajé mandou pegar os meninos para vingar a morte do cacique. Então, voltou na memória aquele sofrimento do período que eles estavam desaparecidos. Deixar os índios acusados sair da cadeia é uma temeridade. Eles vão fugir. E o juiz falou nessa possibilidade. Por que um branco pode ficar na prisão até a sentença e um índio não?”, afirmou Irisneia de Souza.

Segundo o advogado Carlos Terrinha de Souza, que defende as famílias dos mortos, a decisão do juiz foi monocrática e não cabe recurso da parte da acusação. “Não cabe da minha parte ingressar com um recurso pois sou assistente da ação penal. A decisão é monocrática do juiz de Humaitá, então cabe recurso do Ministério Público ao Tribunal de Justiça para reverter a decisão”, disse o advogado.

Carlos Terrinha afirmou que a população de Humaitá está revoltada com uma possível fuga dos índios numa eventual transferência deles para aldeia Marmelos.

“Com relação ao clima de revolta na cidade, estamos peticionando o procurador geral Fábio Monteiro para enviar uma força-tarefa para Humaitá e não deixar a população da cidade na berlinda. A população está revoltada porque os índios sairão da cadeia para participar de uma festa de caciques. Isto é muito temerário no atual momento do processo criminal”, afirmou.

Custódia da Funai

Procurada pela reportagem, a Funai disse por meio de sua assessoria de comunicação que o pedido de transferência dos indígenas tenharim para o regime de semiliberdade fundamentou-se no parágrafo único do artigo 56 do Estatuto do Índio. O parágrafo diz que “as penas de reclusão e de detenção serão cumpridas, se possível, em regime especial de semiliberdade, no local de funcionamento do órgão federal de assistência aos índios mais próximos da habitação do condenado”.

“Entretanto os indígenas permanecem custodiados pelo Estado em regime de semiliberdade”, disse nota da assessoria.

A Funai foi questionada sobre o planejamento da transferência dos indígenas para a reserva Hi-Merimã mas não se pronunciou. Respondeu apenas o seguinte: “Cumprindo o papel desta Fundação de garantir o direito dos indígenas, e na busca de preservar a integridade física dos índios que estão presos pelo caso de Humaitá, a Funai não irá prestar declarações, nem detalhar a ação que envolve a transferência deles”.

O advogado Adelar Kupsinski, que também defende os cinco tenharim, disse que a primeira solicitação foi para que os indígenas fossem soltos e pudessem permanecer em suas aldeias. Segundo Kupsinski, ninguém pode ser considerado culpado sem uma sentença transitada em julgado.

“Os índios estão presos por um período excessivo, dispõem de residência fixa, têm bons antecedentes e de forma alguma pretendem atrapalhar a instrução processual e as investigações. Até porque os índios, através de diversas cartas, têm afirmado de que não são os responsáveis pelo ocorrido com os três não índios e que a investigação policial é falha. Os índios confiam na justiça brasileira”, disse o advogado.

Tenharim se mobilizam

A Festa de Mboatawa é formada por várias cerimônias, entre casamentos e rituais de iniciação. Tradicionalmente, ela é realizada em julho, mas em 2014 foi suspensa devido à prisão de Domiceno, que em 2013 foi escolhido para ser o organizador da festa. Mboatawa significa na língua tenharim “castanha na poqueca”, cujo preparo é feito na folha de bananeira.

Ivanildo Tenharim disse que, costumeiramente, a festa dura 30 dias, mas será encurtada em 2014. Não havia possibilidade de Domiceno ser substituído, segundo Ivanildo, pois a festa “não sairia da forma como ele planejou”.

Já Gilvan Tenharim vai assumir como cacique da aldeia Kampinhu´ú. Desde sua prisão, a chefia da aldeia vem sendo assumida interinamente por seu tio. Contudo, após o ritual, ele deverá retornar para a Terra Indígena Hi-Merimã.

“Pelo menos lá eles ficarão em semiliberdade, sob vigilância da Funai. E terão um mínimo de estrutura”, disse Ivanildo, que desde a prisão dos cinco rapazes e as consequências do conflito envolvendo indígenas e não indígenas em função da repercussão do caso, tem atuado como o principal interlocutor entre os tenharim e os órgãos públicos federais, incluindo Ministério da Justiça, Funai e Procuradoria da República.

“Estou fazendo viagens para tratar de vários assuntos, desde a prisão dos meninos até a situação que estamos vivendo. Queríamos resolver a prisão e conseguimos que eles não fossem para Manaus. Só começamos a ter algum resultado em relação a eles quando a Funai entrou. Antes, as autoridades não queriam ouvir a Funai. Só mandavam generais, que não sabiam conduzir”, disse.

Problemas na saúde

Ivanildo Tenharim afirmou que uma de suas lutas mais recente tem sido resolver o atendimento à saúde dos indígenas do sul do Amazonas. Desde o final de dezembro, quando a sede da Casa de Saúde Indígena (Casai) foi incendiada, os indígenas de diferentes etnias (tenharim, jiahui, torá, parintintin, miranha, mura) atendidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) estavam sem um local para o alojamento durante tratamento de saúde em Humaitá.

“Há dois meses conseguimos alugar dez quartos em um hotel onde os doentes ficam hospedados. Mas o local não é adequado, não tem serviço de plantão. Desde os conflitos, a equipe de saúde foi reduzida pela metade. São apenas 30 profissionais de saúde, entre eles um médico cubano, para atender uma população de três mil indígenas”, disse Ivanildo.

Conforme o indígena, a dificuldade tem sido encontrar um terreno para construção da nova sede da Casai. “A dificuldade também tem sido agendar atendimento à saúde de média e alta complexidade”, afirmou.

O ano letivo está se normalizando. As aulas do ensino médio e superior se adequaram ao calendário e “o preconceito tem diminuído”, segundo Ivanildo.

Ele afirmou também que o clima de animosidade contra os tenharim tem reduzido. “Em Humaitá, a população está mais calma e se relaciona normalmente com muitos de nós. O clima só continua um pouco ruim em Santo Antônio do Matupi (distrito localizado no KM-180 da Transamazônica, vizinha da Aldeia Marmelos) e em Apuí”, disse ele.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Elaíze Farias

Cofundadora da Agência Amazônia Real e editora de conteúdo. É referência em reportagens sobre povos originários, populações tradicionais, denúncias de violações de direitos territoriais e direitos humanos, crise climática, violências socioambientais e impactos de grandes empreendimentos na natureza e nas populações amazônicas. Entre as premiações recebidas, está o Prêmio Imprensa Embratel de 2013. Em 2021, foi homenageada no 16º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), junto com Kátia Brasil, também fundadora da Amazônia Real. Em 2022, recebeu o Prêmio Especial Vladimir Herzog. É jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

3 Comentários

Douglas Vieira disse:
21/11/2014 às 19:04
lugar de assassino e bandido é na cadeia esses indios tem que permanecer na cadeia o que fizeram foi uma covardia o povo não pode se calar!!! JUSTIÇA!!! #CADEIA NESSES BANDIDOS
Responder
João Cirino Gomes disse:
20/11/2014 às 07:31
“Desde que recebemos essa notícia da decisão da Justiça não durmo direito. Sinto dor de cabeça e estou nervosa e tomando remédios.
Sou solidário com sua perca, mas que tem haver a liberdade dos índios com sua dor de cabeça e perca de sono?
Quer dizer que se os índios fossem para a cadeira elétrica, mesmo se dizendo inocentes a senhora vai sarar e dormir igual um anjinho? Tenha a santa paciência!
É preciso aprender o significado da palavra respeito! Que o cidadão faria se tivesse sua casa invadida? Pois bem, a aldeia é a casa do indio, e a floresta é seu quintal!
Responder
João Cirino Gomes disse:
20/11/2014 às 06:46
Invadem as terras dos índios, e querem que eles permaneçam calados. Eu pergunto como vc agiria se alguém invadisse sua casa? A aldeia é a casa do índio e a floresta é o quintal do índio!
As cadeias e presídios estão superlotados, mas só de pobres, os piores bandidos que são políticos continuam desviando superfaturando assassinando e se enriquecendo ilicitamente, mas permanecem impunes, pois tem a lei de imunidade e o foru privilegiado para acobertá-los!
Responder