Boas Festas

As Boas Festas são pingos de esperança que sobrevivem naqueles e naquelas que ainda acreditam na partilha, na fraternidade, na importância de uma estrela em noite fria e escura. POR FÁTIMA GUEDES Queria apenas um tiquinho que fosse da […]

Momento festivo na comunidade São José do Laguinho (Foto: Floriano Lins/AR)

Por Amazônia Real Publicado em: 30/12/2014 às 19:26

As Boas Festas são pingos de esperança que sobrevivem naqueles e naquelas que ainda acreditam na partilha, na fraternidade, na importância de uma estrela em noite fria e escura.

POR FÁTIMA GUEDES

Queria apenas um tiquinho que fosse da sensibilidade literária de Fernando Sabino… Aquela sutileza estética que dá às palavras colorido e sabor de vida e humanidade; aquele jeito de misturar realidade e palavra como testemunho da presença do “verbo” entre nós. Mas, enquanto não chego a esse estágio – talvez nem chegue – insisto teimosamente em “mostrar conchinhas” comumente ignoradas na aridez dos desertos existenciais. Em O mundo num grão de areia, de Rubem Alves, é por esse caminho que se faz literatura.

Iniciei 2014 procurando ‘conchinhas’ nestas isoladas e solitárias praias da realidade/mundo com objetivo de enriquecer meu acervo humanitário e ao mesmo tempo alimentar meu tema existencial. Após incansável busca, encontrei uma ‘conchinha’, verdadeira preciosidade em nosso tempo e trazia como título – “Boas Festas”.

Por questão de princípios, não sou afeita às artificialidades do natal mercadológico e suas seduções – cartões, presentes, enfeites, luzes e etc., talvez, por isso, bem pouco recebo presentes ou cartões relacionados à data; considero-os como mais um ritual mecânico e convencional que uma expressão sincera, fraternal e espontânea de se manifestar votos de prosperidade e paz. No entanto, o ano que ora finda, coloca-me em confronto com tal contradição: derrubara o convencionalismo revelando-me um outro lado que só os olhos da afetividade são capazes de perceber e sentir.

Em meio aos envolvimentos com a agenda militante do final de ano, fui abordada por um garoto mensageiro que me entregava um pacote rudemente embrulhado e bastante amarrotado. Questionei a origem:

– Foi a tia Chica e o tio Rai que mandaram pra senhora. É presente de final de ano. Eles que fizeram, reafirmou o garoto.

Meio confusa – afinal, conheço uma infinidade de Chicas e Rais… Forcei a memória…

– Ah!… Lembrei. São os companheiros da Comunidade São José do Laguinho, Gleba Vila Amazônia, município de Parintins…

O garoto consentiu com um sorriso… Agradeci meio sem jeito e o garoto se mandou antes que eu abrisse o pacote.

Movida pela curiosidade, interrompi os afazeres e abri lentamente o pacote. Sobre este, um cartão de boas-festas: di francisca pra fatima.

Avancei na curiosidade e encontro uma pequena peça artesanal, de fabricação bem rústica, mas de um conteúdo grandioso e inexplicável. A peça trazia em seu conjunto um coraçãozinho de madeira preso verticalmente sobre uma base quadrada acompanhada por um pequeno galho seco sustentando a escultura de dois minúsculos passarinhos. No coração estava escrito: ti desejo muitos anos di vida i felicidadi pra ti i todos da casa. Rai e Chica.

As Boas Festas de Chica e Rai são assim: conchinhas solitárias que se perdem soterradas sob as densas areias do mercado desumano e embrutecedor. Quem as encontra já não pode escondê-las, tem que mostrá-las: são pingos de esperança que sobrevivem naqueles e naquelas que ainda acreditam na partilha, na fraternidade, na importância de uma estrela em noite fria e escura…

As Boas Festas recebidas dos companheiros, trabalhadores rurais me fizeram lembrar uma certa viúva que, para cumprir os rituais de seu tempo, ofertara tudo o que possuía.

Tiquinho – porção mínima.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

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