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AMOR BANDIDO

“Juma não morreu em vão. O seu sacrifício sacudiu a consciência do mundo inteiro para a questão dos animais que vivem em cativeiro”. (A foto acima é de autoria de Alberto César Araújo) LEYLA LEONG Equilibrada em um galho […]

Onça em jaula do Zoo do CIGS em 2013 (Foto: Alberto César Araújo/AmReal)

Por Amazônia Real Publicado em: 24/06/2016 às 16:49

“Juma não morreu em vão. O seu sacrifício sacudiu a consciência do mundo inteiro para a questão dos animais que vivem em cativeiro”. (A foto acima é de autoria de Alberto César Araújo)

LEYLA LEONG

Equilibrada em um galho da mangueira, a papagaia Rosa repetia comigo as declinações latinas: “rosa, rosae, rosam,rosarum…”. Devo a ela o meu ingresso na faculdade de direito, no tempo em que o latim caía no vestibular.

Próximo dali, preso pela cintura a uma longa corrente, Chico, um minúsculo macaco-de-cheiro virava a cabecinha de um lado para o outro querendo entender. Parecia “gente”!

Ele fazia parte do acervo de animais de estimação da casa -os xerimbabos-, junto com a Rosa, os periquitos, as tartarugas, um jaboti e um rouxinol do rio Negro, que, mesmo preso, enchia a casa com seus gorjeios e era exibido para as visitas como uma joia rara.

Saídos diretamente da floresta para a vida doméstica, esses eram os pets da Manaus dos anos 1950. Eram presentes finos trazidos do interior para retribuir favores e gentilezas, na mesma linha do mel de cana, do queijo manteiga, do açaí e do beiju.

Os macacos no Zoo do CIGS (Foto: Fábio Pontes/AmReal)

Fosse pela falta de conscientização pessoal ou pela naturalidade com que tudo acontecia, a verdade é que não havia qualquer culpa em tê-los ali, na artificialidade do contato humano.

Além dessa vivência doméstica com animais em cativeiro, tampouco as visitas dominicais ao Aviaquário instalado na Praça da Matriz, onde aves e peixes serviam de atração turística, marcaram-me tanto quanto a experiência de fitar o olhar triste de um Gavião Real, a ave de rapina mais poderosa da América Latina, que aconteceria muitas décadas depois.

Conheci esse rei da floresta, cujas asas quando abertas medem, de ponta a ponta, quase dois metros, um ser criado para voar longas distâncias por cima das copas das árvores mais altas, em uma visita ao zoológico do CIGS, que acabou definindo de vez a minha posição diante dos animais.

Embora abatido pela desgraça de estar em cativeiro, o Gavião Real conseguia manter uma presença impressionante, uma decadência elegante. Estava cativo, imóvel, isolado e exilado.

De repente olhou para mim e, se não percebi o escorrer de uma lágrima, captei o pedido de socorro daquele rei coroado de plumas cinzentas, condenado à prisão perpétua em terra estrangeira.

A força daquele olhar comoveu-me muito. Encantei-me com a beleza desse animal feito para viver em um nível físico e espiritual impossível de ser atingido pelos seus algozes.

Transformei em livro a sua história, e decidi lutar pela extinção dos zoológicos e pela proibição do trabalho e exibição de qualquer animal.

Um gavião real no habitat natural (Foto: Diogo Lagroteria)

Essas lembranças vieram-me à cabeça sob o impacto do assassinato – em legítima defesa, segundo o Exército-, da onça-pintada Juma. A onça, por acaso, é o símbolo das Olimpíadas Rio 2016 e Juma foi exibida acorrentada durante a passagem da Tocha Olímpica por Manaus.

Não se pode negar a importância das ações do Centro de Instrução de Guerra na Selva (CIGS) no treinamento de pessoal para defender as fronteiras vulneráveis da Amazônia. E considerar também as suas atividades na questão da defesa ambiental da região.

Com certeza o trágico episódio da morte de Juma não será uma mancha indelével a sujar para sempre a imagem dessa corporação.

Todo mundo erra, e às vezes erra feio. Mas também há mortes que têm um peso maior, que têm o poder de chamar a atenção e direcionar a mente humana para a evolução e a mudança de comportamento.

Juma não morreu em vão. O seu sacrifício sacudiu a consciência do mundo inteiro para a questão dos animais que vivem em cativeiro, chorando baixinho na solidão das suas jaulas, exilados em terras distantes, submetidos a testes cruéis, exibidos em zoológicos e circos onde, há até pouco mais de 50 anos, ainda eram atração irmãos siameses, corcundas, mulheres barbadas e anões.

O momento da Amazônia exótica, cheia de mistérios, da Amazônia desconhecida, da “belle époque ao inferno verde” já passou há muito tempo.

Já passa da hora da mudança de mentalidade.

É hora do Exército admitir publicamente que errou, e a partir desse mea-culpa que todos esperam, começar a praticar o verdadeiro amor pelos animais, a começar pela compaixão por qualquer forma de vida.

O mais triste dessa história é que nesses cinquenta e poucos anos de existência da instituição, passaram pelas jaulas do CIGS outras sete onças :“Teixeirão”, “Zeus”, “Cosac”, “Garrone”, “Lana”, “Chiara” e “Simba”. Todas vítimas de um amor bandido que nós aplaudíamos nos desfiles militares.

O zoológico onde Simba e outros 190 animais de várias espécies cumprem pena de prisão perpétua é o único do mundo administrado pelo exército, que tem o orgulho de divulgar que é também o lugar turístico mais visitado da cidade, principalmente por jovens e crianças.

Leyla Leong é jornalista, autora de livros de literatura infanto-juvenil, a maioria deles com temática de preservação ambiental. Entre eles “Essa Tal de Natureza”; “Cida a Macaca Travessa” ; “Sua Majestade o Gavião Real”; “Duas Histórias da Noite”. No momento, a jornalista busca parcerias para publicar “O Circo”, sobre o trabalho artístico de animais nos picadeiros. O livro é dedicado ao domador italiano Orlando Orfei, descendente de uma dinastia de mais de 200 anos de domadores de tigres, leões, panteras e hienas. O Grande Circo Orlando Orfei, recolheu e dobrou as lonas quando o Brasil decidiu abolir o trabalho animal em alguns estados da federação.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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A agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real é uma organização sem fins lucrativos, criada por jornalistas mulheres em 20 de outubro de 2013, em Manaus, no Amazonas, Norte do Brasil. Sua missão é fazer jornalismo ético e investigativo, pautado nas questões da Amazônia e de seu povo. A linha editorial é voltada à defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos. ([email protected])