Meio Ambiente

À espera da terra firme

Porto Velho (RO) – O sentimento que ronda no distrito de Nazaré Paulista, distante 200 quilômetros de Porto Velho, a capital do estado de Rondônia, é o da agonia. Depois da maior enchente em cem anos enfrentada pelos moradores […]

Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (foto: marcela Bonfim/Amazônia Real)

Por Maria Fernanda Ribeiro Publicado em: 17/07/2018 às 16:48

Porto Velho (RO) – O sentimento que ronda no distrito de Nazaré Paulista, distante 200 quilômetros de Porto Velho, a capital do estado de Rondônia, é o da agonia. Depois da maior enchente em cem anos enfrentada pelos moradores em 2014, com a cheia do rio Madeira que invadiu a comunidade e fez com que suas casas e plantios desaparecerem sob as águas, eles esperam notícias de uma promessa das autoridades públicas feita à época de que seriam transferidos para uma terra firme onde o jovem e poderoso rio não seria capaz de alcançá-los. No entanto, um imbróglio jurídico no terreno localizado a cerca de três quilômetros de onde a comunidade está instalada deixa os moradores locais em compasso de espera.

As consequências das inundações permanecem presentes na vida das 140 famílias que moram no local, conhecido por toda a região pela musicalidade, festejos e como sendo de um povo hospitaleiro e que se recusa a responder com um não para um pedido de ajuda, colaboração ou acolhimento. O medo de reconstruir o que ficou destruído e de replantar o que a água levou está intrínseco à rotina da população. “Vai que inunda tudo de novo. Ninguém quer viver uma vida dessas”, disse Dalk Ferreira de Souza, 56 anos.

Além disso, a quantidade de sedimentos depositada nas áreas de plantio praticamente inviabiliza uma nova plantação nessas áreas, pois houve o depósito de uma camada de areia que não permite o desenvolvimento das plantas. Todo o terreno precisaria ser trabalhado para que eles pudessem plantar novamente.

Enquanto a transferência para a terra firme não chega, os efeitos dessa apreensão fez com que ao menos 15 famílias que antes viviam da pesca e da agricultura descobrissem no mundo ingrato do pequeno garimpo uma nova forma de sobrevivência. As balsas para extração do ouro são vistas em todo o entorno da comunidade, mas sinal de riqueza não há nenhum.

“A última informação que recebemos foi em 2015, quando o Estado avisou que a Prefeitura iria lotear, que estava tudo certo para terraplanar o local. Mas depois disso sumiu todo mundo”, disse Getúlio do Nascimento Tavares, 68 anos.

De acordo com parecer do Ministério Público do Estado de Rondônia, de 14 de maio de 2018, a área que o Estado tinha o intuito de transferir a comunidade e que chegou a ser desapropriada para a realocação das famílias vítimas da enchente nunca foi apta para a reinstalação do assentamento. No entanto, as famílias de Nazaré parecem não saber disso, a julgar pelos questionamentos ouvidos pela reportagem da Amazônia Real sobre se tínhamos alguma informação sobre a transferência quando esteve lá, em abril desse ano. (Leia mais abaixo).

Terra Prometida

Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

A reportagem da Amazônia Real visitou a região no início de abril deste ano e encontrou as comunidades alagadas pela enchente do Rio Madeira. Chega-se a Nazaré de barco partindo de Porto Velho, a capital de Rondônia. A ida leva de seis a oito horas, já a volta são cerca de nove horas. Se o meio de transporte for a lancha (voadeira com motor de popa), o tempo é drasticamente reduzido, mas a beleza e os encantos do rio também ficam sufocados pelas janelas que protegem dos ventos e das chuvas. A passagem custa R$ 50. Esse é o preço do isolamento vivido pelos três distritos de Porto Velho, sendo Nazaré o mais afetado deles pelas cheias por estar localizado em área mais baixa, segundo o coordenador da Defesa Civil, Marcelo Silva dos Santos.

A terra prometida não é unanimidade entre os moradores, apesar de a mesma ter sido apontada pelos mesmos como opção para fugir da enchente. Por estar localizada a três quilômetros – em uma linha reta a partir da margem do rio – de onde se encontra a comunidade atual, há quem acredita que a mudança pode trazer dificuldade, pois ficaria longe do porto e haveria a necessidade de um transporte para que as pessoas se locomovessem até suas casas. E muitas delas chegam de Porto Velho, onde vão com frequência para fazerem compras, ir ao médico ou resolver pendências, carregando pacotes pesados.

Margarida Pinto Tavares, 66 anos, e o marido Getúlio, 68, moram em Nazaré há 28 anos e depois de 21 anos habitando a mesma casa, decidiram construir uma nova. Seis meses depois de pronta, veio a enchente e durante três meses o que se via do novo lar, era só o telhado, que parecia boiar. Também perderam toda a plantação.

“Banana, abacateiro, graviola, açaí, pupunha. Tudo debaixo d’água. Foi a maior cheia que vi na vida e água vinha diferente do normal, enchia tudo muito rápido, do dia para a noite era mais de meio metro”, contou Getúlio.

A alteração no volume e na velocidade da água é apontada por muitos moradores como consequência da construção das barragens das hidrelétricas de Santo Antônio e de Jirau. A usina de Santo Antônio foi instalada a 7 km acima de Porto Velho a jusante de Jirau (ESBR), que foi construída a 120 km (a montante) da capital de Rondônia, distante a 100 km da fronteira de Rondônia com a Bolívia.

A reportagem procurou a empresa, mas ela não respondeu às perguntas enviadas à assessoria de imprensa.

“Depois da barragem foi que aconteceu essa enchente histórica. Antes a gente se baseava na natureza para saber se a água ia subir ou descer. Mas agora não podemos mais fazer isso porque são os homens que controlam o volume das águas e não podemos mais confiar nos nossos conhecimentos. Agora a previsão é do homem, ele que decide. Será que tá certo isso?”, questiona-se Margarida.

Mas assim como a transferência para a terra firme, a opinião de que as usinas são as causadoras do mal que os assombra também não é consenso entre os que vivem em Nazaré. Há quem diga baseado nas histórias contadas por seus antepassados ou pelas autoridades locais, que cheias assim são comum a cada cem anos. A proximidade da fronteira com a Bolívia e as chuvas no país vizinho também entram na conta das possibilidades de causas.

O que é certo, segundo relatório de fiscalização da Controladoria Geral da União, com diagnóstico dos efeitos da cheia do rio Madeira, é que nenhuma das áreas atingidas pela enchente e reocupadas foi considerada segura pela Defesa Civil. Há “elemento de risco às famílias, uma vez que nova ocorrência da enchente é possível, o que colocaria em perigo pessoas em condição já vulnerável.”

Casa de dona Dalk de Souza (de blusa rosa), na Comunidade de Nazaré, em Porto Velho (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

O relatório, realizado entre os dias 4 e 8 de agosto de 2014, teve origem no que foi considerado pelo Ministério da Integração Nacional à época como o maior desastre natural da Amazônia, causada pela cheia do Rio Madeira. Desde que a marca histórica de 17,52 metros para a cota do rio foi ultrapassada, mais de 1,8 mil famílias foram retiradas de suas casas em quatro cidades com situação de emergência decretada (Porto Velho, Guajará Mirim, Santa Luzia e Rolim de Moura) e em 14 distritos da capital de Rondônia, segundo informações do coordenador da Defesa Civil Estadual. Em Nazaré, foram identificadas 306 famílias.

A tragédia foi resultado da elevação do Rio Madeira até a cota história de 19,74 m no dia 30 de março de 2014, medida que corresponde a 3,06 m acima do valor já considerado como cota de transbordamento. As cotas registradas nas piores enchentes atingiram 17,44 m e 17,50 m (anos de 1984 e 1997, respectivamente).

Para Artemis Aguila Ribeiro, 76 anos, um dos mais antigos moradores de Nazaré, se a culpa da enchente é do homem ou de Deus, não dá para saber, mas é possível afirmar que ver as casas “morrendo afogada” em 2014 foi um dos momentos mais tristes da vida dele.

“Eu chorei e não foi só uma ou duas vezes, não, foram muitas.” E agora, senhor Artemis, como estão vivendo? “Agora, minha filha, estamos pelejando para desenterrar a velha Nazaré.”

Para Dalk, que durante a visita da reportagem já estava com a casa parcialmente embaixo d’água e tem medo constante de doenças como a leptospirose, a vida era melhor antes da construção das barragens. “Não era assim antes da usina. Quem desgraçou isso aqui foi a usina. Só queria que o governador dissesse que a gente já podia ir para lá, para a outra terra. Em 2014 eu fiquei morando em um barco amarrado num pau. Isso não é vida.”

A Hidrelétrica Santo Antônio informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que não possui qualquer relação com a cheia histórica ocorrida em 2014, decorrente das condições climáticas então registradas, notadamente as chuvas nas cabeceiras do rio Madeira. De acordo com a nota, o distrito de Nazaré, distante 150 quilômetros abaixo da barragem da hidrelétrica, não possui interferência da usina, o que tem sido, inclusive, reconhecido judicialmente.

“Não houve planejamento”

Comunidade de Nazaré inundada pela cheia em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

A aquisição da área para a transferência da comunidade estava a cargo do Estado de Rondônia. À prefeitura de Porto Velho caberia a parte urbanística. No entanto, a remoção da comunidade não deve acontecer tão cedo. Passados mais de quatro anos da cheia, a notícia que se tem é de um atropelo do Estado na escolha do terreno e de uma total falha de planejamento para a efetiva instalação do reassentamento.

Na escolha da área apontada pelos moradores como sendo passível de transferência, mora João Lobato dos Santos e uma parte da família. No local, o Estado também já havia construído uma escola. No ato da medição do terreno, segundo parecer do Ministério Público do Estado (MPE), foram juntados documentos em nome de Lobato, que conseguiu comprovar apenas a posse do local. O Estado pagou a ele, a título de indenização, R$ 29,5 mil. Mas, o senhor Lobato ingressou com uma ação judicial alegando que o valor pago estaria subdimensionado, que foi julgada improcedente.

E tem mais. A área prevista para a construção do que chamam Nova Nazaré, encontra-se sobreposta parcialmente à Estação Ecológica de Cuniã, Unidade de Conservação Federal de proteção integral, criada em 2010, na divisa de Rondônia com Amazonas. E todos esses fatores somados torna incompatível o assentamento das famílias no local. E, segundo o MPE, a área nunca foi apta para a reinstalação do assentamento.

De acordo com o parecer do órgão, “fica evidente que não houve planejamento para a efetiva instalação do reassentamento, além de não haver evidência técnica que justifique a escolha da área. Além da desobediência das regras urbanísticas e possivelmente ambientais, é necessário verificar a utilidade da desapropriação.” O órgão aponta ainda danos e a probidade administrativa, considerando o pagamento feito ao senhor Lobato.

Segundo Quelen dos Santos de Aguiar, 36 anos, neta de João Lobato, o avô chegou ao local em 1966 e tem o título definitivo das terras. Romário Maciel dos Santos, 31, também neto, afirmou que devido ao imbróglio deixaram as criações e plantações de lado. “Não queria brigar pela terra, mas é nosso direito.” O valor da área seria de aproximadamente 176 hectares.

“A população está desacreditada e a gente vive nessa ameaça de alaga ou não alaga. Se o governo desse estrutura, seria bom ir para a outra área. Quando chove, a Defesa Civil vem e nos oferece água potável, mas já estamos afogados aqui. Já passou uma centena de pessoas aqui dizendo que vão resolver o problema e nada acontece”, disse Maria Rozenete, 51 anos, presidente da Associação de Moradores e Produtores de Nazaré. Ela conta que no período da enchente quase foi à falência ao jogarem fora 180 quilos de polpa de fruta. Agora, assim como os demais membros da comunidade, ela aguarda uma resposta definitiva do Estado para saber quando a agonia e o compasso de espera se transformará em recomeço de uma nova vida.

O que diz o Governo de Rondônia?

Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

A Secretaria de Estado da Assistência e do Desenvolvimento Social (Seas), por meio de sua assessoria de imprensa, informou que foram “desapropriados 50 hectares de área de terra com o objetivo de realocar as famílias atingidas pela cheia do Rio Madeira que residem em área passível de alagamento, movendo-as para área mais alta, porém na mesma localidade, como forma de manter os vínculos sociais e culturais da comunidade.”

No entanto, ainda de acordo com a nota enviada, o decreto foi revogado em 31 de dezembro de 2016 por solicitação da Superintendência do Patrimônio (Sepat) com a justificativa de que após uma analise topográfica “in loco” verificou-se que o local era passível de alagamento.”

O governo do Estado de Rondônia informou ainda que foi apresentado documento da posse em nome do senhor João Lobato, que fora inclusive indenizado pelas benfeitorias que havia no local. Contudo, o senhor João Lobato ajuizou ação contra o Estado de Rondônia solicitando a revisão dos valores dispensados. Em março deste ano foi julgado improcedente o pedido e houve também a confirmação que a área de terra em questão pertence à União/Incra e compõem o Projeto de Desenvolvimento Sustentável Nazaré/Boa Vitoria, integrante do Programa Nacional de Reforma Agraria.

“O Estado requereu ao Incra o estudo sobre a possibilidade de realocar as famílias já assentadas e a regularização das famílias que ocuparam o local após a criação do Projeto de Desenvolvimento Sustentável, bem como a indicação da melhor área para a reocupação dentro do perímetro do PDS Nazaré/ Boa Vitoria. No momento, o Estado encontra-se aguardando a resposta do Incra e irá reiterar o pedido.” Leia a íntegra da nota do Governo de Rondônia aqui.

Veja galeria de fotos:

Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)
Comunidade de Nazaré em Porto Velho, Rondônia (Foto: Marcela Bonfim/Amazônia Real)

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Esta reportagem faz parte do projeto Olhando por Dentro da Floresta Amazônica, da Amazônia Real, e conta com o apoio da Aliança pelo Clima e Uso da Terra – CLUA – para ampliar a cobertura jornalística sobre temas como a invisibilidade das violações de direitos socioambientais dos povos tradicionais da região amazônica.

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Maria Fernanda Ribeiro

Maria Fernanda Ribeiro é jornalista multimídia com foco nos povos indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Documento e compartilho histórias em reportagens, crônicas e vídeos. Viajei dois anos pela floresta amazônica munida apenas da minha mochila, uma câmera e um gravador para conhecer quem são as pessoas que habitam a floresta. Rodei por oito estados (só faltou o Tocantins entre os que compõe a Amazônia Legal), de barco, de carro e de avião. Isso foi entre 2016 e 2018 e, de lá para cá, reportar as vidas, os conflitos e os movimentos que permeiam as histórias dessas pessoas é o meu caminhar como jornalista. ([email protected])