Seleção feminina sai do Mundial deixando legado às futuras gerações de jogadoras

Por Izabel Santos Publicado em: 24/06/2019 às 23:31

A campanha Jogue como uma garota provocou uma mudança na forma de como as mulheres querem assistir aos jogos de futebol feminino (Foto: CBF)

Manaus (AM) – A Seleção Brasileira Feminina despediu-se da Copa do Mundo da França, neste domingo (23), depois de fazer uma das partidas mais emocionantes no campo do Stade Oceáne, em Le Havre. As jogadoras do Brasil mostraram garra e coragem nos 120 minutos jogados. Foi uma luta de superação. Só no segundo tempo da prorrogação, a Seleção Francesa, a dona da casa, eliminou as brasileiras das oitavas de final, com um gol da jogadora Amandine Henry. O placar final foi de 2 a 1.

Após o jogo, Marta Silva, a artilheira brasileira, fez uma declaração à imprensa que resume todo o sentimento desse momento em que o Brasil precisa mudar seu olhar e apoiar o futebol feminino, desde a base, como é feito nos Estados Unidos, na Europa e na Ásia.

Marta saiu da Copa como a rainha com 17 gols em mundiais (Foto: CBF)

“É um momento especial e a gente tem que aproveitar. O momento é muito emocionante. Queria estar sorrindo aqui ou até chorando de alegria. A gente pede tanto, pede apoio, mas a gente também precisa valorizar. A gente está sorrindo aqui e acho que é esse o primordial, ter que chorar no começo para sorrir no fim. Quando digo isso é querer mais, treinar mais, estar pronta para jogar 90 e mais 30 minutos e mais quantos minutos forem necessários. É isso que peço para as meninas. Não vai ter uma Formiga para sempre, uma Marta, uma Cristiane. O futebol feminino depende de vocês para sobreviver. Pensem nisso, valorizem mais. Chorem no começo para sorrir no fim”, afirmou Marta Silva, a camisa 10, que bateu o recorde de 17 gols em copas do mundo.

Para as torcedoras da campanha Jogue como uma garota, a Seleção Feminina saiu de cabeça erguida. No Amazonas, o jogo foi transmitido a partir das 15h no Espaço Cultural Curupira Mãe do Mato, em Manaus, e no Bar do Gringo, em São Gabriel da Cachoeira. O público total foi estimado, nos dois bares, em 200 pessoas. A campanha, idealizada pela designer Karina Gallon, fundadora da marca-protesto @peita, também promoveu a transmissão dos jogos do Brasil pela Copa do Mundo em bares de Curitiba (PR), Belém (PA), Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro e em outras em outras 15 cidades.

Torcida Jogue como uma garota em Manaus
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Em Manaus, a embaixadora da campanha, jornalista Kátia Brasil, cofundadora da agência Amazônia Real, disse que o placar de 2 a 1 mostrou que as duas seleções femininas lutaram como iguais e são ambas vitoriosas. “Ganhou quem teve mais preparo para jogar os 120 minutos: isso é técnica. É neste ponto que a história do futebol feminino tem que mudar no Brasil. A nossa Seleção precisa de apoio agora, pois a nova geração está chegando. Vimos nesses dias, aqui no espaço Curupira, famílias com seus filhos, meninas que jogam, torcedoras e torcedores vibrando. Então, algo muito importante aconteceu: nossa campanha deu visibilidade; é o que queríamos tanto. Falta investimento no país do futebol para as jogadoras, e isso é de norte a sul. Então, esperamos políticas públicas dos governos para o futebol das mulheres”, disse Kátia.

Em São Gabriel da Cachoeira, a embaixadora da campanha Jogue como uma garota, Edneia Teles, disse que muitas famílias se reuniram para torcer pelas jogadoras brasileiras e analisou o jogo entre Brasil e França. “A Seleção Brasileira foi guerreira! As atletas foram vitoriosas! Fiquei triste por não nos classificarmos, mas o futebol não vai acabar. Ele é a nossa fortaleza. Fico muito feliz de ter feito parte dessa rede de torcidas, promovida pela campanha ‘Jogue como uma garota’. Se não fosse ela, nós teríamos ficado isoladas, aqui em São Gabriel da Cachoeira, sem conhecer outras mulheres que também gostam do esporte”, avaliou emocionada Edneia.

Torcedoras de São Gabriel da Cachoeira (Foto: Edneia Teles)

Mayara Jansen, da partidAmazonas, no jogo do Brasil contra a Jamaica
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Uma das coordenadoras da campanha Jogue como uma garota em Manaus, Mayara Jansen, do coletivo feminista partidAmazonas, falou sobre essa mobilização da torcida. “A campanha foi ótima, pois conseguimos mobilizar muitas pessoas que vieram torcer pela Seleção Feminina de Futebol. Outros bares também resolveram transmitir o jogo, como o ‘Do Lado’, que também é gerido por mulheres. É importante que esses espaços deem visibilidade ao esporte praticado por mulheres. A partidA quer empoderar as mulheres para que elas ocupem os espaços de poder, mas ocupar os espaços no esporte é igualmente importante”, disse.

Em Manaus, a campanha foi coordenada, também, por Gabriela Refosco, proprietária do bar Curupira Mãe do Mato; assim como por Anne Paiva, do Instituto Mana; Marília Freire, do Humaniza Coletivo Feminista; e Elvira Eliza França, da partidAmazonas. Durante os eventos, várias representantes do movimento das mulheres participaram, entre elas as do Fórum Permanente das Mulheres de Manaus (FPMM), do Maracatu Baque Mulher, e do Coletivo Coexisto. Alunos da UFAM e equipes da imprensa de Manaus também estavam presentes.

Já em São Gabriel da Cachoeira, a torcida Jogue como uma garota contou com o apoio dos 10 times de futebol de mulheres indígenas que se reuniram nos bares Tio Jonh e Gringo. Participaram como apoiadoras: Dadá Baniwa, Erlange Figueiredo, Kleidemara Otero, Elinelma Ramos, Felicita Vasques e Marinete Almeida.

Ganhadora do bolão

Anne Gomes ganhou dois bolões da torcida, em Manaus
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Como aconteceu nos outros jogos transmitidos no Curupira Mãe do Mato, a coordenação da campanha em Manaus do Jogue como uma garota fez o bolão entre as 40 torcedoras que quiseram participar. Quem ganhou o palpite foi Anne Gomes, a mesma torcedora que acertou o placar de 3 a 0 do jogo entre Brasil e Jamaica. A aposta na vitória da seleção francesa surpreendeu as outras torcedoras, pois algumas não queriam que Anne ganhasse o prêmio. Mas a torcedora recebeu uma camiseta da @peita, com a frase “Não existe luta sozinha”. Esse é o título de um documentário sobre o feminismo, realizado por Felipe Fonseca, Iago Mauad, Maria Luiza Küster e Vitória Domingues, da Universidade Positivo, de Curitiba (PR).

Anne Gomes, a vencedora do bolão, explicou porque apostou na França. “O Brasil, ele tem grandes jogadoras, esforçadas e guerreiras, que batalham diariamente para fazer um bom jogo, mas não tem uma comissão técnica boa. O futebol feminino brasileiro, seja estadual ou nacional, não é valorizado tão quanto o masculino. Isso afeta diretamente no desenvolvimento em campo das jogadoras. Os países europeus e de outros lugares como a Ásia, são bem valorizados e reconhecidos, e a comissão técnica é muito boa. Não apostei querendo desvalorizar nossas garotas, ao contrário, torci muito para que eu não ganhasse, mas foi [o palpite de 2 x 1 França] mais por essa razão mesmo. Acompanho [o futebol feminino] e sei o quanto as meninas e a comissão técnica da França são boas e isso é fundamental para o jogo”, disse a torcedora, que tem como profissão a enfermagem.

Torcedoras e torcedores assistem o jogo mais forte da Copa do Mundo
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Outras torcedoras que assistiram a transmissão do jogo Brasil e França no bar Curupira Mãe do Mato também comentaram a participação da Seleção Brasileira de Futebol Feminino na Copa do Mundo 2019. Mais do que ver os jogos, a servidora pública Ana Souza gostou de conhecer as histórias das atletas. “Mais importante que acompanhar o futebol foi conhecer as jogadoras, pois elas têm histórias muito bonitas de superação”. Ana ainda completou, dizendo que começou a acompanhar o futebol feminino com o time do Iranduba, no Amazonas.

“Gostei muito de assistir os jogos e ver que muita gente comprou a ideia. Parece que as mulheres estão mais à vontade para mostrar que gostam de futebol tanto quanto os homens”, contou o estudante de odontologia Sávio Silvestre, de 24 anos, que também estava no grupo, torcendo pela Seleção Feminina de Futebol.

A advogada e DJ Mariana Sena, de 24 anos, foi assistir a transmissão acompanhada de outros dois amigos e elogiou a iniciativa da @peita. “Campanhas como essa são muito importantes, pois as mulheres estão conquistando espaços com representatividade e mobilização. Isso é reflexo da transformação da sociedade pelo feminismo e incentiva as próximas gerações”, avaliou ela.

Torcida Jogue como uma garota no Curupira (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

A torcedora Ruth Alencar Peixoto no Curupira
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Mas ninguém torceu tanto quanto o analista de sistemas Andrews Lince, de 31 anos. Ele animou a torcida na parte interna do Espaço Curupira Mãe do Mato, com tiradas criativas e gritos de torcida. “É a primeira vez que acompanho uma Copa Feminina de Futebol e estou achando sensacional ver tanta gente reunida para torcer por um monte de mulheres do meio de um campo de futebol! O ambiente está maravilhoso e o clima é muito acolhedor. A campanha da Peita é absolutamente necessária: essa é a palavra. É inegável que o futebol masculino tenha mais projeção, mas também é inegável que o futebol feminino também precisa de mais projeção. Se não fosse isso, a Marta não estaria em campo fazendo ativismo em prol daquilo que ela acredita”, disse Andrews, que estava acompanhada da família e de amigos.

A torcedora e professora Ruth Alencar Peixoto, que participou de duas transmissões dos jogos, avalia que a campanha Jogue como uma garota mostrou o quanto as mulheres são invisibilizadas em diversos aspectos. “A projeção que a Peita está dando ao esporte praticado pelas atletas, mostra o quanto nós [no Brasil] estamos atrasados na educação, na cultura e no incentivo ao esporte. Perdendo ou ganhando, essas meninas estão com tudo; elas saem ganhando dessa copa”, disse.

Andréa Belém e Patrícia Melo torcendo para o Brasil no Curupira
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

A professora Andréa Belém, que milita e apoia diversos movimentos feministas em Manaus, acredita que iniciativas como a campanha Jogue como uma garota são fundamentais. “A mulher tem que saber qual é o seu lugar na sociedade e reivindicá-lo. Mulher não só joga bola bem, como faz outras coisas muito bem também. Sempre gostei de futebol e ser mulher nunca foi um impeditivo para mim. Ensinei meu irmão a jogar futebol e eu era goleira de um time. Para mim sempre foi proibido proibir”.

A terapeuta Elvira Eliza França, da partidAmazonas, também falou sobre a importância dessa mobilização pelo futebol feminino brasileiro, para possibilitar que as mulheres estejam unidas como torcedoras e também como protagonistas da sua própria história, conquistando espaços que antes eram exclusivos dos homens, mas que estão se abrindo para as mulheres também. “Eu sempre me perguntei: ‘Por que no país do futebol não são oferecidas aulas de futebol para as meninas também?’ Fiquei feliz quando soube que havia times de futebol feminino e que as indígenas do Amazonas são boas jogadoras. Elas e outras jogadoras poderão nos orgulhar no futuro também. A campanha agora deve ser para que o esporte para as meninas se inicie na infância e também nas escolas, por que não? Afinal de contas, podemos nos mobilizar para que isso ocorra e será mais uma conquista do movimento feminista”.

Uma reparação histórica

Seleção Brasileira Feminina na foto oficial da CBF

Por 38 anos, de 1941 até 1979, o futebol feminino foi proibido para as mulheres no Brasil. O caminho até a profissionalização oficial foi longo e a Fifa só passou a organizar uma Copa do Mundo para as mulheres na década de 1990. A situação é apenas um exemplo de como o machismo e o preconceito afetaram a vida das mulheres no país.

Na opinião da historiadora Patrícia Melo, o reconhecimento dado às jogadoras, como a capitã da Seleção Feminina Marta Silva – eleita seis vezes a melhor do mundo – e consagrada a maior artilheira das Copas do Mundo este ano, com 17 gols, entre atletas homens e mulheres, é uma reparação histórica.

“Se você tem uma atleta como a Marta – avaliada como superior em todos os parâmetros estabelecidos para homens e mulheres – que é uma rainha, ela responde exatamente por esse processo de assegurar uma nova visibilidade [para as mulheres], uma nova postura diante da sociedade, diante do mundo. Ela mostra que meninas podem, podem tudo e podem estar aonde elas quiserem: onde puderem atuar com respeito, dignidade e equidade”, disse Patrícia Melo, feminista e professora do Programa de Pós Graduação em História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

Ela também avalia que a campanha Jogue como uma garota soma na luta contra o machismo, que não é uma luta somente das mulheres, mas da sociedade como um todo. “Acho a iniciativa da Peita absolutamente imprescindível, pois a campanha ‘Jogue como uma garota’ se soma a uma série de outras iniciativas que fazem o trabalho extraordinário que é retirar esse manto de invisibilidade que cobre a presença e a participação feminina em todos os setores da vida brasileira. Temos um país onde a maioria dos lares são dirigidos por mulheres; esse é um dado extremamente importante. Mulheres são provedoras de lar, responsáveis por processos de manutenção e elas estão atuando em diversos locais e fazendo a diferença em diversos campos do conhecimento, do mercado de trabalho, das atividades profissionais. Ainda assim, são obrigadas a se confrontar com uma relação extremamente preconceituosa em relação a esses campos de atuação: ao ser e estar no mundo”.

Patrícia Melo reforça que as mulheres que se destacam hoje, estão garantindo espaços de poder para as gerações futuras. “Além de tudo, as mulheres ainda precisam provar o tempo todo que são competentes, que são responsáveis, que são eficientes, que são tão boas quanto os homens. Uma campanha como essa contribui para tirar da invisibilidade essa atuação feminina que não vem de agora: ela é histórica.

“Estamos aqui, hoje, porque muitas outras mulheres se envolveram corajosamente na luta contra o preconceito, machismo e patriarcalismo, sendo responsáveis por nos deixar na posição que estamos hoje e garantir, às próximas gerações, uma posição diferente no mundo. A sociedade precisa compreender isso. Acredito que esse seja o nosso papel no presente: garantir os espaços que já foram conquistados e ampliar essas conquistas para o futuro”, concluiu Patrícia Melo, que é mestre e doutora em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ), Pós-Doutora pela UNICAMP e Pós-Doutora na área de Ciência Humanas pela Universidade de Lisboa, em Portugal. Ela atua nas áreas de história indígena e história da escravidão africana na Amazônia.

Veja quem jogou na Seleção Feminina: Bárbara; Letícia Santos (Poliana), Kathellen, Mônica e Tamires; Thaisa, Formiga (Andressinha), Ludmila (Bia Zaneratto) e Debinha; Marta e Cristiane (Geyse). Leia mais sobre a recepção que as jogadoras terão de torcedoras na chegada ao Brasil nesta terça-feira (25).

Torcedoras e torcedores no bar Curupira Mãe do Mato, em Manaus
(Foto: Alberto César Araújo)

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Izabel Santos

É graduada em Jornalismo pela Faculdade Martha Falcão, de Manaus (AM). Tem mais de dez anos de atuação na cobertura de política e meio ambiente. Trabalhou no Jornal Amazonas Em Tempo; no Portal Amazônia, foi coordenadora de jornalismo na rádio CBN Amazônia e coordenadora de jornalismo no canal televisivo Amazon Sat. Foi indicada ao Prêmio Milton Cordeiro de Jornalismo em 2014, na categoria Internet, pela série de reportagens "Balbina, hidrelétrica da contradição". Foi a jornalista responsável pelas ações de divulgação científica da segunda fase do INCT Adapta, projeto científico sediado no Inpa que investiga o impacto das mudanças climáticas nos organismos aquáticos da Amazônia. ([email protected])