O artista que protestou contra a destruição da Amazônia em 1975

“Música profissão de risco: a dialética de uma visagem estética no reino da clorofila” é o livro biográfico artístico do músico, compositor e maestro amazonense Adelson Santos, de 72 anos. Ele foi um dos pioneiros nos protestos contra a destruição […]

O maestro Adelson Santos da Orquestra Vozes da Ufam. Foto cedida por Bárbara Umbra @umbrafotografia (Instagram)

Por Elvira Eliza França Publicado em: 01/12/2017 às 17:32

“Música profissão de risco: a dialética de uma visagem estética no reino da clorofila” é o livro biográfico artístico do músico, compositor e maestro amazonense Adelson Santos, de 72 anos. Ele foi um dos pioneiros nos protestos contra a destruição da floresta Amazônica, numa época em que poucos se manifestavam em defesa de nosso território. O livro foi publicado pela editora Travessia, em 2012.

Adelson iniciou seu protesto em favor das árvores e da natureza, alertando sobre os riscos do desmatamento e da destruição, quando compôs a música “Não mate a mata”, em 1975, gravada em 1980. A música foi um grande sucesso em Manaus e é cantada até hoje nas manifestações ecológicas. Depois dessa música, Adelson compôs outras músicas que falam sobre a natureza e seus recursos, fazendo alertas sobre a necessidade de se preservar e cuidar dela e também compõe sobre outros temas.

Nascido em 26 de junho de 1945 e criado no bairro de Aparecida, na capital do Amazonas, Adelson viveu a adolescência e a juventude numa época em que a cidade fazia a transição da vida calma e pacata para uma cidade industrial com a Zona Franca de Manaus e aumento da população urbana. Neto de portugueses, filho de marceneiro e de mãe pianista, começou a se interessar pela execução de músicas ao piano quando ainda era criança, mas não recebeu aulas com professora, devido aos preconceitos machistas da época: piano para menino era “coisa de bicha” (p.13). Então, o menino foi tocar violão, instrumento tocado por homens, mas mesmo assim, havia discriminação, pois era considerado coisa de “boêmio, seresteiro, cachaceiro e vagabundo” (p.17).

Sua prática violonística começou com um violão emprestado de um amigo. Quando completou 15 anos, ganhou o próprio instrumento do pai e teve aulas com o instrumento e nas habilidades musicais, trocando informações de harmonias, ritmos e repertório com outros músicos da cidade. Então, organizou um repertório e tocava música na calçada da frente de sua casa com outros moleques da rua. Da calçada foi chamado para tocar em serestas, festas de aniversário, escolas e programa de rádio. Também era chamado para dar aulas de violão. Na juventude participou de vários grupos musicais, entre os quais: a banda “The Rocks”, em 1968, que foi referência musical em Manaus durante vários anos, com apresentações em bares, festas e bailes.

A partitura do maestro Adelson Santos, no violão em apresentação da Orquestra Vozes da Ufam (Foto: Genezivan Queiroz/ Facebook)

No livro em questão, o autor fala sobre as dificuldades pelas quais passou para se tornar músico profissional, e de como se sentiu realizado na música, apesar da profissão não lhe dar o retorno econômico desejado, em comparação com o tempo de dedicação que tinha para seu aperfeiçoamento.

“[…] Tentei ser regatão, chofer de táxi, operador de turbina na Eletronorte, vigia na estação de águas da antiga Cosama, professor de português, vendedor de bijuteria, auxiliar de escritório, âncora de TV, repórter, comerciante de roupas, porém nada disso deu certo, até porque não era mesmo para dar certo. […] A música, apesar dos pesares, faz mais sentido. Por isso me equilibro melhor quando estou dançando na corda bamba da música” (p. 209).

Em vários capítulos do livro, Adelson fala sobre as tentativas de distanciamento e afastamento da música, e de como se sente envolvido por essa arte que dá significado à sua vida. Apesar das frustrações econômicas da profissão de músico, lembra a compensação emocional sentida ao conseguir transformar sentimentos em sons musicais, compartilhados com outras pessoas que o ouvem e apreciam seu trabalho.

“No fluxo do sucesso, atraí as multidões solitárias para participar das minhas emoções e delírios artísticos. E por muitos instantes nós, artistas e público, fomos todos felizes quando atingimos o orgasmo estético durante um show em algum teatro, em alguma praça pública da cidade, em algum festival universitário, ou até mesmo numa quadra de esporte de algum colégio público” (p. 207).

“[…] Até agora não consegui ser sustentado pela produção da minha arte. Pelo contrário, do que investi esperando algum retorno, só me deparei com o buraco negro do prejuízo” (p. 207).

“Não obstante, eu sei que, no fundo no fundo, a coisa que mais me dá prazer de fazer na vida é conviver com a música. A música é o meu centro de gravidade e o meu sentido existencial mais conectado com todas as coisas do universo. Faz parte das minhas entranhas. Fundamenta minha vontade de viver os sonhos mais delirantes e suscita emoções mais abrangentes. Sem a música, certamente eu perderia o rumo da minha história e ficaria por aí ateu e à toa” (p. 208).

Na juventude, para responder às expectativas da família e da sociedade em relação à sua formação acadêmica, Adelson ingressou na faculdade de letras na Universidade do Amazonas, em 1971. Tinha grande interesse pela leitura de livros e passava muito tempo na biblioteca. Depois de formado, viajou de férias para o Rio de Janeiro e decidiu ficar por lá para realizar o curso superior de música. Por não ter recursos financeiros para se manter, passou fome, chegando, inclusive, a sofrer delírios de loucura devido à desnutrição. Quando veio de férias a Manaus estava decidido a desistir do curso, mas numa conversa com o reitor Otávio Mourão, da Universidade do Amazonas (hoje Universidade Federal do Amazonas – UFAM), ganhou uma bolsa de estudos para se dedicar exclusivamente ao curso. Esse apoio deu forças a Adelson para aprofundar mais os estudos musicais e a compor, produzindo seus primeiros discos com suas próprias músicas. Na contrapartida do benefício, comprometeu-se a retornar a Manaus para dar aulas na universidade após se formar, o que fez até o dia em que se aposentou.

Adelson fala com sinceridade sobre diferentes fatos de sua vida: assume seus defeitos e deslizes na juventude e vida adulta, e também denuncia pessoas oportunistas que usufruem do talento artístico de músicos e de outros artistas do país para ganhar dinheiro, oferecendo promessas de sucesso que produzem a esperança da “visagem estética”. Ele fala sobre a importância que o músico sente de ter a experiência de êxtase estético (orgasmo estético) quando se apresenta e recebe a aceitação pública, com aplausos e outras manifestações de carinho e alegria. Conta o que se passa nos bastidores dos shows e gravações; comenta sobre os cachês de pouco valor, quando são pagos; a situação de desvalorização e humilhação que o músico profissional é obrigado a sofrer com a falta de pagamento e as enganações das “ratazanas” que usufruem do talento dos artistas.

O autor ainda apresenta dados sobre as dificuldades que os músicos do passado tinham para gravar discos, recorrendo à alternativa de produzir gravações independentes. Isso, no entanto, significava dispor de recursos econômicos para pagar a gravadora, tendo que vender os discos de mão em mão para recuperar os gastos com a produção. Mas mesmo assim nem sempre o retorno financeiro era garantido, o que fez com que até hoje tenha exemplares de discos não vendidos em seu acervo. Ainda aborda a questão dos direitos autorais, quando compõe música com outros parceiros. Compartilha o sucesso com os apoios recebidos nos meios de comunicação local e é agradecido pelos espaços que sempre recebeu para divulgar suas apresentações e gravações, transcrevendo reportagens e entrevistas no livro. Comenta sobre o feitiço que a música exerce sobre si no “contexto dialético surrealista do Bafão Amazônico”, amado por uns, rejeitado por outros. Contudo, é nele que a selva, a chuva, os rios, os igarapés, e os peixes tornam o mundo no Amazonas com sua identidade própria, criando o “pano de fundo do sonho baré” da “visagem estética”.

Maestro Adelson Santos durante apresentação da Orquestra Vozes da Ufam (Foto: Genezivan Queiroz/ Facebook)

Alguns dados de biografia de Adelson estão inseridos num contexto histórico e social mais amplo, o que possibilita ao leitor uma crítica à sociedade consumista e à crise ética e moral que não é um fenômeno atual. Em alguns trechos o autor insere o leitor na história da música brasileira e na dinâmica social do processo de sua formação profissional. Lembra importância da visão de vanguarda do músico e dos artistas de um modo geral, porque podem expressar mais livremente seus sentimentos e pensamentos para produzir uma crítica social criativa e diferenciada da sociedade. Essa visão cria a ilusão de que a arte pode promover a transformação social, o que ele chama de visagem estética. No entanto, lembra que no contexto capitalista, o artista se vê pressionado a produzir o que é vendido comercialmente. Daí fazer reflexões sobre a profissão de risco do músico “no reino da clorofila”, tomando como base as experiências vivenciadas. Também faz crítica aos estudantes que buscam a formação na universidade, mas se recusam a se dedicar aos estudos e aos compromissos e responsabilidades que o profissionalismo requer.

Adelson conta sobre viagem à Europa, com apoio da Fundação Nacional de Arte – Funarte, e do sucesso de “Dessana, Dessana” na Sala Cecília Meireles, no Rio de Janeiro, com apoio do governo estadual. Ainda menciona outras dificuldades sofridas por não ter músicos profissionais para as apresentações musicais de suas composições e as frustrações sentidas com a mutilação de seu trabalho por artistas amadores, na interpretação de composições produzidas com minúcia e dedicação por longo tempo. Adelson menciona a satisfação que teve ao receber apoio para criar a “Orquestra de Violões do Amazonas – OVAM” e o sucesso na primeira apresentação. Relata as frustrações sofridas pelo baixo salário dos músicos e dele como maestro. Com senso de humor, comenta a situação humilhante a que foi exposto com os músicos de seu grupo fazendo fundo musical para coqueteis do governo (p. 292 e 299), nos quais as pessoas queriam comer, conversar e rir e não ouvir música. Ainda protesta contra a falta de apoio aos músicos e artistas locais e à supervalorização de artistas vindos de outros lugares, na política cultural local. Justifica, assim, o fato de não insistir em fazer música com apoio oficial, por sentir a falta de respeito com os profissionais músicos locais.

O livro é composto de capítulos curtos, fáceis de serem lidos e que prendem a atenção do leitor. Adelson às vezes deixa escapar palavrões para expressar a indignação que sente em relação à falta de apoio ou às ações desleais sofridas no decorrer de sua carreira. Em outros momentos, demonstra um senso de humor aguçado, mostrando o ridículo das situações que leva os músicos ingênuos a acreditar que terão sua música e sua arte reconhecidas. Apesar de ser uma biografia, é uma obra que serve de referência como reflexão crítica para músicos e artistas sobre as dificuldades de ser artista profissional no Brasil e no Amazonas. O livro expressa a indignação pela falta de apoio à criatividade e à arte locais e Adelson tem o mérito de ter a coragem de escrever o que pensa e sente, ao invés de falar ao vento sobre suas experiências, como muitos fazem. Por isso, possibilita uma visão dialética dos fatos, entre a visão do explorador e do explorado e contribui para que outros músicos que queiram se dedicar a essa arte no “reino da clorofila” possam fazê-lo com mais consciência das dificuldades e riscos. É por esse motivo que recomendo a leitura.

Esse texto foi publicado originalmente no blog da autora em 2013. A Imagem em destaque desse artigo é de autoria de Bárbara Umbra @umbrafotografia (Instagram) e foi gentilmente cedida à Amazônia Real.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Elvira Eliza França

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS). Criou a técnica terapêutica com as expressões das emoções denominada “Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos - CAMM.”