Após levante popular, moradores da periferia de Belém terão Auto de Natal no Curro Velho

Por Amazônia Real Publicado em: 06/12/2019 às 18:12

O espaço cultural atende a alunos de escolas públicas, populações de baixa renda e comunidades tradicionais – quilombolas, indígenas e ribeirinhas (Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real)

Roberta Brandão, especial para Amazônia Real

Belém (PA) – Cores, figurinos, coreografias ensaiadas, falas na ponta da língua, segurança nos movimentos circense. Tudo pronto para que o Auto de Natal 2019 “Circo minha infância”, do Núcleo de Oficinas do Curro Velho, seja realizado na noite desta sexta-feira (6). Uma nova apresentação está marcada para amanhã (7) a partir das 18 horas, também na aérea externa do espaço, localizado na Vila da Barca, no bairro Telégrafo, região da Baía do Guajará, na periferia de Belém. Os artistas, ao todo são 250 pessoas, entre crianças, adolescentes, jovens e adultos, estão vivenciando nesses dias aquela ansiedade boa da estreia, deixando para trás todos os problemas que antecederam o evento tradicional da região metropolitana da capital do Pará.

O Núcleo de Oficinas Curro Velho é um espaço cultural, mantido pela Fundação Cultural do Estado do Pará, ligada à Secretaria de Estado de Cultura. Como diz o governo, na página oficial da fundação na internet, “o Curro Velho é um espaço voltado para um público de estudantes das escolas públicas, populações de baixa renda e comunidades tradicionais – quilombolas, indígenas, e ribeirinhas, e alcança em média 12.500 pessoas/ano, dispondo de vários espaços, tais como: a Biblioteca “Carmen Souza”, a Praça da Beira, um teatro de arena e uma lojinha de produtos oriundos das oficinas”.

No primeiro semestre deste ano, as oficinas regulares no Núcleo de Oficinas do Curro Velho não foram realizadas, segundo os moradores da Vila da Barca, entrevistados pela agência Amazônia Real. No segundo semestre foram ofertados cursos, mas o número diminuiu de oito para duas oficinas. Os instrutores tiveram seus pagamentos atrasados, a biblioteca começou a fechar mais cedo e as crianças passaram a não ter o lanche garantido. A apresentação, que marca a conclusão dos trabalhos, estava ameaçada de não acontecer.

Alunos, ex-alunos, servidores, instrutores e a comunidade do entorno do Núcleo realizaram uma série de protestos e atos culturais, em um movimento denominado #ocurrovelhonaopodeparar, que exigiu o funcionamento do Curro Velho, junto à Fundação Cultural do Pará, presidida por João Augusto Vieira Marques Junior.

A tag #ocurrovelhonaopodeparar foi criada em um grupo da rede social WhatsApp, por adolescentes que são alunas do Núcleo de Oficinas do Curro Velho e moradoras da Vila da Barca. A insatisfação dos usuários e frequentadores do Curro Velho vem desde a troca da gestão da Fundação Cultural do Pará, em janeiro, quando o governador Helder Barbalho (MDB) assumiu o governo.

As crianças também participaram dos protestos
(Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real)

As crianças e jovens que estudam no Curro Velho são chamadas, carinhosamente, de “cria”. Até mesmo os adultos que – por muitas vezes – descobriram na instituição um ofício e um fazer cultura, são chamados assim. É o caso de Jeff Moraes, hoje cantor, ator, compositor e apresentador de TV, que esteve entre os nomes dos artistas que participaram do ato político cultural em defesa do Curro Velho. “O Curro Velho me salvou, a mim e a tantos outros meninos pretos, e disso eu tenho certeza. E salvou da forma mais bonita: salvou através da arte”, defende Moraes.

“Eu, como cria, eu faço curso aqui desde os meus três anos de idade, e acho que isso que estão fazendo com a gente é uma humilhação”, afirma Stefany Cristine, de 12 anos, “cria” do Curro Velho, aluna de circo e moradora da Vila da Barca.

O ato político cultural na Vila da Barca ocorreu após os protestos que se iniciaram na manhã da terça-feira (26), quando crianças, adolescente e adultos tentavam entregar para o diretor do Curro Velho, João Clóvis Oliveira, um abaixo assinado com as principais exigências de melhorias para a instituição. Como no primeiro momento o movimento foi impedido de entrar no Núcleo de Oficinas, os participantes optaram por fechar uma via movimentada, a Avenida Pedro Álvares Cabral. Após essa manobra, as portas se abriram e o documento foi entregue aos gestores que estavam dentro da instituição. “A comunidade quer dialogar com os gestores e participar ativamente das atividades de quais os filhos participam”, explica Cléia Carmo, gestora de recursos humanos.

O ponto crucial para o estouro das manifestações foi o cancelamento, sem aviso prévio, das tão esperadas oficinas do mês de novembro, que já estavam com as inscrições encerradas, devido à grande procura de alunos. “Teve gente que veio de Ananindeua e soube aqui, na porta, que não iria haver oficina”, denuncia a estudante de administração, moradora da Vila da Barca e cria do Curro Velho, Yala Martins.

“Foi um choque o cancelamento brusco das oficinas, e isso causou a mobilização”, afirma a juíza de direito, Edilene Soares e mãe de aluno. Moradora da Cidade Nova, ela explica porque optou pela filha aprender cultura no Curro Velho: “Eu posso pagar uma instituição privada, mas eu quero que ela faça aula no Curro Velho. Por aqui tem profissionais de qualidade e porque quero que minha filha conheça a diversidade de pessoas; que ela conheça essa comunidade vizinha por uma outra perspectiva, não com medo”, defende a juíza.

A conquista dos moradores da Vila

“Cria” do Curo Velho, o artista Jeff Moraes fala durante a manifestação
(Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real)

O clima do ato político cultural nem de longe lembrava a situação atual da Vila da Barca, uma quebrada que inspira medo no resto da cidade de Belém, por causa do alto índice de violência, tráfico de drogas, condições precárias de moradias sem saneamento e outras carências básicas de infraestrutura. Com cerca de 5 mil moradores, o lugar surgiu na década de 30, com a ocupação de trabalhadores de uma fábrica de beneficiamento da castanha, pescadores e comerciantes, assim como de famílias que se deslocaram do interior do estado do Pará para o bairro do Reduto. As casas da Vila se dividem entre uma área onde tem palafitas (estruturas das casas com pedaços de madeira) e um conjunto habitacional construído, do qual a obra é inacabada.

Segundo a líder comunitária da Associação de Moradores da Vila da Barca, Fátima Sá, foi a vontade de reduzir a violência que trouxe a ideia da então Fundação Curro Velho para a Vila da Barca. Fátima mora no lugar há 50 anos. “Aqui tinha muita briga de gangue, muita violência mesmo. Foi nós que pedimos para o Hélio Gueiros fazer alguma coisa nesse curtume abandonado que ninguém queria. E foi assim que nasceu o Curro Velho. E até hoje, a polícia corre aqui: entra nas nossas casas como se a gente fosse marginal. Isso aqui é um benefício social e não podemos perder”, afirmou.

Movimento em prol do Curro Velho, em Belém
(Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real)

A então Fundação Curro Velho foi fundada em 1991, pelo ex-governador Hélio Gueiros (1925-2011). Hoje chamada de Núcleo de Oficinas Curro Velho, o espaço funciona nas dependências de um prédio histórico, com forte influência neoclássica de meados do século XIX (1861). O lugar foi construído para abrigar o primeiro matadouro de Belém, o Curro Velho. Depois, foi restaurado e adaptado para sediar o núcleo de formação e qualificação em educação.

Governo volta atrás

Após as mobilizações dos moradores da Vila da Barca, o governo do Pará voltou atrás. Conforme notícia divulgada no dia 2 de dezembro, pela Agência Pará, o presidente da Fundação Cultural do Pará, João Marques Junior, se reuniu com membros de uma comissão, formada por pais, instrutores, alunos e servidores do Núcleo de Oficinas Curro Velho, em Belém.

Conforme a nota, a reunião com a comissão ocorreu para discutirem as reivindicações apresentadas pela comunidade da Vila da Barca, entre as quais a realização do Auto de Natal. “A reivindicação, de imediato, é que a gente conseguisse um espaço adequado, com tudo o que as crianças merecem para o espetáculo que ocorrerá agora, na sexta (06) e no sábado (7), e o acompanhamento de todo o processo dos últimos três meses”, disse a instrutora Thalita Santos, uma das integrantes da comissão.

Na reunião, o presidente da FCP, João Marques, garantiu a realização dos eventos no Curro Velho. “Tivemos a oportunidade de confirmar a apresentação do Auto de Natal e o calendário de oficinas para o ano que vem. Vejo de forma bastante positiva, e isso nos dá legitimidade para ter realmente uma diretriz de gestão participativa que nos uniu aqui hoje”, frisou ele.

João Marque garantiu, também, a manutenção das oficinas regulares e de iniciação artística. “Reafirmo o compromisso do Estado de manter a programação do Curro Velho e atendê-lo como nossa principal estrutura de relacionamento, da cultura com cidadania e segurança pública, com geração de emprego e renda e inclusão social”, enfatizou o presidente da FCP, órgão responsável pela gestão do Núcleo Curro Velho, diz a notícia do governo.

Thalia Santos durante o protesto em defesa do Curro Velho, em Belém
(Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real)

Durante a reunião, de acordo com a Agência Pará, também foi confirmada a formação de um grupo de trabalho para a tomada de decisões sobre a instituição, em conjunto com a comunidade. O Curro Velho atende a moradores do entorno da Vila da Barca e pessoas de outros bairros da Região Metropolitana de Belém. “Agora, é acompanhar esse processo”, disse Thalia Santos.

O ensaio geral do Auto de Natal no Curro Velho ocorreu na última quarta-feira (05). Para tal, uma grande estrutura foi montada para execução do espetáculo, contrariando as previsões da diretoria, para alegria dos artistas.

“A gente não abandona os nossos compromissos. Isso aqui não é qualquer coisa. Tem gente que podia está na rua traficando, mas está aqui [no Curro Velho]. A gente fica triste quando não tem ensaio, quando não tem oficina”, conta aluna de teatro, Dulce Sayonni, de 10 anos. “É como diz a minha mãe: a arte e a educação andam juntas. Senão, ia ser tudo cinzento e o mundo precisa de cor”, afirma atriz mirim, Bruna Carolina, de 13 anos.

O movimento não pode parar

Ato em defesa do Curro Velho contou com a presença dos alunos
(Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real)

Historicamente, este não é o primeiro levante da comunidade da Vila da Barca para manter vivo o Núcleo Cultural Curro Velho, na periferia de Belém. Na década de 60, a comunidade, contrariando a especulação imobiliária da época, conseguiu ocupar e manter às residências em uma das margens da baía do Guajará. Esse perfil combativo permanece na comunidade até os dias atuais.

Em 2017, durante o governo do tucano Simão Jatene (2011 a 2018) os pais dos alunos das oficinas do Núcleo Cultural Curro Velho formaram um grupo e começaram a ficar mais presentes dentro dos ensaios e oficinas. Atualmente, o núcleo está organizado por 23 responsáveis de alunos, sendo 12 mães. Quando indagada sobre importância desse espaço de cultura e arte, em lágrimas, Cléa Carmo, mãe da aluna Vitória, de 9 anos, responde: “Quando criança, a gente construía cadernos nesse espaço e eu utilizei esses cadernos. Quando eu tive a possibilidade de trazer a Vitória para cá, eu queria que ela tivesse a mesma experiência, o mesmo sentimento que eu tenho pelo espaço. Nós estamos no mesmo número da apresentação do Auto de Natal. Quando eu estou no tecido, ela diz: ‘Vai mãe!’ Para mim, a gente está mais unida com certeza”, compartilha emocionada, Cléa Carmo.

O Curro Velho é um espaço cultural muito importante na periferia de Belém
(Foto: Roberta Brandão/Amazônia Real)

O que é?

Auto de Natal 2019 “Circo minha infância”

Local: Núcleo Cultural Curro Velho

Rua Professor Nelson Ribeiro, 287 – Telégrafo, Belém

Dias 6 e 7 de dezembro

Horário: 18 horas

Informações: (91) 3323-0048 / [email protected]

Entrada: gratuita

Apoie o jornalismo independente da Amazônia Real

Para garantir a defesa da liberdade de imprensa e da liberdade de expressão, a agência não recebe recursos públicos, não recebe recursos de pessoas físicas ou jurídicas envolvidas com crime ambiental, trabalho escravo, violação dos direitos humanos e violência contra a mulher. É uma questão de coerência. Por isso, é muito importante as doações das leitoras e dos leitores para produzirmos mais reportagens sobre a realidade da Amazônia. Agradecemos o apoio de todas e todos.

Os textos, fotografias e vídeos produzidos pela equipe da agência Amazônia Real estão licenciados com uma Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional e podem ser republicados na mídia, em livros didáticos e de literatura com o crédito do autor e da agência Amazônia Real. Fotografias cedidas ou produzidas por outros veículos e organizações não atendem a essa licença.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Amazônia Real

A agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real é uma organização sem fins lucrativos, criada por jornalistas mulheres em 20 de outubro de 2013, em Manaus, no Amazonas, Norte do Brasil. Sua missão é fazer jornalismo ético e investigativo, pautado nas questões da Amazônia e de seu povo. A linha editorial é voltada à defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos. ([email protected])