Lamento Profético

FÁTIMA GUEDES A cada 12 de outubro o questionamento é sempre o mesmo: por que e quem designou a data como sendo o Dia das Crianças?… Queremos acreditar que a referência da data esteja relacionada a algum fato histórico […]

Por Amazônia Real Publicado em: 13/10/2014 às 12:41

FÁTIMA GUEDES

Imagens Ilustrativas – Reprodução Instituto Alana

A cada 12 de outubro o questionamento é sempre o mesmo: por que e quem designou a data como sendo o Dia das Crianças?… Queremos acreditar que a referência da data esteja relacionada a algum fato histórico importante de defesa e/ou proteção dos pequeninos.

Paralelamente, a questão enseja-nos a sérios questionamentos, tendo em vista o lado obscuro em que a problemática infantil tem se apresentado e diga-se, nada pueril. Cotidianamente, se verificam aspectos reveladores dessa crueldade, via publicidade dirigida àquele público – presa fácil, ou melhor, alvo preferido para se barganhar formas variadas de exploração.

Um retorno no tempo onde infância era folguedo, espaço para fantasias e sonhos, permite-nos reconstruir imagens de um lúdico, certamente, sem chances palpáveis de reconstrução. Em nossas lembranças vagueiam uma variedade de brinquedos e brincadeiras em resposta a nossa mais pura criatividade – rolimãs, bole-bole, bolinha de gude, curica de papel, pião, amarelinha, barra-bandeira, canga-pé, cair no poço e uma infinidade de cantigas de rodas. As bonecas nasciam pelas mãos habilidosas de nossas mães, madrinhas ou tias a partir do reaproveitamento de restos de tecidos; chamavam-se Lili, Flora, Belinha, Anita… Era a arte fluindo da cultura, da necessidade, imitando a vida, as relações familiares assim como laços de carinho, dedicação, zelo, companheirismo, parceria entre mães e filhas…

Com o processo de mercantilização da vida, de princípios e valores as exigências de consumo apropriam-se impiedosamente de frágeis territórios subjetivos com impactos destrutivos, principalmente, sobre as crianças… Por esse viés, Lili, Flora, Belinha e Anita já não despertam o encantamento primeiro; já não conseguem estabelecer nenhum diálogo ou laço afetivo com as pequenas mamães. Aos poucos, vão agonizando no baú das memórias até desaparecerem por completo, vindo, por fim, se transformarem em adubo nos cuvões dos quintais junto a outros brinquedos semelhantes.

Afora isso, as pequenas e modernas “mãezinhas” sem quaisquer dor ou remorsos incorporam o novo lúdico mercadológico – a boneca Barbie: estereótipo da mulher sensual, magérrima, bem sucedida, portando celular e, necessariamente, a reboque de um marido rico e elegante, ambos produzidos cuidadosamente como meio de impor novos padrões que atendam às exigências da lucratividade e ao fortalecimento da estrutura capitalista.

Confirma-se, dessa forma, a crueldade da mídia a serviço do mercado como produtora e ao mesmo tempo instigadora de necessidades e desejos. Às crianças, astutamente, se impõem mecanismos persuasivos específicos incitando-as ao abandono da criatividade, do lúdico pueril para, enfim, lançá-las, o mais rápido possível, no insaciável consumismo. A propósito, ainda no berço, as fraldas são substituídas por roupinhas sensuais de dançarinas famosas; o sapatinho de tricô ou crochê, por sandalinhas de salto top model… E haja cunhantãzinha transformada em ridículos modelitos aplaudidos pelas famílias, por uma massa dominada pelos apelos da mídia que, sem o mínimo discernimento, estimula e potencializa a erotização e o consumismo precoces, por fim, a morte da infância. E o mais grave, sob a indiferença do Estado e de suas Instituições.

A data em questão permite-nos também um breve olhar sobre a relação de Parintins com suas crianças. O Município está na lista dos 932 municípios brasileiros em situação de Exploração Sexual e Comercial de Crianças e Adolescentes (ESCCA). Tal fato nos leva à perplexidade e buscar as causas que levam uma pequena Ilha do interior do Amazonas, com pouco mais de 100.000 habitantes, estar incluída nos índices de perversão.

Dentre outras implicações, não se pode perder de vista que na Ilha do Folclore a “violência bonita” fere o Estatuto da Criança e do Adolescente, conforme Art. 17, “O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade (…)”.

Assinale-se que, durante eventos importantes como Festival Folclórico e Carnaval a violação ao que determina a Lei é disfarçada em arte, em brinquedo de turista. Na sequência, pequenas “bem dotadas” – com desempenho compatível às exigências da indústria cultural – são induzidas precocemente em mostrar dotes e rebolado para satisfazerem fantasias e taras de turistas, de torcidas organizadas, enfim, de pedófilos de classes sociais diversas… E, nessa alucinante epidemia, a indiferença e a omissão anestesiam famílias, a comunidade, organizadores e até autoridades… Para estes últimos, “Parintins não pode perder o brilho da Festa”.

Por conseguinte, em nossa impotência, vem à memória a denúncia do Profeta Jeremias: “Ouviu-se uma voz, choro e grandes lamentos: é Raquel a chorar seus filhos; não quer consolação, porque já não mais existem”.

Cuvões – Covas produzidas pelos antigos nos fundos dos quintais para armazenar resíduos orgânicos e outros.

Cunhantãzinha – Do Tupi [kuña’tai] Menina com menos ou mais de dez anos.

Ilha do Folclore – Denominação à cidade de Parintins.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins e da Articulação Parintins Cidadã.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Amazônia Real

A agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real é uma organização sem fins lucrativos, criada por jornalistas mulheres em 20 de outubro de 2013, em Manaus, no Amazonas, Norte do Brasil. Sua missão é fazer jornalismo ético e investigativo, pautado nas questões da Amazônia e de seu povo. A linha editorial é voltada à defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos. ([email protected])