Memórias do professor Odenildo Sena em crônicas explicam por que a felicidade precisa de loucura

Por Elvira Eliza França Publicado em: 05/05/2022 às 15:30

Um livro de crônicas sobre memórias (Foto: Acervo pessoal).

O escritor amazonense Odenildo Sena, professor aposentado de Língua e Literatura Portuguesa da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), lançou o livro “A felicidade precisa de loucura: uma sinfonia do meu tempo em 115 crônicas escolhidas”. Com 70 anos e vivendo atualmente na cidade do Porto, em Portugal, o autor categoriza suas crônicas em seis tempos: Tempo das lições de casa (10 crônicas); Tempo de aprendizagem com a vida (24 crônicas); Tempo das memórias de menino (37 crônicas); Tempo de um observador à espreita (28 crônicas); Tempo das memórias em sala de aula (5 crônicas); e Tempo da pandemia (11 crônicas).

Na introdução, Odenido diz que, com seus “passos lentos e mediados com o auxílio de uma bengala”, carrega três certezas na vida: “a da existência de um estoque quase inesgotável do passado, a da evidente carência de futuro e da irreversibilidade do tempo” (p. 20). Diz que, se no passado queria que o tempo se apressasse para ele poder assistir filmes proibidos para menores de idade, agora deseja que o tempo passe lentamente, para que ele possa desfrutar dessa preciosa memória, com a qual constrói a “Sinfonia do Tempo”.

Abordando vários momentos do passado na infância, adolescência e vida adulta, Odenildo também aborda os desafios da pandemia, com uma visão diferenciada de quem vive na Europa. Monta as crônicas como peças de um quebra-cabeça que vão surgindo em textos breves, cujo significado vai sendo montado pelo leitor, movido pelo desejo de ler a próxima crônica, até acabar a leitura do livro todo. Assim, as cenas do filme da vida de Odenildo vão sendo montadas, sob o ponto de vista de menino, adolescente, adulto e agora idoso. Com a experiência de escritor, Odenildo também dá algumas dicas sobre leitura, conservação dos livros e anotações nas suas páginas, algumas opiniões sobre questões mais recentes sobre tecnologia e consumismo e comportamento perante a pandemia. O livro do autor foi lançado em dezembro de 2021 pela Editora Valer, em Manaus (AM).

A vida no bairro de São Raimundo, em Manaus

Vista do São Raimundo nos anos 1950 (Foto IBGE)

Quando tinha sete anos, Odenildo ficou órfão de pai (p. 195 e 202). Morava no bairro de São Raimundo, em Manaus, Amazonas e sua Mãe, sozinha, sustentou a família composta por oito filhos e três ou quatro agregados, trabalhando como servente na Santa Casa de Misericórdia. Servia as refeições aos doentes e ganhava o salário mínimo. Cedo, pela manhã, saía de casa, atravessava o igarapé de São Raimundo numa catraia, um barco pequeno a remo, manejada pelo catraieiro, no Porto das Catraias do bairro. Chegava no bairro de Aparecida, e dali seguia para o local de trabalho, caminhando dois quilômetros por dia. Às vezes, fazia plantões à noite, saindo de casa no final da tarde e retornava cedo no outro dia, pela manhã. No livro não fica claro se os agregados da família moravam na casa, ou se eram amigos das crianças, fazendo as refeições juntos (p. 193). Nos finais de semana, a Mãe costurava roupas para os filhos e agregados.

Por não ter casa própria, a Mãe alugava a casa, e a família habitou várias residências, em diferentes ruas do bairro (p. 193). As águas limpas do igarapé de São Raimundo eram utilizadas nas atividades domésticas, higiene pessoal, e havia locais onde era possível pescar clandestinamente (p. 32), na altura do igarapé no bairro da Glória. De todo modo, estava sempre acessível às pessoas.

“A expectativa da garotada por uma nova casa, sempre de madeira e com um quintal cheio de vida e fruteiras, como eram as casas da minha infância, fazia de cada mudança uma festa sempre muito esperada que envolvia, principalmente a vizinhança que ficaria para trás. Como os parcos recursos não permitiam contratar uma carroça, todos se envolviam solidariamente com o transporte das nossas poucas tralhas. Sem nenhum pudor, elas percorriam alegremente as ruas do bairro rumo à nova morada” (p. 194).

O quintal como um oceano na cheia e a floresta na vazante

Orla do bairro do São Raimundo nos anos de 1960 (Foto: Manaus de Antigamente)

Das casas em que morou, a que ficou mais viva nas memórias de Odenildo era “construída sobre esteios, ficando a um metro do chão, para proteger a morada das enchentes mais agressivas do igarapé fronteiriço entre os bairros de São Raimundo e Glória” (p. 194). Seguindo o fluxo do período das cheias do rio Negro, os cinco degraus da porta eram alcançados pela água, e Odenildo recorda que tinha a sensação de que ali, em parte do ano, vivia às margens de um verdadeiro oceano (p. 171). No período da vazante, quando as águas baixavam, o quintal sem cercas ficava como se fosse uma vasta floresta.

“Quando aquele enorme volume de água sumia, deixando como herança apenas um estreito córrego que serpenteava a perder de vista, seu lugar era ocupado por uma vegetação rica e diversificada que, com a fertilidade do terreno, em pouco tempo se transformava em nossa floresta. Aquele verde era o cenário de muitas das aventuras transportadas da tela do cinema para o nosso mundo. Era tradição, por exemplo, localizarmos uma área com terreno argiloso de onde retirávamos a matéria-prima que resultava nas bolinhas de barro. Secas ao sol, elas abasteciam nossas baladeiras [estilingues] nas batalhas travadas entre os dois grupos que disputavam heroicamente um terreno previamente demarcado” (p. 171-2).

No período em que as águas estavam altas, os meninos escondiam um calção no porão de alguma palafita à beira do igarapé e iam para lá nadar escondidos dos pais. “Tinha hora para começar e terminava sempre com todos nós, pequenos cúmplices de um segredo de estado, expostos ao sol para secar o cabelo e não deixar pistas daquela transgressão nunca imaginada por nossos pais” (p. 172).

Durante o período em que “a floresta” estava acessível, as crianças desfrutavam da colheita de variadas árvores frutíferas. Por isso, apesar das limitações econômicas, as crianças eram bem nutridas com goiabas, mangas (manga-espada, manguita, manga-rosa, manga massa), mamão, jaca, abiu, biribá, jatobá, bacuri, ingá (ingá-mari, ingá-chinelo), maracujá do mato, buriti, tucumã, mari-mari, bacaba, cupuaçu. Nesse contexto de “fome zero”, ainda havia cajus no cemitério, poupados devido ao medo das almas penadas e os meninos preferiam pular o muro do terreno dos padres no horário da sesta para colher frutos, e depois confessavam o pecado (p.141-3).

Cenas como essa e outras sempre estão presentes na vida de Odenildo, que se lembra do dia em que, já adulto, foi fazer um exame de ressonância e para se acalmar fechou os olhos e se lembrou do passado. “Fechei os olhos. Respirei fundo de novo e encanei o avatar o tempo de eu menino, correndo pelos quintais da minha infância, escalando as frondosas árvores frutíferas, alimentando as galinhas no terreiro do vizinho, observando os pacientes giros de um cata-vento e mergulhando profundamente nas águas claras de límpidas do igarapé de São Raimundo” (p. 97).

O precioso toque e olhar maternos

Retrato da mãe de Odenildo Sena (Foto: acervo pessoal)

Em várias crônicas do livro, Odenildo aborda o afeto materno, expresso principalmente nos momentos de alimentação, como o da confecção do capitão, feito com feijão amassado e farinha. “Mãe salpicava uma farta porção de farinha sobre o feijão em seu prato e mexia por alguns minutos os dois ingredientes, assim como quem prepara cimento. Suas mãos, hábeis em movimentos intermitentes, fazia a vez da colher de pedreiro. E nossos olhinhos infantis, ansiosos pelo desfecho, acompanhavam, com enorme atenção, aquele processo. Quando feijão e farinha deixavam de existir e davam lugar a uma massa seca e liguenta, era chegada a etapa por que nosso desejo dobrava. Mãe passava a trabalhar apenas com a mão direita. Amassava, com paciência entre a palma da mão e entre os dedos, uma porção daquele produto até ele adquirir uma consistência mais sólida e a forma de um bonequinho. Estava pronto o capitão” (p. 126), entregue um a um, a mão renunciava sua porção em favor dos filhos.

Mulher com grande capacidade de improvisar na cozinha, produzia verdadeiros milagres para multiplicar os alimentos para uma família numerosa, tal como aconteceu no dia em que, por descuido, deixou cair uma barra de sabão dentro da panela de feijão e naquele dia não poderia oferecer o cobiçado capitão às crianças. “Minutos depois, resignada e já voltando a cantarolar bem baixinho, teve que apelar para um daqueles milagres que só Mãe sabia fazer: transformar dois ovos, uma pequena lata de conserva e meio quilo de farinha em um verdadeiro banquete” (p. 115). Outra cena é a dela preparando o lanche das crianças com claras em neve, acrescendo depois a gema, farinha e açúcar. Também fazia bolinhos fritos, caldo da caridade com farinha, água, sal e cheiro verde. Com farinha e outro ingrediente, ela “alimentava um batalhão” com suas iguarias (p. 197-8). Nos dias de plantão, chegava em casa trazendo na sacola uma lata de leite com os excedentes da comida servida no hospital, para a alegria dos filhos. Para economizar, ela também fabricava as lamparinas com latas de leite, iluminando a noite das crianças (p. 130).

Com grande capacidade de comunicar-se, falando frases de efeito (p. 145), ou sem pronunciar uma única palavra e fazendo gestos (p. 187), a Mãe tinha o olhar penetrante e podia expressar tudo o que precisava, obtendo respostas imediatas das crianças. No diálogo silencioso ou com palavras, repassava valores e corrigia comportamentos. Na sua simplicidade, conseguia fazer com que um simples pião (p.154), dado como presente de Natal pelo Papai Noel, se transformasse num precioso brinquedo, porque o carinho do gesto era mais precioso do que tudo na relação materna com os filhos.

Os igarapés de águas limpas: fontes de inspiração

Vista do Igarapé do São Raimundo a partir do porto nos anos 70 (Foto: Manaus de Antigamente)

Nas crônicas de Odenildo, o igarapé de São Raimundo, com suas águas limpas, é fonte constante de inspiração, quando ele se recorda das atividades domésticas e do banho. A água era recolhida em lata pela irmã mais velha, e também usada como fonte de lazer (p. 97). Os meninos subiam pelas margens do igarapé até o bairro vizinho da Glória, para realizar pescaria clandestina, subindo nas toras de madeira. Levavam as minhocas em latas de leite, dentro da terra preta, e usavam um “caniço feito de vara, linha de nylon presa na ponta e o pedaço de cortiça à flor da água”, e ficavam aguardando o peixe a fisgar a isca (p. 188), a não ser que a mãe aparecesse e os chamasse para casa.

Relembrando a irmã mais velha que buscava a água no igarapé com a lata na cabeça, Odenildo recorda: “Era necessário entrar no igarapé com a lata na cabeça e avançar lentamente, até a água chegar ao pescoço, para só então colher uma água mais limpa e cristalina” (p. 149). Em casa, a Mãe concluía o ritual: passava a água na peneira forrada com tecido, eliminando os resíduos e depositava a água num camburão na cozinha, ao lado do jirau, “uma pequena plataforma, também de madeira, onde se tratava o peixe, cortavam-se as verduras e lavava-se a louça” (p. 113). O outro camburão de água recolhida da chuva ficava no quintal e servia para o banho.

“O camburão ficava ao relento, sem qualquer proteção e a água de chuva adormecida doía feito o diabo em nossos ossos. Como sabíamos que depois passaríamos por um exame de corpo de delito feito por Mãe, não contávamos dúvida: segurávamos com firmeza a cuia, contávamos até três e jogávamos com a máxima rapidez sobre a cabeça sucessivas cargas de água. Em seguida, a operação era completada com alguns pulinhos que acabavam por aliviar o frio medonho, até nos secarmos com a toalha feita de saco de trigo com rendas nas extremidades” (p. 148).

Ali, às margens do igarapé de São Raimundo, onde havia o Porto das Catraias para as pessoas embarcarem para irem para o bairro de Aparecida, as crianças costumavam ficar esperando a chegada da diretora da escola, que vinha do bairro de Aparecida para trabalhar (p. 47). Às margens do igarapé, as crianças também ficavam observando os bois que chegavam de barco para serem descarregados no matadouro do bairro vizinho da Glória. Os barcos que transportavam o gado chegavam até um determinado ponto para descarregar a boiada, e depois os animais eram soltos na água, e guiados por um vaqueiro, montado num cavalo até o matadouro.

“Nessas alturas, vestindo meu calção branquinho, habitualmente confeccionado por Mãe com tecido de saco de trigo, compunha a barulhenta plateia do lado dos amigos de minha meninice […]. “Nosso desejo silencioso era haver um forte motivo para ser usado, diante da eventual teimosia de algum garrote rebelde que se desgarrasse e se recusasse a seguir fielmente o resto da boiada. Aquilo sempre nos fazia lembrar os caubóis de nossa convivência, em todas as tardes de domingo no Cine Ideal (p. 157-8).

A aventura mais encantadora das crianças, no entanto, era poder brincar na chuva. “Aos gritos de ‘lá vem chuva’, em questão de segundos, mobilizávamos a garotada da vizinhança e partíamos em grupo para o ponto de encontro tacitamente acordado com os meninos de outras ruas. No trajeto, já envolvidos pelos fortes e abundantes pingos da chuva encharcando os cabelos e deslizando em dádiva sobre nossos rostos, provocávamos uns aos outros, lançando bolinhas de barro, que se espatifavam, colavam à pele e logo se desfaziam em um caldo amarelado que escorria pelo corpo e manchava temporariamente os calções brancos” […] Minha brincadeira predileta era deitar-me de barriga no chão e ser empurrado declive abaixo por um dos colegas. Já na outra extremidade, antes do meio-fio, improvisava uma manobra radical e evitava chegar no asfalto” (p.118-9).

A paixão pelo cinema

Fachada do Cine Ideal, no São Raimundo (Foto: Reprodução redes sociais)

Desde criança, Odenildo era apaixonado pelo cinema, e expressa isso em várias de suas crônicas. Como a entrada no cinema requeria o pagamento de ingresso, ele e os amigos tinham várias estratégias para assistir filmes. O cinema do bairro de São Raimundo era o Cine Ideal, e tinha sessões diárias à noite, projetando filmes proibidos para os “frangotes de calças curtas”. O agente do juizado de menores ficava de plantão para evitar a entrada de menores de idade (p. 155). Os meninos iam admirar os cartazes dos filmes nas vitrines da fachada principal do prédio e ficavam na expectativa do lançamento dos que seriam liberados para as crianças.

Na rua lateral do cinema, havia uma janelinha e ali os meninos tentavam saciar a vontade de ver os filmes, disputando um lugar na janelinha, até que fossem percebidos pelo gerente. “Havia uma janelinha, bem no alto, daquelas de treliças, por onde conseguíamos vislumbrar pedaços de imagens, no canto direito da tela. Mas o encanto não ia longe. Sabedor do nosso hábito, o gerente do Ideal, implacável e friamente, acionava um cordãozinho e fechava a janela, negando-nos aquele prazer” (p. 152). Então, para conseguir entrar no cinema, Odenildo e os amigos tinham outras estratégias com o sr. Davi Alcides, descendente de turco, que trabalhava no cinema e dava um jeito de colocar as crianças para dentro do local sem o gerente perceber.

“O trabalho começava pela varrição de cada fileira, para recolher as centenas de papéis de bomboms da safra da noite anterior. Em seguida, vinha a aplicação, poltrona a poltrona [eram 400], do velho e bom óleo de peroba, que dava o brilho. A nossa pressa em dar conta do recado deixava a superfície das poltronas sempre lambuzada, controle de qualidade aferido por amostragens pelo seu Davi Alcides. Uma vez por mês, nossa mão de obra era acrescida da lavagem do salão, à base de latas d’água na cabeça e abundante sabão tuxaua” (p. 182). Assim, a parceria ficava estabelecida. “Postado num banco de madeira ao lado da urna, onde depositava os ingressos recebidos dos clientes, observava os nossos olhinhos sonhadores, tristes e pidões. Num descuido do gerente, que montava guarda na entrada do cinema, seu Alcides nos encarava com uma piscada forte do olho direito e fazia um gesto com a cabeça. Era a senha para, numa questão de segundo, entrarmos no mundo do cinema e dos grandes sonhos” (p. 168).

Aos domingos, a recompensa era redobrada, devido às sessões das 9 horas, 16 e 20 horas para o público adulto. E a varrição ocorria após cada sessão (p. 182). No domingo também havia matinê à tarde para as crianças. Os meninos costumavam ir cedo para fila do cinema, para ofertar o lugar para casais que queriam ter a prerrogativa de entrar antes para escolher os melhores lugares. Geralmente, o rapaz que comprava os ingressos dava o troco para os meninos que cediam o lugar na fila (p. 156). Odenildo também vendia bombom na fila do cinema para arrecadar o dinheiro para pagar sua entrada. Às vezes, quando o que arrecadava era suficiente para pagar um cinema no centro da cidade, ou em outro bairro, os meninos pegavam a catraia, iam para o centro de Manaus e dali se dirigiam para outros cinemas ver cartazes e/ou assistir filmes: Cine Odeon, Cine Avenida, Cine Polytheama, Cine Guarany, Cine Ypiranga, Cine Éden Vitória, Cine Popular, Cine Pálace (p. 173). Numa das crônicas, Odenildo aborda seus filmes preferidos e conta que, quando adulto, criou o próprio acervo para assistir filmes em casa (p. 101).

O gosto pela leitura e escrita

Máquina de escrever do acervo de Odenildo (Foto: Reprodução facebook)

Leitor assíduo de revistas em quadrinhos quando criança, Odenildo e os amigos dinamizavam e variavam a leitura com as revistas do Zorro, Mandrake, Superman, Batman, fazendo escambo [trocas] na frente do cinema. “Chegávamos cada um com sua pilha de gibis debaixo do braço e logo começavam as negociações de troca. No geral, o escambo se dava na base de um para um, respeitados o estado de conservação do produto e o seu grau de ineditismo. Isso porque chegava a uma situação tal, que alguns gibis já haviam circulado pelas mãos de diversos donos, todos nós já o havíamos lido, o que provocava a saturação e a consequente desvalorização da obra naquele mercado. Bem melhor, porém, para os iniciantes naquele rentável negócio, que chegavam a arrematar até três revistas em quadrinhos em troca de uma, e, com isso, iniciavam seu processo de capitalização” (p. 140). Os gibis raros e preciosos eram consorciados entre dois ou três meninos, que juntos ofereciam “ousados lances de até seis revistas em troca de tal raridade” e compartilhavam o gibi (p. 140).

Na vida adulta, Odenildo manteve o gosto pela leitura e pelos livros, e conta como os utiliza na vida adulta (p. 84), deixando dentro deles panfletos (p. 77) que causam surpresa quando relê o livro. Também registra seu toque de leitor em cada página (p. 79), fazendo traços de marcador, anotações nas margens e faz pequenas dobras no canto das páginas preferidas, para serem acessadas rapidamente quando necessita da informação. Usa os livros para produzir seus próprios textos e também gosta de relê-los (p. 91).

O autor relembra como, depois das aulas, apreciava ir ao posto dos Correios observar as pessoas “lambendo as bordas do envelope” para lacrá-lo e fazendo o mesmo para fixar os selos nas cartas que eram postadas (p. 122). Odenildo também desenvolveu o gosto pela escrita, e relembra como aprendeu a datilografar na máquina Underwood, comprada pela irmã mais velha e como aprendeu, sozinho, a habilidade de escrever com máquina, usando o “Manual de dactilografia”. Com apoio da mãe, datilografava sem sequer olhar o teclado. A velha máquina de datilografia Remington também é lembrada na escrita de suas cartas (p. 61) e ele também relembra do primeiro texto policial jornalístico que produziu e que foi publicado no jornal dos Diários Associados: “Derrame de dinheiro falso” (p. 105-7).

Outras diversões

Cervejaria Miranda Corrêa (Foto Reprodução Facebook)

Odenildo relata como eram divertidas as festas do padroeiro no São Raimundo, com barracas de madeira, cobertas com palha e decoradas com bandeirinhas, que, com dedicação dos devotos vendiam toda espécie de bebidas e guloseimas. “As bebidas eram conservadas em camburões com pó de madeira, recolhido nas serrarias, e gelo produzido na velha Cervejaria Miranda Corrêa. […] Nós, meninos, por outro lado, aproveitávamos o fuzuê para nos dividir entre a barraca de pescaria e as travessuras. De uma nunca me esqueço. Amarrávamos uma nota de um cruzeiro em um fino barbante, que, discretamente, era coberto por areia. De longe, ficávamos monitorando. A cena sempre se repetia. Um transeunte se sentindo sortudo da vida enxergava a nota, olhava para um lado e outro e, com discrição, baixava para pegá-la. Nesse exato momento, puxávamos o barbante e desconcertávamos o premiado com gostosas e intermináveis gargalhadas” (p. 159-160).

No rádio de pilhas grandes Telefunken, que ficava sobre um caixote de madeira na sala, Odenildo desfrutava dos programas radiofônicos internacionais em outras línguas e também em português: rádio BBC de Londres, Voz da América dos EUA, Rádio Transmundial das Antilhas Holandesas, rádio Havana Livre de Cuba, rádio Central de Moscou, rádio Tirana da Albânia, rádio Nacional de Lisboa, e Detsche Welle da Alemanha. Chegou a enviar uma carta para a rádio de Praga da Tchecolosváquia, e ouviu a leitura dela no programa, e o apresentador o mencionou como um “assíduo ouvinte”, o que muito o envaideceu (p. 163-4).

Construção de brinquedos e outras habilidades

Foto de 1966 de Bruno Barbey em Manaus

Em várias crônicas, Odenildo relata como construía brinquedos: o rolo compressor de terra, a amassadeira, construída com uma lata de leite com furo na tampa e cordão para puxar (p. 26); o cata-vento com pedaços de madeira e lata de óleo (p. 131-2); o jogo de botões com caroços de tucumã (p. 39), e a pipa [papagaio ou pandorga] (p. 166). Desfrutou desses conhecimentos para fabricar brinquedos com o filho Eric Sena, com quem acessou muitas memórias da própria infância enquanto brincava. Odenildo reflete no livro o gosto que as crianças da atualidade têm para desmontar brinquedos, um processo inverso ao que ele fazia na infância ao fabricá-los (p. 30), e chama a atenção sobre questões do filho criança fazer alertas em relação ao meio ambiente e não desperdício de água (p. 35), e a lógica para decifrar e refletir sobre expressões de linguagem dos adultos (p. 33 e p. 45).

Dentre outras habilidades rememoradas por Odenildo estão: revelar fotografia com orientação do padre holandês João de Vries (p. 51), encadernar revistas seguindo instruções passo a passo (p. 69), aprender a emitir mensagens por radiotelegrafia (p. 89). Ele também relembra a habilidade com marcenaria, desenvolvida na vida adulta, e a oficina que montou em casa, assim como o aperfeiçoamento adquirido em São Paulo num curso do Sesc, com o colega Walmir Albuquerque, no período em que fazia mestrado (p. 99). Além de ter aprimorado o prazer da infância na construção de objetos com madeira, descobriu que a habilidade manual favoreceu a realização de seu trabalho acadêmico na área de Semântica.

Palavras finais

Odenido Sena (Foto: Instagram)

O título do livro é o mesmo da crônica, na qual Odenildo relembra o filme “Zorba, o Grego” (p. 55), no momento em que a personagem principal dança com seu chefe na praia, e diz que ele tem tudo para ser feliz, mas lhe falta loucura. Em outra crônica, Odenildo relembra que levou esse filme para a escola onde dava aulas, para compartilhar o conteúdo com os alunos. Era na década de setenta e o país estava sob o regime da ditadura militar. Odenildo havia criado um cine clube que funcionava numa sala da escola que tinha projetor 16 milímetros e ele alugava filmes para serem projetados em sessões para os alunos. Também e emprestava os cartazes para a divulgação e após as sessões abria espaço para o debate.

No dia em que foi apresentar o filme “Zorba, o Grego”, foi surpreendido com a presença de dois policiais federais do departamento de censura que, com truculência, pediram o documento de autorização para ele poder passar o filme na escola. Odenildo não tinha o documento e teve confiscados os rolos do filme e ainda sofreu ameaça de ser preso, caso não obedecesse aos policiais. Teve que ir à delegacia se explicar para reaver as latas de filme, e fazer a devolução à distribuidora, pagando multa pelo atraso na entrega.

Da memória da repressão da ditadura militar no país, Odenildo aborda o sentimento de viver o isolamento social em casa, para conter o avanço do novo coronavírus em Portugal, sendo governado por um presidente que seguiu rigorosamente as recomendações da Organização Mundial de Saúde (p. 323), e expressa a preocupação e indignação sobre a forma como a pandemia estava sendo tratada no Brasil, pelo ex-militar, defensor da ditadura, Jair Messias Bolsonaro.

“Tornou-se verdadeiro aliado do vírus. Estimulou e continua estimulando, numa insistência insana e irresponsável, o rompimento do isolamento social, única forma de deter a disseminação do vírus, evitar o colapso do sistema de saúde, salvar vidas e livrar o país de uma calamidade incontrolável…” (p. 317). Na ocasião em que escreveu essa crônica, o presidente da República disputava poder político com o ministro da saúde e o número de doentes e de mortes aumentava a cada dia. Odenildo relata como precisou reinventar a vida durante a pandemia, no isolamento social (p. 305), e como foi o desafio de usar máscara, a lição de amor e de solidariedade entre as pessoas (p. 310) e o heroísmo dos profissionais de saúde que conviveram com o vírus, arriscando a própria vida nos hospitais (p.302 e 312). Lembra da banalização da morte no nazismo e as lições aprendidas pelo povo alemão (p. 332) e expressa seu sentimento como brasileiro. “Percorro vários sites internacionais. Perplexo e estarrecido, o mundo inteiro olha para o Brasil. Triste e indignado, baixo a cabeça, sangro de vergonha e coloco o ponto final do diário de hoje” (p. 329).

Capa do livro (Divulgação)

Fonte:

SENA, Odenildo. A felicidade precisa de loucura: uma sinfonia do meu tempo em 115 crônicas escolhidas. Manaus – AM: Editora Valer, 2022.

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Manaus (AM)

Elvira Eliza França

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS). Criou a técnica terapêutica com as expressões das emoções denominada “Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos - CAMM.”