A dupla fundação de Manaus

SÉRGIO FREIRE Há diferentes formas de se analisar os fatos do mundo. Na ciência, podemos observar o comportamento cultural pela sociologia ou pela antropologia, por exemplo. Como a linguagem está em tudo e serve de elemento de recorte do mundo, […]

Por Amazônia Real Publicado em: 17/11/2013 às 16:09

SÉRGIO FREIRE

Há diferentes formas de se analisar os fatos do mundo. Na ciência, podemos observar o comportamento cultural pela sociologia ou pela antropologia, por exemplo. Como a linguagem está em tudo e serve de elemento de recorte do mundo, podemos também pensar a cultura na perspectiva da linguagem pelo discurso, área em que trabalho.

Quando se analisa um fato a partir de determinada perspectiva, é fundamental reinscrever os conceitos e localizá-los. Do ponto de vista da linguagem, “cidade” deixa de ser um conceito definido pelos limites físicos da geografia para ser pensado como espaço simbólico de sentidos urbanos. “Cultura” deixa de ser o conceito sócio-antropológico de um conjunto de crenças, costumes, ideias e valores para ser um conjunto dos sentidos possível no espaço simbólico do urbano.

A partir desse deslocamento, levanto uma tese: a de que Manaus possui dois discursos fundadores de sua matriz identitária. Por discurso fundador, entendo os discursos que funcionam como referência básica no imaginário constitutivo de um povo. Para mim, em relação a Manaus, são fundadores o discurso da Manaus Cosmopolita e o discurso da Manaus Cabocla. São eles que ancoram os sentidos da cidade.

A Manaus Cosmopolita funda-se na Belle Époque, consolida-se com a Zona Franca e se reacende com a escolha da cidade como subsede da Copa de Futebol de 2014. A Manaus Cabocla, por usa vez, ancora-se no discurso ecológico, do verde, do meio ambiente, da biodiversidade. Essas duas estéticas, a Cosmopolita e a Verde, são a base de referência dos discursos dos sujeitos manauaras. Nós, neocaboclos, nos caracterizamos pela necessidade de circulação entre o global fugaz e o local mediato. Precisamos falar dos dois na dose certa para não virar nem pastiche (como as danças de bois para turistas na Ponta Negra) nem exótico (como a estética um tanto quanto over dos Raízes Caboclas). Pastiche e exótico são os extremos de cada discurso.

A dosimetria é fundamental para que se faça sentido aqui. O símbolo de Manaus na Copa é um bom exemplo. Há a bola da copa (o cosmopolita), ladeada por duas folhas (o caboclo). O programa Fala Governador, apresentado na época de Eduardo Braga, reportava os avanços do Estado (o cosmopolita), mas era apresentado por um locutor que fazia caricatura da fala local (o caboclo). Quando da escolha da cidade para subsede da Copa de futebol, a primeira mensagem oficial veiculada na televisão dizia mais ou menos assim: “Vencemos! Vamos mostrar ao mundo nossa capacidade de desenvolvimento sem comprometer o nosso meio ambiente”. Outra cena comum é ver locais em fábricas e instituições serem batizados com nomes de rios, árvores, animais ou frutas regionais. “Auditório Solimões”, sala “Vitória-Régia”, “Piso Tucumã”. A explicação da logomarca deste site em que você lê este texto é outro exemplo disso. Para onde quer que se olhe, vemos esse jogo da dupla identidade. De uma forma ou de outra precisamos dar conta das duas coisas. É assim, caro leitor.

Para sair do universo local, a cultura precisa lidar com esses discursos sem deixar que se anulem. O escritor Milton Hatoum é um exemplo de como isso pode ser feito. Por meio do domínio da técnica literária (o cosmopolita), Hatoum diz a região em seus romances (o caboclo). Como nos outros casos, a literatura que perde a dose vira pastiche (porque lhe falta amazonidade verdadeira) ou vira exótica (porque dela transborda caboclitude demais). Pensemos a relação desse duplo jogo quanto ao Amazonas Film Festival, ao Festival de Ópera, aos bois, à música popular amazonense. A Bienal de Livros do estado sintomaticamente só contou com autores amazonenses que já eram sucesso em nível nacional. Em cada um desses exemplos, nós vamos ver como essa dança simbólica entre o cosmopolita e caboclo se dá, marcando lugares, rotulando práticas, incluindo e excluindo e, claro, definindo políticas culturais, no que vale ou não vale a pena investir.

Minha análise discursiva sobre nossa identidade me leva a uma hipótese complementar: esse jogo para encontrar o equilíbrio de ser ao mesmo tempo verde e moderno, sem deixar que essa contradição descambe, faz com que vivamos em uma espécie de esquizofrenia identitária. Quando os dois discursos se desencontram, há uma paralisia que nos incapacita de ir adiante. Por isso estamos sempre recomeçando do ponto de vista social. Na eterna dúvida entre querer ser cosmopolita e querer ter sua identidade local garantida, por exemplo, valorizamos em excesso as pessoas e as coisas que vêm de fora e criamos um teto para as coisas e as gentes que são daqui, só permitindo que elas possam ir até certo ponto. Ir além desse ponto é desafiar romper com o limite simbólico e ameaçar desequilibrar o estado de coisas. Não pode. Daí ser preciso ir para fora e se tornar um de fora para poder voltar e ultrapassar esse teto imposto pela subjetividade coletiva. Em Manaus, mais do que em outros lugares, há uma supervalorização do Outro, do estrangeiro. Sim, há um tom psicanalítico aqui. É difícil dar certo e fazer sucesso em Manaus se você é um nativo porque o sucesso nega o equilíbrio, desafia o discurso. De certo modo, como dizia Tom Jobim, chega a ser até ofensa pessoal fazer sucesso. Do ponto de vista da subjetividade social inconsciente é como se fosse ofensa mesmo. O sucesso pessoal meio que desnuda o fracasso coletivo e precisa ser sublimado ou expurgado, de várias formas, como dá. E, licença, caro leitor: não falo aqui do sucesso fotogênico das colunas sociais e de suas conhecidas trocas de favores. Isso é um outro papo.

É claro que essa é uma análise e uma análise precisa generalizar ao mesmo tempo em que pressupõe exceções, devidamente resguardadas. No entanto, cada vez mais essa poli-identidade da cidade, essa fragmentação, tem me interessado do ponto de vista acadêmico, como objeto de estudo. Escrevi um trabalho preliminar sobre isso e o apresentei no encontro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). O debate foi muito produtivo. Tenho trabalhado em um ensaio sobre o tema, buscando compreender esse fenômeno e suas marcas na política, na educação, na saúde, nos transportes, no meio ambiente, na comunicação e nas mais diversas áreas.

Penso que seja preciso compreender e explicitar melhor as nuances desse lugar predominante na fala de Manaus. A hipótese é de que seja um lugar notadamente marcado pela luta ferrenha e pouco tranquila entre um local constitutivo e um global desejado na psique da cidade. Quem é e o que nos fala o caboclo hi-tech que sustenta a cidade? Por que ele quer ir, mas só consegue ficar? Por que quando fica lamenta porque não foi? São perguntas que respondidas talvez revelem algumas coisas que não temos querido ver. É preciso pensar a cidade, de várias formas, de vários jeitos. A linguagem é um desses jeitos. Pela linguagem somos. Exatamente quem somos é a questão que interessa.

Reportagem Noticiosa

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