A artista manauara que recebeu uma carta do Papa Francisco

Por Elvira Eliza França Publicado em: 17/06/2019 às 23:21

Rejane Melo não conseguiu entregar pessoalmente uma tela ao Pontífice

(Foto de Bruno Kelly/Amazônia Real)

A artista plástica manauara Rejane Melo já expôs suas obras em galerias do Amazonas, Estados Unidos, Argentina e até no Carroussel do Louvre, em Paris. Mas foi o reconhecimento da maior autoridade religiosa da Igreja Católica que lhe proporcionou uma emoção jamais imaginada, que foi uma carta autografada pelo Papa Francisco.

“Todas essas viagens que fiz foram custeadas com os recursos do meu próprio trabalho no atelier, venda dos quadros, e apoio do meu esposo. Nessa carreira muito rápida, o que marcou meu momento como artista, foi ter desenhado e pintado uma tela de Nossa Senhora Aparecida e, quando fui a Roma expor outros quadros, a levei para presentear o Papa Francisco. Mas quando eu cheguei no Vaticano, não consegui entregar a tela para ele. Então, fui para o Museu do Vaticano e, também lá, não me deixaram entrar com a tela”.

Diante das negativas, Rejane pensou numa estratégia alternativa para fazer com que seu trabalho chegasse até o Papa. “Foi então que eu tive a ideia de escrever uma carta para o Papa, contando toda a minha história e dizendo que a tela era para ele. Propositadamente, deixei a tela toda embrulhada no guarda-volumes do Museu do Vaticano e o ‘esqueci’ por lá propositadamente. A amiga que estava comigo até duvidou do que eu estava fazendo e disse que a tela seria eliminada, porque pensariam que era uma bomba”.

“Três meses depois, em janeiro de 2019, quase morro do coração ao receber uma carta do Vaticano. Ela veio assinada pelo assessor Monsenhor Paolo Borgia. Ele agradecia o envio da tela e dizia que o Papa também estava agradecido e abençoava a mim e a minha família, desejando-me felicidades. Na carta também veio uma foto autografada do Papa Francisco. A emoção que eu senti foi indescritível. Quando penso nisso, eu vejo todo o filme de minha vida e me sinto agraciada por mais essa bênção que recebi”.

Aluna da artista no AtelieRê, em Manaus (Foto Bruno Kelly/Amazônia Real)

Rejane Mendes de Melo, 52 anos, nasceu em Manaus em 1966. Seu pai, José Augusto de Melo Filho, era o dono da papelaria Velho Lino, localizada na esquina da rua Saldanha Marinho com a Barroso, centro de Manaus, Amazonas. Sua mãe, Lourdete Melo, era orientadora educacional do Instituto de Educação do Amazonas – IEA e do Colégio Dom Bosco na mesma cidade. O casal teve mais dois filhos.

Por acompanhar a mãe nas atividades escolares, principalmente nas épocas festivas, Rejane despertou seu interesse pela educação desde pequena e pelo convívio com outras crianças. Na fase de ingresso na escola, estudou no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, dirigido por religiosas católicas, e que na época só era frequentado por meninas. Quando estava entrando na adolescência, Rejane conheceu uma amiga de sala de aula que era primorosa nos desenhos, feitos com caneta Bic nas folhas de caderno.

“Os desenhos que a Cristina fazia eram fortes e me chamavam muito a atenção. Ela desenhava mãos, olhos, o sol, entre linhas curvas, o que me deixava admirada. Eu queria saber o significado dos desenhos, mas não conseguia decifrá-los. Então, comecei a imitar os desenhos dela, para tentar entender o que significava: o propósito daquela arte. Nunca mostrei meus desenhos a ela nem para minhas outras colegas de aula”, disse a artista, que não sabe se a colega ainda vive em Manaus.

Aos 18 anos, Rejane casou e teve dois filhos do primeiro casamento. Quando faltavam dois dias para o nascimento do segundo filho, seu pai faleceu de câncer. Foi um grande trauma emocional na sua vida. Além disso, por causa da anestesia recebida para o parto cesariana, e a imunidade baixa devido ao estresse do momento, a jovem adquiriu uma inflamação nas vértebras lombares L1 e L2 e ficou tetraplégica.

A situação de emergência requereu que Rejane fosse levada para se tratar em Brasília, no hospital Sarah Kubitschek, referência no tratamento. Apesar do apoio da família de um tio materno que morava naquela cidade, ela teve que se separar dos filhos, que ainda eram bebês. Sua mãe e sua sogra assumiram os cuidados com as crianças, que eram visitados periodicamente pelo pai, enquanto Rejane estava internada no hospital em Brasília.

A artista Rejane Melo durante aula com alunos no AtelieRê
( Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Depois de um ano de tratamento, Rejane voltou a andar, após passar por vários processos terapêuticos para recuperar os movimentos: uso da cadeira de rodas, de muletas, de colete. Assim que pôde resgatar a independência para locomoção, retornou a Manaus para comemorar o primeiro aniversário de seu filho caçula.

No início dos anos 90, Rejane que estava separada, casou novamente e ela e o marido decidiram adotar duas crianças. Assim, a família ficou composta por quatro filhos, sendo que os dois mais velhos já estão casados e os mais novos na faculdade. Hoje, Rejane tem cinco netas.

Nesta época, a papelaria do seu pai havia fechado e ela foi trabalhar como professora do ensino fundamental no Colégio Dom Bosco. Foi no contato com crianças, entre sete e oito anos, que ela começou a resgatar seu lado desenhista da adolescência. A motivação para desenhar começou quando quis criar estímulos mais criativos para o processo de aprendizagem dos alunos. Os resultados foram tão bons, que as crianças começaram a se interessar pelo desenho e hoje há vários professores que foram seus alunos e que usam o desenho como estratégia pedagógica também.

Como professora do ensino fundamental e médio, Rejane atuou em algumas escolas particulares de Manaus, sempre fazendo uso do desenho como estratégia didática. Essa experiência durou 27 anos, até o final de 2015, quando estava dando aula, e começou a perceber que seus olhos apresentavam pequenas manchas escuras. Eram pontos em movimento, que ficavam dançando na sua frente do seu olhar, quando os olhos estavam abertos.

Quando consultou um especialista, ele disse que se tratavam de “moscas volantes” e constatou, também, que ela estava sofrendo um descolamento da retina. O oftalmologista disse que seria necessário realizar uma cirurgia com urgência, e foram realizados cinco procedimentos no olho do lado direito que apresentava o problema.

Quando Rejane retornou da licença médica, constatou que a escola a havia demitido. “Para mim, o mundo tinha acabado. Eu estava com 50 anos, e me perguntava: Como vou recomeçar a vida com 50 anos fora da escola? Minha vida era só escola e casa, escola e casa. O que eu iria fazer para ganhar a vida?”

Turma de artes plásticas no AtelieRê em Manaus
(Foto Bruno Kelly/Amazônia Real)

Foi no mês seguinte, que sua filha já adulta ficou sabendo que uma artista plástica que vivia em Manaus estava procurando alguém para substituí-la num atelier. Tratava-se de Luciana Severo, esposa de um militar que havia sido transferido para o Nordeste, e queria deixar alguém responsável pela continuidade do trabalho que realizava com seus alunos no atelier “Mão na Massa”, na Vila Militar.

Então, Rejane fez o contato com a Luciana e ela passou todos os procedimentos para aquela que seria sua futura substituta.

Assim, com a ajuda do marido, Rejane criou um atelier na sala de visitas de sua casa e o denominou de “AteliRê”. No contato com crianças e adolescentes, Rejane sentiu que vida fluía novamente, superando o trauma da demissão do trabalho como professora. Retomava, de modo mais enfático, as habilidades de desenho e pintura, no ensino que proporcionava aos alunos.

Seis meses depois, Rejane foi a Brasília visitar o tio que havia dado muito apoio em seu tratamento para recuperação dos movimentos. Lá, na capital do país, conheceu o esposo de sua prima que é artista plástico: Pierre Almeida. Foi ele quem a apresentou à artista plástica e curadora Socorro Mota. Foi na casa de Socorro que Rejane conheceu vários artistas de Brasília e ela a incentivou a pintar telas para uma exposição.

Assim, quando retornou a Manaus, Rejane começou a colocar os desenhos na tela. Em duas semanas pintou três quadros e mandou as fotos, via e-mail, para a curadora Socorro. A artista de Brasília gostou dos trabalhos e selecionou um para uma exposição internacional que passaria por três países: Bulgária, República Dominicana e Noruega.

Assim, de repente, em 2017, aquela professorinha de Manaus, que havia preenchido seu tempo ensinando crianças a desenhar e a pintar no AteliRê, tornar-se-ia uma artista internacionalmente conhecida. A partir de então, Rejane começou a ter notícias de sua caminhada artística em jornais locais como o Jornal do Comércio e A Crítica. Também teve um artigo publicado sobre seu trabalho na revista nacional Arte e Estilo, do Rio de Janeiro.

Rejane Melo no AtelieRê onde ensina crianças a arte de pintar
(Foto Bruno Kelly/Amazônia Real)

Em dezembro de 2017, Rejane participou de uma seleção de quadros para expor no Salão de Arte da Marinha da Amazônia, sob a curadoria do artista plástico amazonense Rui Machado e da paraense Rosa dos Anjos. No ano seguinte, em outubro de 2018, saiu outra publicação, agora internacional, na revista da Noruega, lançada em Paris Artists Across Continents 2018.

Foi a partir dos contatos possibilitados pela divulgação em jornais e revistas, que Rejane passou a ser localizada por outros marchands e foi convidada a participar de outras exposições nacionais e internacionais.

Desde que abriu o atelier de pintura denominado AteliRê, Rejane enfrentou muitos desafios, mas eles foram vencidos a cada manifestação, com determinação e fé. O apoio do esposo e dos filhos sempre foi integral e, apesar do distanciamento que ocorre quando ela realiza as viagens ao exterior, todos ficam contentes com os resultados. O reconhecimento do talento e da criatividade dessa amazonense que vem conquistando o mundo das artes eleva a autoestima de todos.

Há dois anos, Rejane conheceu, em Parintins, o artista plástico Jorge Pires, durante a Feira Urbana Alternativa, onde os dois expunham suas obras. Então, Rejane convidou Jorge para conhecer o AteliRê em Manaus. Também pediu a Jorge que ministrasse uma oficina para as crianças e a experiência foi um sucesso. A partir daí, os dois artistas começaram uma parceria que dura até o presente momento.

O sucesso desse processo de formação de crianças e adolescentes em artes plásticas tem dado resultados muito promissores. Alguns alunos do AteliRê já apresentaram seus trabalhos em exposição coletiva em São Paulo e Buenos Aires. Em outubro, quando Rejane for expor em Paris, quatro estudantes do atelier irão expor com ela. O grande sonho dessa artista amazonense é criar um espaço múltiplo para o desenvolvimento das artes, oferecendo aulas de desenho e pintura, assim como também de música, dança, teatro, literatura, e tudo que a arte e cultura comportarem.

“O que eu quero é ajudar a tornar as crianças e adolescentes mais sensíveis, porque assim nós conseguimos mudar o mundo para melhor. Não existem fora do Brasil exposições em artes plásticas para crianças, e é muito difícil conseguir espaço para elas. Eu consegui que a curadora Lícia Simonetti, de Limeira, São Paulo, abrisse um espaço para meus alunos exporem seus trabalhos, juntamente com artistas profissionais. Os pais valorizaram muito o trabalho artístico de seus filhos e as crianças e adolescentes sentiram sua autoestima elevada. No processo de premiação dos quadros, houve uma premiação separada. Fizeram parte da comissão julgadora o secretário de cultura e artistas locais. Os alunos do AteliRê conquistaram o primeiro e o terceiro lugar. Quando as crianças e adolescentes participam dessas exposições, elas recebem um certificado de autenticidade das obras. O engraçado é que aparecem compradores, mas os pais e os alunos não querem vender os quadros.”

Nestes anos todos de trabalho artístico, Rejane conta com o apoio incondicional de sua amiga de infância Lena Vanessa, servidora pública. Ela sempre a acompanha nas viagens em que vai expor quadros no país e no exterior. Sempre foi uma grande incentivadora do trabalho da amiga, desde os tempos dos desenhos feitos com caneta Bic, no Colégio Nossa Senhora Auxiliadora. Vanessa curte os trabalhos de Rejane, e celebra cada convite para exposição e com a informação sobre a compra dos quadros.

“A primeira venda de quadro que eu fiz foi numa feira do Paço Municipal de Manaus. Eu havia pintado flores e quando alguém quis comprar, eu pedi cem reais. Senti uma felicidade total por vender meu primeiro quadro, em 2017. Quando eu fui para Paris, eu tinha que colocar o valor em uma tela, mas eu não sabia avaliar meu trabalho artístico. Então, eu pedi para o curador fazer isso para mim. No dia seguinte, ele me ligou, dizendo que a tela havia sido avaliada em 2.600 euros (na ocasião cerca de R$ 10 mil). Eu quase desmaiei de surpresa. Fiquei ainda mais feliz, quando, durante a exposição, o quadro foi vendido. Então, com os recursos recebidos, pude pagar todas as despesas da minha viagem.”

Relembrando toda essa trajetória de vida, Rejane faz questão de enfatizar a importância de nunca desistir no que acredita, vencendo todos os obstáculos com sinceridade e determinação. “Durante toda a minha vida, eu tive que ser resiliente com as adversidades e isso me ajudou a perceber que ser persistente vale a pena. Sofri injustiças, mas nunca me vitimizei e soube usar o sofrimento para dar um salto adiante. Hoje, revendo o mundo em que eu vivia, entre quatro paredes de uma escola e desenhando para ensinar os alunos, eu fico admirada com o lugar onde eu cheguei como artista plástica. Eu nunca imaginei que eu seria uma pintora conhecida internacionalmente, mas isso aconteceu”.

“Tudo o que vivi e vivo mostra que a vida está em constante movimento e crescimento. A gente não pode julgar as dificuldades no momento em que elas aparecem. Muitas vezes, as portas se fecham, porque há outros caminhos mais promissores para seguirmos na rota da vida. A vida apresenta oportunidades para todos, mas é preciso ter olhos para enxergá-las. Acredito que a sinceridade e a minha transparência na forma de viver e de fazer o que eu faço me ajudam a seguir adiante, com os apoios daqueles que acreditam em mim como ser humano e no meu trabalho como artista.”

Rejane Melo com os alunos do AtelieRê
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Para finalizar nossa conversa, Rejane fez questão de lembrar o importante papel que a artista plástica Luciana Severo teve em sua vida, ao referenciar seu trabalho aos pais dos seus alunos, naquele momento em que deixava seu trabalho em Manaus. Foi ela quem também deu as orientações básicas sobre o funcionamento de um atelier em artes plásticas. Rejane também sente muita gratidão a Socorro Mota, que a descobriu como artista plástica e a introduziu no contexto internacional. Atualmente, Rejane conta com o apoio de Tammy Repolho, profissional responsável pela Hípica Nissim Pazuelo, que abrigou o atelier nas suas dependências.

As aulas no AteliRê acontecem às quintas e sextas-feiras à tarde, das 15:00 às 17:00. Aos sábados, as aulas são dadas em três horários: das 9:00 às 11:00; das 14:00 às 16:00; e das 16:00 às 18:00.

A Hípica Nissim Pazuelo fica na rua Fortaleza, n^o 200, Adrianópolis, Manaus, Amazonas. Contatos pelo telefone: 55 (92) 9 8468-9557

E-mail: [email protected] / Instagram: @atelire_oficial

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, pós-graduanda em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educação: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).

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Sobre a matéria

Elvira Eliza França

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS). Criou a técnica terapêutica com as expressões das emoções denominada “Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos - CAMM.”