Era uma água de cadáver

30/06/2025 as 08:00
Antônio Monteiro no porto de sua casa no rio Abacaxis, na comunidade Monte Horebe. Seu filho Anderson foi uma das vítimas do massacre, em 2020. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Quase cinco anos após o brutal episódio que ficou conhecido como Massacre do rio Abacaxis, entre os municípios de Nova Olinda do Norte e Borba, no Amazonas, ribeirinhos e indígenas permanecem traumatizados e à mercê de ilícitos ambientais praticados por invasores e traficantes. Em agosto de 2020, uma série de episódios violentos, iniciados após um conflito envolvendo uma autoridade do governo estadual, desencadeou uma represália desproporcional por parte de policiais. A incursão sem planejamento resultou em mortes violentas e torturas de moradores inocentes, entre eles dois jovens indígenas Munduruku. As feridas da chacina ainda estão abertas, e a insegurança persiste em um rio que, apesar da aparente tranquilidade, tornou-se palco de crimes e abandono das autoridades.


Por Elaíze Farias e Bruno Kelly (fotos)
compartilhe

Comunidades do rio Abacaxis (AM) – Antônio Monteiro lida há cinco anos com a morte violenta do filho, da nora e do neto com angústia e coração apertado. A revolta sempre dá sinais de que vai romper-se a qualquer lembrança daquele episódio sangrento. Aos 72 anos, ele não se conforma com a demora da resolução do caso e com a indiferença das instituições públicas com as populações que vivem nas comunidades do rio Abacaxis. Seu maior desejo é por uma punição à altura dos crimes. “O que mais quero é que os assassinos sejam presos. Que eles paguem pelo que cometeram. Não paga, mas alivia”, desabafa Monteiro, com olhos marejados.

Em 5 de agosto de 2020, abordados por oito policiais militares na comunidade ribeirinha Monte Horebe , no rio Abacaxis, e levados em uma embarcação, o filho de Antônio, Anderson Monteiro, e sua nora Vandrelânia Araújo, ambos de 34 anos, foram torturados por várias horas antes de serem mortos com tiros de fuzil. Anderson teve a cabeça mutilada. Matheus, de 15 anos, enteado de Anderson, morreu em decorrência de múltiplas perfurações de arma branca em várias partes do corpo. Segundo relatório do inquérito da Polícia Federal, obtido pela Amazônia Real, policiais submeteram Matheus a “intenso sofrimento na frente da mãe e do padrasto”.

Os corpos dos familiares de Monteiro ficaram boiando nas águas do rio Abacaxis por mais de uma semana. Eles foram jogados com pedras nos pés para não serem encontrados. 

Admilson Silva dos Santos, 39 anos, de apelido Macaco, que acompanhava Anderson e Vandrelânia, ainda sobreviveu por mais um dia, após presenciar seus amigos serem torturados e mortos. Ele foi visto algemado em uma embarcação por uma testemunha e teria aceitado dar informações aos policiais. Mesmo assim, ele desapareceu e seu cadáver nunca foi encontrado. A constatação mais óbvia é que ele também foi assassinado.

Embora tenham sido encontrados dois dias depois, os corpos dos familiares de Antônio Monteiro foram resgatados apenas a partir de 11 de agosto de 2020. Quando imagens dos corpos passaram a circular na internet, registradas pelos próprios ribeirinhos, policiais tentaram pressionar os comunitários para que dissessem onde era esse local. 

Dia após dia, policiais com balaclavas (capuz que deixa apenas os olhos à mostra) iam à comunidade ribeirinha Monte Horebe para pressionar pessoas como o comunitário Frank Oliveira. Ele foi intimidado durante vários dias por policiais para que “confessasse” onde estariam os corpos dos três ribeirinhos. Com receio de ser incriminado sem culpa, ele negou ter a informação.

“Eles vinham todos os dias. O ‘meu café da manhã’ já era a lancha deles chegando no porto. Diziam: ‘bora lá mostrar os corpos’. Eu falava: ‘Não, capitão, eu já falei que não sei de corpos’. Passaram três dias aqui, me pressionando. Eles diziam que queriam limpar o rio.” 

Rozineide Barbosa, esposa de Frank, lembra de ter sido obrigada a se ajoelhar e por as mãos na cabeça. Um dos policiais lhe apontou uma arma. Ela acreditou, por um momento, que seu marido e filhos seriam mortos. Seu pai chegou a ser levado pelos policiais, mas foi devolvido. “A gente não conseguia dormir com estrondo, som de metralhadora. A gente tinha medo de soltarem bomba aqui”.

Apenas cinco anos depois, a investigação do Massacre do rio Abacaxis foi concluída. Em maio passado, a Polícia Federal informou o indiciamento de 13 policiais, entre eles o ex-secretário estadual de Segurança Pública, Louismar Bonates, e o ex-comandante da Polícia Militar, Ayrton Norte, do primeiro mandato do governador Wilson Lima (União Brasil). Após denúncia do Ministério Público Federal (MPF) no Amazonas na 2ª Vara da Justiça Federal, eles se tornaram réus (leia mais sobre o assunto abaixo) pela série de assassinatos.

Hoje, a tranquilidade ainda é frágil no rio Abacaxis. As feridas permanecem abertas e a população traumatizada não esquece da chacina. Naquele início de mês de agosto de 2020, enquanto tentavam se isolar e se proteger da pandemia da covid-19, indígenas e ribeirinhos viveram semanas encurralados e sitiados em seu próprio território, com medo de serem mortos por policiais militares do Amazonas que entraram no rio para vingar a morte de dois colegas com o pretexto de combater o tráfico de drogas.

Várias pessoas de diferentes comunidades foram torturadas, entre elas uma criança que foi trancada em um freezer. Seis ribeirinhos e dois indígenas Munduruku foram assassinados. Dois destes corpos continuam até hoje desaparecidos. Corpos jogados no rio contaminaram as águas dos ribeirinhos e indígenas durante semanas.

“Era uma água de cadáver”, lembra uma ativista de direitos humanos que vivenciou aqueles dias de terror na aldeia Terra Preta, dos indígenas Maraguá. Ela passou a ser posteriormente ameaçada e hoje está em programa de proteção de testemunha.

Anos sob ameaça

Amanhecer no rio Abacaxis, na comunidade Monte Horebe, entre Nova Olinda do Norte e Borba, no Amazonas. (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Em abril deste ano, a reportagem da Amazônia Real esteve em comunidades do rio Abacaxis. A conclusão da investigação, o indiciamento dos denunciados e a denúncia na Justiça são as respostas que as organizações de apoio às comunidades do rio Abacaxis mais cobravam. A demora na finalização da investigação foi denunciada pelos moradores e por organizações de apoio às comunidades, que unificaram sua mobilização conjunta na criação do Coletivo pelos povos do Rio Abacaxis. Mas enquanto esperavam por alguma resolução, os ribeirinhos viram outras ameaças se fortalecer na região.

Afluente do rio Madeira, o rio Abacaxis é calmo e tem uma floresta densa ao redor. São de quatro a cinco horas de viagem até as comunidades em uma voadeira relativamente veloz. Mas a sensação de paz é agridoce. Lideranças das comunidades denunciam aumento de pesca predatória, caça ilegal, tráfico de drogas e expansão de garimpos. O local foi tomado por um sistema econômico baseado em atividades ilegais que não operam isoladamente, intensificando o perigo crescente dos delitos ambientais.

Vários trechos de rios e igarapés estão inacessíveis para entrada de moradores. O cultivo de drogas ilícitas [sobretudo cannabis] está se expandindo, tornando-se atrativo para quem tem poucas perspectivas de sustento. O tráfico virou um dos principais motores da destruição ambiental na região, fonte de violência e insegurança ao modo de vida das populações tradicionais. E não há sinal algum de atuação das forças de fiscalização ou de proteção às comunidades, um reflexo de que a região saiu do radar e foi esquecida pelo Estado brasileiro.

“Esse rio [Abacaxis] é muito perseguido. O tempo de agora, de maio em diante, toda noite, é barco pequeno, barco grande, de pescar e de caçar. Pegam quantidade grande e levam peixe. Se eles [invasores] puderem acabar, acabam. Não estão nem aí. Eles não moram aqui. Os barcos saem cheio de peixe e de [carne] de caça. E ainda tem o garimpo”, diz o líder indígena Teodoro Reis, do povo Maraguá, à Amazônia Real.

O vice-tuxaua da aldeia Terra Preta, do povo Maraguá, Teodoro Reis, sentado em uma embarcação à margem do rio Abacaxis (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Teodoro Reis, que é vice-tuxaua da aldeia Terra Preta, é testemunha do antes, durante e depois do Massacre do rio Abacaxis. Em 2020, ele ficou confinado na aldeia junto a outros indígenas. Não por causa da pandemia do novo coronavírus. Estavam proibidos de sair pelos policiais. O indígena chegou até mesmo a ser alvo de fake news com uma foto sua divulgada erroneamente. Até hoje, ele raramente sai da aldeia.

O líder indígena conta que as famílias Maraguá ficaram com fome e obrigadas a tomar água suja. Sem poder caçar ou pescar. Somente após semanas retidos, passaram a receber provisões (água e alimento) enviadas por organizações de direitos humanos, como o Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e o Ministério Público Federal. “A gente ficava com medo de sair, porque se eles topassem conosco, matavam mesmo”.

Dia de terror

Moradia abandonada na comunidade Monte Horebe. A região ficou marcada pelo evento criminoso conhecido como Massacre do rio Abacaxis (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

O 5 de agosto de 2020 sempre será lembrado como um dia sangrento na história dos moradores do rio Abacaxis. Policiais militares invadiram moradias sem mandado judicial, destruíram plantações e torturaram homens, mulheres e crianças. 

Já de manhã, por volta de 7h20, os irmãos Josimar e Josivan Moraes Lopes, indígenas Munduruku, de 25 e 18 anos de idade, respectivamente, seguiam viagem pelo rio Mari-Mari, divisa com o rio Abacaxis, na Terra Indígena Kwatá Laranjal, quando foram abordados por oito policiais militares do Batalhão Ambiental. Eles não sabiam, mas estava em andamento uma das mais violentas operações militares que se tem notícia no Amazonas. Os irmãos foram parados em um trecho do rio Mari-Mari chamado Laguinho do Bem Assim e executados ali mesmo, sem entender direito o que acontecia ao redor.

Josivan, que pilotava a rabeta, foi o primeiro a ser morto. Ele tentou saltar da embarcação para o rio, mas acabou sendo alvejado. Os policiais afundaram a embarcação dos indígenas e ocultaram os cadáveres. Seus restos mortais foram encontrados pelos próprios Munduruku, quando sentiram a demora do retorno dos dois, cujo destino era Nova Olinda do Norte. O corpo de Josivan foi esquartejado e apenas o crânio foi resgatado, quase 20 dias depois.

Foi naquela tarde que o casal Anderson Monteiro e Vandrelânia Araújo, o adolescente Matheus Cristiano Araújo Filho, de 15 anos, e o amigo deles, Admilson Silva dos Santos, terminaram de almoçar na comunidade ribeirinha Monte Horebe e desceram em sua rabeta pelo rio Abacaxis. Anderson se despediu do pai, Antônio Monteiro, com a intenção de seguir para Nova Olinda do Norte. Pela manhã, ele e a companheira dedicaram horas na extração de óleo de copaíba para vender na cidade. Matheus, filho de Vandrelânia e enteado de Anderson, ajudava. Naquele momento, o rio Abacaxis já era um cenário de violência que aterrorizava as famílias, mas os quatro não faziam ideia do nível de brutalidade.

“A gente sabia que a polícia estava na área. Falei pro meu filho ter cuidado. Ele disse que não tinha nada a temer porque não devia nada. Concordo com ele. Quem não deve, não teme. Eu não devia, então não precisava temer”, lembra com emoção Antônio Monteiro, sentado no banco de sua casa.

No mesmo dia 5, também foi executado Eligelson de Souza da Silva, 22 anos, quando ele quis fugir dos seus torturadores, na comunidade Santo Antônio do Lira. O rapaz e pessoas de sua família foram ameaçados de terem seus corpos queimados, quando policiais despejaram gasolina neles.

Segundo relatório da Polícia Federal, os policiais militares tentaram forjar o uso de arma de fogo para desfazer a cena do crime, e justificando que a morte ocorreu em legítima defesa. A investigação da PF constatou que Eligelson morreu atingido nas costas, e que ele estava desarmado, quando tentava fugir dos policiais após longas sessões de tortura. Laudo do Instituto Médico Legal indica que os policiais também forjaram prestação de socorro, fazendo suturas nas marcas de tiro.

Em 6 de agosto, Benahim da Silva Freire, 26 anos, de apelido Bena, desapareceu. Ele saiu da comunidade Novo Horizonte. Havia suspeita de que havia cultivo de Cannabis sativa em seu terreno. Segundo a PF, Benahim morreu no mesmo dia, ao ser abordado por policiais e questionado sobre envolvimento com tráfico. É mais um dos corpos nunca encontrados.

Atritos e conflitos

A lancha Arafat, que participou de pescaria ilegal e foi usada em operação policial no rio Abacaxis (Foto: Divulgação/Anera) e Saulo Rezende Costa, ex-secretário executivo do Fundo de Promoção Social, e Erradicação da pobreza praticando pesca (Foto: Reprodução internet).

A operação truculenta nas comunidades foi uma represália a uma ação malfadada que resultou na morte de dois policiais – Márcio Carlos de Souza e Manoel Wagner Souza – em conflito com supostos traficantes. Mas essa operação só ocorreu porque, em 24 de julho de 2020, o então secretário executivo do Fundo de Promoção Social do governo do Amazonas, Saulo Moyses Rezende da Costa, e seis acompanhantes, viajavam nas lanchas Arafat e Dona Dorva para praticar pesca esportiva sem licença ambiental e sem autorização dos comunitários, em plena pandemia da covid-19. Saulo e seus amigos foram proibidos pelos indígenas Maraguá e ribeirinhos de continuar. Em julho de 2020, o Amazonas enfrentava uma forte onda da doença, com quase 90 mil casos de infecção e mais de 3 mil óbitos desde o início da pandemia; a estrutura hospitalar do estado sofria um colapso.

O incidente gerou um conflito no qual Valdelice Dias da Silva, mais conhecido como Bacurau, morador de uma das comunidades ribeirinhas [que também se chamava Terra Preta] teria atirado no ex-secretário. Saulo Moysés chegou a ser ouvido no inquérito e o laudo da ocorrência que sofreu foi avaliado pela perícia técnica. Saulo não foi indiciado no inquérito da PF.

Segundo relatos obtidos pela PF, ele prometeu “buscar bala” quando levou “um tiro de raspão” no ombro, desferido por Bacurau. “Na mídia local, Saulo foi tratado como vítima e os ribeirinhos como vilões”, diz trecho do relatório da PF. 

Em boletim de ocorrência do dia 27 de julho de 2020, Saulo afirma que foi “impedido de entrar por líderes da comunidade autodenominados Bacurau e Maria”. Ele relata que “vários milicianos, sob a ordem de Bacurau, cercaram as duas embarcações, estando os mesmos fortemente armados com armas de fogo, arma branca e tochas de fogo”. Após uma discussão, Saulo teria levado um tiro no ombro, mas o projétil foi retirado ainda no barco por um médico que fazia parte do grupo.

Naquele mesmo dia 27 de julho, o então secretário estadual de segurança Louismar Bonates solicitou do coronel Ayrton Norte, em ofício, o envio de equipe de Comando de Operações Especiais (COE) e do Batalhão Ambiental da PM a Nova Olinda do Norte com missão de averiguar “a suposta tentativa de homicídio contra o secretário Saulo Moysés Rezende da Costa”. O plano foi intitulado “Operação Lei e Ordem”.

Um grupo de policiais sem fardamento chegou na região do rio Abacaxis, na  lancha Arafat, a mesma usada por Saulo. Ribeirinhos ouvidos pela Amazônia Real afirmaram que eles acharam que os policiais fossem “turistas”, por estarem vestidos como civis. No dia 3 de agosto, em um conflito com moradores da comunidade ribeirinha Terra Preta [que hoje está desativada], dois PM foram mortos; outros dois ficaram feridos.

Conforme relatório da PF, o procurador da República Fernando Merloto, do Ministério Público Federal no no Amazonas, alertou antecipadamente, ao menos quatro vezes, sobre o clima de tensão no rio Abacaxis. Mesmo assim, Louismar Bonates autorizou a entrada de tropa policial “em condições consideradas temerárias” sem coordenação com outros órgãos, como PF e Ibama, e disse que “daria conta sozinho”.

Quando policiais abriram fogo contra os moradores, o objetivo real era retaliar conhecidos e familiares de Bacurau, apontado como traficante da área pelas mortes de dois policiais.

Relatos que constam no relatório do inquérito da PF indicam que “policiais despejaram combustível no corpo das pessoas, no interior de suas moradias, e a riscar isqueiro, provocando excessivo pavor com objetivo único de dominação e intimidação de todos”. Uma das vítimas disse que foi retirada da cama violentamente, pisoteada, teve cabelos puxados, ameaçada por um arpão e teve corpo molhado de gasolina. Em todas as abordagens, os policiais perguntavam sobre o paradeiro de Bacurau.

Na ocasião, as versões oficiais da Secretaria Estadual de Segurança Pública criminalizam os moradores, incluindo os acusados de tráfico, e atribuíram as mortes aos traficantes, conforme consta nesta nota: “A SSP informa que em todos os casos foram abertos inquéritos policiais e que nenhuma hipótese é descartada, mas há suspeitas de que os crimes sejam praticados pelo bando criminoso local, liderado pelo cidadão identificado como Valdelice Dias da Silva, vulgo Bacurau”.

As tropas do Batalhão Ambiental e da Companhia de Operações Especiais (COE) permaneceram no rio Abacaxis até que a Justiça Federal mandou suspender a operação em 21 de agosto. “A permanência prolongada da tropa indica que, mesmo com denúncias de abusos, não houve intervenção adequada por parte do secretário para cessar ou mitigar tais violações. Ao ignorar reiteradas advertências e prosseguir com uma operação reconhecidamente arriscada, o secretário Bonates assumiu o risco de que pudessem ocorrer mortes e violências graves”, diz relatório da PF.

De acordo com o relatório, “depoimentos de testemunhas descrevem com clareza as violências, torturas e ameaças de mal grave sofridas pelos habitantes da Comunidade Santo Antônio do Lira, com crueldade, incluindo contra criança, que foi agredida, chegando a ser imprensada por contra parede por um freezer horizontal e, após, confinada dentro deste equipamento”.

Antônio Monteiro afirma que Saulo Moysés Rezende iniciou a tragédia que abalou as comunidades, quando insistiu em pescar sem direito e em plena pandemia. “Ele achava que tinha todo direito de entrar no rio Abacaxis, sendo ele um secretário de governo, se passar por cima de nós como autoridade. Dias depois, quando foi proibido, o governo destacou uma tropa militar para invadir o rio Abacaxis para prender, humilhar e executar”.

O ribeirinho lembra que sua casa foi invadida e revistada e policiais queriam força-lo a informar o paradeiro de Bacurau, que ele conhecia, mas não via há mais de dois anos.

“Mataram pessoas inocentes que não tinham nada a ver com a história do tráfico, como aconteceu com meu filho, nora e neto. O Anderson era um filho que me ajudava muito. Ele trabalhava na roça e também tirava óleo de copaíba para sobreviver. Ainda sinto trauma com o que aconteceu com ele.”

Monteiro diz que que, apesar do rio Abacaxis ser estigmatizado como “área vermelha’, os moradores são pessoas pacíficas, dignas e necessitadas de direitos e de assistência dos governantes. “A bandidagem pode existir, mas é de quem vem de fora, quem vem invadir”.

Durante a operação, Frank Oliveira, que era tesoureiro da Anera (Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis), teve sua invadida pelos policiais. “Arrombaram minha casa, levaram meu crachá e 45 reais. Aquilo me angustiou porque usaram de violência sem necessidade. Foi um choque para todos, como se a gente não valesse nada. Eu fui ficando com medo de atravessar o rio para pescar, pegar algum alimento, porque eles [policiais] não estavam mais escolhendo. Eles queriam pegar quem encontrasse no caminho”.

Ele também aponta para Saulo Moysés como sendo o pivô da violência que se abateu no rio Abacaxis. “Todos pagaram sem dever. E quem deve, não foi punido. Ele [Saulo] que começou isso e não analisou o terror que aconteceria depois, quando entrou para pescar e pedir polícia para cá”.

Medo da Covid-19

Uma criança indígena do povo Maraguá é vista observando o rio Abacaxis na aldeia Terra Preta (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Aqueles meses de julho e agosto de 2020 foram um período alarmante para os indígenas Maraguá. Aldeias ficaram confinadas e no centro do conflito entre policiais e moradores ligados ao tráfico. Mereré, uma aldeia menor que começava a ser habitada por famílias Maraguá, foi extinta. Moradias foram incendiadas e uma plantação de melancia destruída. Dois indígenas que chegavam no mesmo instante da abordagem policial conseguiram correr para a mata e ficaram horas escondidos até a poeira baixar. Nos últimos meses, líderes Maraguá estão reativando a comunidade.

A situação mais aterrorizante foi vivida pelos moradores da aldeia Terra Preta, que é a principal do território Maraguá. “Chegaram aqui e disseram que estavam para nos proteger, mas que não podia sair ninguém daqui [da aldeia]. Diziam: ‘se nós topar no rio é suspeito, vai ser considerado suspeito, vamos matar’. Assim como eles mataram os meninos no rio. Mataram pessoas que não tinham nada a ver”, diz Teodoro Reis.

Segundo Teodoro, o trauma durou muito tempo e hoje, muitas pessoas ainda sofrem de doenças psicológicas na aldeia. “Alguns ficaram quase doidos. Teve pessoas que endoidaram. Até hoje sofrem consequência. Foi muito cruel.” 

Ele conta desolado como a insistência de autoridades em entrar no rio Abacaxis para pescar naquela ocasião também assustou os indígenas por causa da covid-19. “Era a época da pandemia, estava tudo fechado. Havia um esforço para evitar contato e a contaminação. Não queríamos pessoas de fora aqui, tanto por causa da covid-19 quanto para eles não levarem o peixe e a caça”.

Enquanto ficaram boiando, os corpos inchados e em decomposição contaminaram as águas do rio Abacaxis. Uma defensora de direitos humanos que viajou até a aldeia Terra Preta para acompanhar a situação dos Maraguá relata que todos tomaram água putrefata enquanto os indígenas permaneceram acuados na aldeia, sem poder transitar pelo rio para buscar alimentos.

Depois de semanas na comunidade, ela se arriscou a se retirar quando soube que policiais descobriram sua identidade. De volta a Manaus, passou a sofrer ameaças de morte, tortura e até estupro como represália. Ela foi embora da cidade e está em programa de proteção de testemunha. Esta foi a primeira vez que ela falou com a imprensa.

“A gente não dormia porque não sabia quando alguém [da PM] ia entrar lá e matar todo mundo. A gente organizava as casas e as famílias. Todos ficaram preparados”, lembra a testemunha à Amazônia Real.

A preocupação era agravada com o medo de os indígenas serem infectados pelo coronavírus em uma área onde sequer tinha hospital. Segundo ela, naquele período de terror policial, os moradores de Terra Preta e outras aldeias Maraguá conseguiram escapar da contaminação, mas quem estava em recuperação de contágio anterior teve piora na saúde.

“Teve uma situação de outra aldeia em que eles [moradores] estavam tão desesperados, que foram à noite até a aldeia Terra Preta porque o pajé estava doente. A gente conseguiu ir no dia seguinte. Mas o pajé faleceu depois, porque não conseguiu atendimento”, lembra a ativista. Ela afirma que o número de pessoas assassinadas no episódio do massacre pode ser superior ao divulgado oficialmente, pois muitas famílias ficaram com medo de denunciar.

“Tem essa questão da Polícia Militar, que pra cada policial que você mata, eles matam dez do grupo envolvido na morte. Ou seja, se morreram dois policiais, a expectativa é que sejam 20 pessoas. E pelos relatos que a gente recebeu nesse período, e que a gente ainda recebe, realmente não morreram apenas cinco ou seis. Morreram cerca de 20. Os policiais entraram com facilidade nas comunidades porque não havia nenhum tipo de proteção aos moradores. Eles entraram, ameaçaram, torturaram e mataram”, diz.

Pedido de base de fiscalização

Vista aérea da aldeia Terra Preta, do povo Maraguá, localizada no rio Abacaxis, afluente do rio Madeira, no Amazonas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Conforme relatos dos moradores à Amazônia Real, o rio Abacaxis tem sido, há muito tempo, base de atividades de tráfico e escoamento de drogas para cidades como Nova Olinda do Norte e, principalmente, para Manaus. Segundo eles, as autoridades fazem vista grossa.

“Tem muita denúncia de garimpo lá, entendeu? De vez em quando a PF estoura uma coisa lá, mobiliza helicóptero, mas eles [garimpeiros] voltam quatro dias depois”, relatou uma autoridade policial à Amazônia Real na condição de anonimato.

Ozias de Oliveira, educador, professor e escritor Maraguá, destaca a beleza do rio como um “tapete verde” no meio de uma área que já está destruída. “Estou falando de garimpeiro, de drogas, madeireiros, pescadores ilegais. E o governo brasileiro sabe disso. Vê e não faz nada. O que mantém vivo nesse rio ainda é o povo Maraguá”, afirma.

Esta não é a primeira vez que líderes indígenas e ribeirinhos relatam delitos ambientais no rio Abacaxis. Desde 2021, com apoio do Coletivo pelos Povos do rio Abacaxis, rede formada por diferentes organizações de direitos humanos do Amazonas, pedem uma base de fiscalização móvel na área. Cartas enviadas ao MPF e à Polícia Federal alertam há tempos sobre as ameaças e os crimes ambientais.

“Junto ao temor generalizado dos indígenas e ribeirinhos, foi relatado que invasões no território têm aumentado, o ingresso de barcos pesqueiros, garimpeiros, traficantes e madeireiros se intensificaram com a saída da Polícia Federal no mês de setembro de 2020, pois nenhum tipo de monitoramento está sendo realizado no rio Abacaxis. Eles afirmam que ficaram à mercê dos invasores”, diz trecho de uma carta enviada em março de 2021 à PF e ao MPF.

O pedido foi reforçado em um relatório de 2021 do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) e reiterado pelo Ministério Público Federal. “O que a gente gostaria que acontecesse mesmo era uma proteção aqui dentro do rio, com a balsa móvel da polícia. E eles prometeram que iam providenciar para a gente e nunca aconteceu”, diz o vixe-tuxaua Teodoro Reis.

Um despacho de 2021 do MPF já alertava para a ausência de fiscalização na área, e pedia a instalação da base móvel da PF. “Em que pese o envio de agentes da PF à região, o que se depreende dos fatos acima relatados é que, após setembro de 2020 os povos indígenas e tradicionais do rio abacaxis foram abandonados à própria sorte pelos órgãos de segurança pública federal expostos aos mais diversos cenários de crimes cometidos tanto por particulares, quanto violações da própria polícia estadual do Amazonas que continuam”, diz trecho de despacho assinado pelo procurador da República Fernando Merloto.

Sem demarcação

Detalhe do mapa autodeclarado do território Maraguá, produzido com apoio do CIMI; ao lado, o escritor e liderança Ozias de Oliveira com um livro sobre a cultura do seu povo (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Para Ozias de Oliveira, o rio Abacaxis “serve como celeiro [de drogas] de Manaus”, sobre o qual autoridades têm conhecimento, mas nada fazem para combater. “As autoridades são conscientes disso. Não prendem. Só fazem esse ‘baculejo’ [revista policial], levam o Maraguá para correr mais risco. Só vieram aqui [em 2020] porque alguém atirou neles [nos policiais]”, observa.

A terra dos Maraguá não está demarcada. Existe um pedido de delimitação atualmente na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), mas sem resposta. Os Maraguá possuem apenas um mapa autodemarcado, feito junto com pesquisadores do Conselho Indigenista Missionário (CIMI).

Os dois líderes Maraguá ressaltam que a falta de demarcação favorece crimes ambientais e facilitam a expansão de pesca, caça e tráfico, agravando a vulnerabilidade das comunidades. Para Ozias, se fosse demarcado, o território daria um passo fundamental no combate à ilegalidade.

“Estamos nessa luta desde 2002. A gente sabe que, para ser demarcada, demora. Mas essa nossa terra já demorou muito. Enquanto não for demarcada, as coisas vão continuar acontecendo. O Abacaxis é um rio bom de pesca, de caça, de muita madeira. Então, eles [invasores] sabem e vêm para cá, podem passar onde quiser.”

Monte Horebe é uma comunidade que faz parte do Projeto de Assentamento Agroextrativista (PAE) Abacaxis II. Moram 15 famílias que vivem de roçado e benefícios sociais, mas a principal fonte de alimento é o peixe. 

O líder ribeirinho Frank Oliveira conta que a pesca predatória tem reduzido o pescado. O turismo esportivo ainda é um projeto em desenvolvimento com outras comunidades. Outros delitos vêm de madeireiros ilegais.

“Entram [invasores] sem dar satisfação. Os pescadores entram para fazer aquelas grandes pescas. Tem diminuído nossa fonte de alimento. Isso abate a gente, porque nosso consumo tem limite. O que a gente solicita é uma fiscalização. A gente já solicitou há tempos uma base da Polícia Federal. Antes não existiam tantos predadores. Mas de cinco anos para cá, o negócio foi disparando. São balsas que entram e levam toneladas de peixe e caça.”

A Polícia Federal foi procurada pela Amazônia Real, mas não respondeu às perguntas enviadas, entre elas se há plano de instalar a base de fiscalização no rio Abacaxis. A Funai foi procurada repetidas vezes para informar sobre a demanda de demarcação do território dos indígenas Maraguá, e também não respondeu.

Relatório concluído

À esq, o coronel PM Ayrton Ferreira do Norte recebe a maior honraria da Assembleia do Amazonas, Medalha Ruy Araújo (Foto: Hudson Fonseca/Aleam/17/12/2019) e Louismar Bonates, ex-secretário de Segurança Pública do Amazonas e Coronel da PM na Câmara de Segurança Pública, em evento de governadores no Amapá (Foto: Governo do Amapá/ 28/3/2019).

Em maio passado, a PF divulgou ter concluído a investigação do Massacre no rio Abacaxis, com indiciamento de 13 policiais. Todos os policiais negaram os crimes em depoimento à PF, conforme consta no relatório do inquérito. Dois membros da cúpula de Segurança do Amazonas já haviam sido indiciados em 2023, pelo delegado da PF à frente das investigações na ocasião, Francisco Badenes: o ex-secretário de segurança pública, Louismar Bonates, e o ex-comandante-geral da Polícia Militar, Ayrton Norte; ambos estão na reserva.

Os dois não fazem mais parte do quadro do governo do Amazonas. Em 2022, Bonates e Norte se candidataram aos cargos de deputado federal e deputado estadual, respectivamente, mas não foram eleitos. Ambos se filiaram ao União Brasil.

Os policiais militares são acusados pela PF de torturas, invasões de domicílio, lesões corporais, incêndios, homicídios qualificados, ocultações e vilipêndios de cadáver e afirma que “manter os investigados soltos coloca em xeque qualquer medida profilática de segurança às testemunhas, pois não há garantias de que elas não serão localizadas ou intimidadas”. A PF pede a prisão dos indiciados.

“Ressalto que todos os policiais mencionados negaram qualquer participação nos eventos com resultado morte ou apresentaram versões que alteraram a realidade dos acontecimentos, como no caso específico da morte de Eligelson de Souza da Silva [ribeirinho]. A versão apresentada pelos policiais contrasta com a análise da geolocalização obtida a partir dos dados telemáticos, associada aos depoimentos das testemunhas, os quais fornecem um robusto conjunto probatório que indica indícios de autoria nos homicídios investigados”, diz trecho do relatório do inquérito.

A PF alerta que as 10 testemunhas que prestaram declarações sobre os crimes investigados demonstram um perigo concreto para sua integridade física e psicológica, caso se mantenha em liberdade os policiais militares suspeitos. O relatório do inquérito é assinado pelos delegados Celso Paiva, Thiago Monteiro e Rafael Grummt.

Documentos internos dos órgãos de segurança do governo do Amazonas indicam que mais de 60 policiais foram enviados para a operação no rio Abacaxis. Mas a Amazônia Real ouviu um relato policial afirmando que o número passou de 100.

Alerta de conflitos

Operação da Polícia Federal após o massacre do rio Abacaxis (Foto: Reprodução TV/Rede Amazônica) e lancha entregue em 2021 por Bonates e Norte e que recebeu o nome do PM Manoel Wagner Silva de Souza, que foi morto em agosto de 2020, durante conflito no rio Abacaxis (Foto: SSP AM/2021).

O MPF ofereceu seis ações penais na 2ª Vara da Justiça Federal contra 15 militares. Os dois números a mais, segundo o MPF, foram denunciados em um procedimento específico que apurou a tortura de um líder ribeirinho em um hotel e em um barco em Nova Olinda do Norte.

Em cada denúncia, o MPF requer que os denunciados sejam condenados pelas infrações penais que praticaram, percam os cargos públicos que ocupam na Polícia Militar e sejam condenados a pagar 50 0 mil reais às famílias das vítimas, a título de reparação dos danos morais causados.

Nas denúncias, o MPF afirma que Louismar Bonates “autorizou a deflagração de operações, que, sob o pretexto de combate ao narcotráfico e restabelecimento da ordem na região dos Rios Abacaxis e Mari-Mari, deliberadamente representaram uma vingança perpetrada por policiais militares em razão, inicialmente, do suposto atentado ao Secretário de Estado Saulo Moysés Rezende da Costa e, depois, da morte de dois policiais e ferimento de outros dois agentes”.

“Não se trata de mero cumprimento dos deveres de ofício pelo então Secretário de Segurança Pública, mas sim da liderança de operações realizadas, de forma intencional, com pouco planejamento e ausência de utilização de dados de inteligência, com vistas à implementação dos objetivos traçados (localizar os responsáveis pelo suposto atentado ao Secretário de Estado Saulo Moysés Rezende da Costa e, posteriormente, pelos crimes praticados contra quatro policiais militares), ainda que isso representasse, na prática, uma série de atos de violência policial e violação de direitos humanos”, diz o MPF, nas denúncias.

De acordo com o MPF, Bonates “foi alertado, no mínimo, quatro vezes pelo Procurador da República Fernando Merloto Soave, que atua em ofício de 6ª CCR no Amazonas (ofício indígena), sobre os riscos de uma carnificina decorrente de uma temerária operação policial naquela região e que, por se tratar de área da União, a ação policial deveria ser pelo menos acompanhada pela Polícia Federal e demais órgãos federais”.

O então comandante-geral da PM, Ayrton Ferreira Norte, coordenou a operação em Nova Olinda do Norte. Ao longo da investigação, diz o MPF, “vários policiais militares afirmaram, de forma expressa, que seguiam a uma cadeia de comando e que as questões mais sensíveis e relevantes passavam pelo Comandante-Geral da Polícia Militar”.

Em fevereiro de 2025, a Justiça Federal já havia recebido uma primeira denúncia de ação penal contra três policiais. Eles são acusados de torturar o então presidente da Associação Nova Esperança do Rio Abacaxis (Anera), Natanel Campos da Silva, em Nova Olinda do Norte.

O líder comunitário foi torturado, primeiro em um hotel da cidade, depois na lancha Arafat, sob a alegação que estaria envolvido nas mortes dos dois policiais. Natanael havia se deslocado até a cidade para tentar denunciar o clima de tensão e a violência policial que já pairava sobre as comunidades. Ele chegou a ser sufocado com um saco plástico e foi ameaçado de ter os testículos cortados. Atualmente, Natanael está em programa de proteção de testemunha.

A Amazônia Real apurou que Louismar Bonates entrou com um pedido de habeas corpus para que o processo tramite no Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), medida que se estende também para os demais denunciados. A assessoria de imprensa da Justiça Federal disse que o juiz de primeira instância se manifestou ao TRF1 pela competência do caso e condução do julgamento das ações penais. Por enquanto, segundo a assessoria, o TRF1 determinou o sobrestamento [interrupção] do processo até decisão definitiva sobre a competência e julgamento. Até o momento, segundo a Justiça Federal, ele é o único da lista que já foi comunicado formalmente.

Luta por justiça

  • Vista geral do rio Abacaxis onde em 2020 em plena pandemia ocorreu o evento criminoso que ficou conhecido como Massacre do Abacaxis (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Paisagem do rio Abacaxis, próximo à comunidade Monte Horebe, em Borba (AM). A região ficou marcada pelo Massacre do Rio Abacaxis (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Ribeirinhos remam próximo à comunidade Monte Horebe, em Borba (AM). A região ficou marcada pelo Massacre do Rio Abacaxis (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Criança indígena com galão de água em frente à escola municipal da comunidade Terra Preta, no rio Abacaxis, em Nova Olinda do Norte (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Escola em situação de abandono na comunidade Monte Horebe, em Borba (AM. A região ficou marcada pelo Massacre do rio Abacaxis (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Cachorros na comunidade Monte Horebe, em Borba. A região ficou marcada pelo evento criminoso conhecido como Massacre do rio Abacaxis (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Estrutura abandonada de onde seria uma escola municipal na comunidade Monte Horebe, em Borba (AM), na região do rio Abacaxis (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Casa abandonada na comunidade Monte Horebe, onde morava um líder ribeirinho torturado que entrou para o sistema de proteção de testemunhas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Barco em um furo no rio Mari-Mari, próximo onde foram mortos os indígenas Munduruku, da Terra Indígena Kwatá Laranjal, no município de Borba (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Antônio Gonçalves Monteiro pesca na margem do rio Abacaxis, em frente à sua casa na comunidade Monte Horebe, no município de Borba (AM)  (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Antônio Gonçalves Monteiro observa da janela de sua casa, no rio Abacaxis. Seu filho, Anderson Monteiro, foi assassinado durante o massacre  (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Pôr do sol no rio Abacaxis visto da janela de uma casa na comunidade Monte Horebe. A região ficou marcada pela Chacina do Abacaxis (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).
  • Moradora da comunidade Monte Horebe durante o jantar. A região ficou marcada pela ação criminosa conhecida como Chacina do Abacaxis (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

A demora em esclarecer e punir os autores da chacina e das torturas no rio Abacaxis levou organizações de direitos humanos a cobrar das autoridades urgência na investigação. Um dos mais atuantes tem sido o Coletivo Pelos Povos do Rio Abacaxis, que nos últimos anos tem se mobilizado em denúncias e esforços para que a história do massacre não seja esquecida.

A investigação na PF teve ao menos seis delegados e um episódio controverso com a retirada sumária do delegado Francisco Badenes do caso, ano passado. Organizações do Coletivo denunciaram a medida, afirmando que o afastamento do delegado resultou de interferências políticas. Um relatório do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH) publicado neste ano também questionou a mudança e suspeitou do mesmo motivo. Uma nota em protesto pela saída de Badenes foi enviada ao governo federal, sem resposta.

“A sétima troca de comando nas investigações do massacre do Rio Abacaxis pela Polícia Federal causa enorme preocupação. (…) o delegado substituído estava próximo de encerrar o trabalho de investigação, sendo que sua substituição pode colocar em risco o resultado da mesma”, diz trecho.

Francisco Badenes também esteve à frente das investigações dos assassinatos de Bruno Pereira e Dom Phillips no mesmo período. Seu afastamento repentino por ordens superiores na PF também provocou reações de organizações indígenas do Vale do Javari.

Danos morais coletivos

Frank Oliveira, liderança da comunidade Monte Horebe, no rio Abacaxis, em frente de moradias abandonadas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real).

Em julho de 2024, a procuradora da República Janaína Mascarenhas entrou com uma ação de indenização por danos morais coletivos em favor de ribeirinhos e indígenas de oito comunidades e aldeias do rio Abacaxis, entre elas Laguinho, onde viviam Josivan e Josimar, Monte Horebe, Terra Preta e Santo Antonio do Lira.

O MPF pede condenação da União, governo do Amazonas e Funai ao pagamento de indenização por danos morais coletivos “por danos causados pelas violações, por ação e omissão, respectivamente, dos direitos à vida, à incolumidade física, ao devido processo legal, à segurança, à saúde, ao direito de não ser torturado, ao direito a vedação do desaparecimento forçado”. A ação pede uma indenização de 20 milhões de reais.

Entre os relatos descritos na ação, consta que a PF demorou para entrar na área onde aconteciam as violações e a Força Nacional de Segurança se restringiu a atuar na cidade de Nova Olinda do Norte. Uma equipe do MPF chegou a entrar sem escolta para ouvir os moradores do rio Abacaxis na área do conflito, entre 21 e 25 de agosto de 2020, pois o comando da PF no Amazonas disse que não havia “condições logísticas e de segurança”.

O MPF também aponta falha na atuação da Coordenação Técnica Local (CTL), da Funai, contribuindo para os assassinatos dos dois Munduruku, que não foram informados sobre a operação policial e “mantiveram normalmente a rotina e, assim, acabaram abordados e mortos pelos policiais”.

O CNDH, no relatório da missão que realizou em 2024 nas comunidades dos rios Abacaxis e Mari-Mari, afirma que houve “poucos avanços” na esfera criminal e cível, entre eles na reparação e indenização das vítimas e coletivos afetados. “A ausência do Estado enquanto executor das devidas políticas públicas expõe um abandono da região, aumentando sua susceptibilidade às investidas criminosas contra os povos indígenas e comunidades tradicionais ribeirinhas”, diz o relatório (leia na íntegra).

Ações de indenização e atestados de óbitos

Enterro de vítimas do Massacre do rio Abacaxis. (Foto: Conselho Nacional das Populações Extrativistas/2020) e em abril de 2024, o defensor público federal José Roberto Tambasco participou de missão organizada pelo CNDH)na região de Rio Abacaxis (Fotos: GMFB/GGS -Assessoria de Comunicação Social/DPU).

A Defensoria Pública da União e a Defensoria Pública do Estado do Amazonas preparam ações de reparação individuais para as vítimas, com pagamento de indenizações e pensões.

O defensor público Eduardo Queiroz disse à Amazônia Real que a DPU realiza levantamento no rio Abacaxis para confirmar o número de pessoas, entre aquelas que tiveram familiares assassinados e as que sofreram violência e foram torturadas, além dos desaparecimentos forçados (caso de Admilson e de Benahim). Ele informou que atualmente os defensores estão na fase de elaboração e conclusão das ações.

“Estamos trabalhando com a questão dos vínculos emocionais e socioeconômicos. Alguns dos assassinados estavam com seus pais. Pessoas perderam seus meios de sobrevivência após o assassinato de seus parentes. Contavam com auxílio dessas pessoas. São relatos aterradores sobre violência judicial, execução sumária e práticas de tortura de aterrorizar comunidades inteiras da região”.

Em resposta à Amazônia Real, a Defensoria Pública do Estado do Amazonas informou que acompanha as vítimas e seus familiares desde a data do evento, por meio de visitas in loco, reuniões e atendimentos presenciais e virtuais,” realizando atendimento às vítimas e ajuizando ações judiciais individualizadas de registro de óbito tardio, ações declaratórias de morte presumida sem decretação de ausência, possibilitando que as famílias tenham a certidão de óbito dos seus filhos, irmãos e parentes que tiveram a vida ceifadas durante a violência perpetrada pelos agentes públicos”

A DPE também disse que atua no encaminhamento de pessoas que querem entrar em programas de proteção a testemunhas e vítimas ameaçadas, a exemplo do Provita, articulando com toda a rede de proteção para agilizar o processo de acesso dos interessados ao sistema.

O que dizem as pessoas e órgãos citados nesta reportagem

A Amazônia Real procurou a secretaria de Segurança Pública e o governo do Amazonas com as seguintes questões: se houve procedimento interno para apurar a conduta dos militares e se eles continuam trabalhando em suas respectivas funções. Também foi perguntado o que aconteceu com Bacurau, se ele foi preso ou é considerado foragido – na ocasião do episódio, chegou a ser divulgado que ele teria sido morto pela polícia, versão não confirmada. A Amazônia Real também indagou se o governo se interessaria em se manifestar sobre os indiciamentos da PF aos policiais militares, incluindo os dois comandantes, e as denúncias do MPF e se o governo tem ações de combate ao tráfico e fiscalizações no rio Abacaxis. Até a publicação desta reportagem, não houve resposta.

A narrativa oficial do governo do Amazonas na ocasião da operação policial, em 2020, foi culpar os ribeirinhos pelos crimes e por envolvimento com os traficantes. A versão foi amplamente reproduzida pela mídia local, apesar de relatos conflitantes. Em setembro daquele ano, a Polícia Civil informou ter aberto inquérito e que havia indiciado Bacurau e familiares, além de Natanael. O processo, contudo, saiu da esfera estadual e foi para a justiça federal posteriormente.

A Amazônia Real procurou a defesa de Louismar Bonates, o único citado até o momento pela Justiça Federal após esta receber as ações penais do MPF, mas também não recebeu respostas.

A reportagem não conseguiu encontrar o paradeiro de Saulo Moysés Rezende da Costa, após buscas em diferentes possíveis canais e fontes. O único número de celular dele disponível publicamente, que consta no Boletim de Ocorrência de julho de 2020, dá mensagem de não existente. 

VÍDEO


Este projeto foi desenvolvido em colaboração com o Fundo de Resiliência do GI-TOC, apoiando iniciativas comunitárias para fortalecer a resiliência frente ao crime organizado.

Reportagem Investigativa
Sobre a matéria
Selo Doe
Apoiadores do Amazonia Real
Jovens Cidadãos
Um vírus duas guerras
Ouro do sangue yanomami
O PROJETO BRUNO E DOM

Acompanhe

Melhores Práticas

Trust Project Trust Project

Navegue

  • Home
  • Transparência
  • Quem Somos
  • Sobre
  • Expediente
  • Correções
  • Arquivos
  • Arquivos Jovens Cidadãos
  • Parceiros
  • Apoiadores
  • Imprensa
  • Categorias

    • Meio Ambiente
    • Povos Indígenas
    • Questão Agrária
    • Um vírus e duas guerras
    • Política
    • Economia e negócios
    • Cultura

    Design por Cajuideas

    O website Amazônia Real está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição 4.0 Internacional.