Política

Consciência Negra: jovens artistas usam as artes para combater o racismo no Amazonas

Eles relatam o preconceito e a violência, mas também a necessidade de discussão sobre a questão da igualdade racial nas escolas e universidades. Na fotografia está o performista Vitor Rocha (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real) Manaus (AM) – Jovens artistas […]

Vitor Rocha, arte com,o resistência (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Por Alicia Lobato Publicado em: 20/11/2019 às 14:40

Eles relatam o preconceito e a violência, mas também a necessidade de discussão sobre a questão da igualdade racial nas escolas e universidades. Na fotografia está o performista Vitor Rocha (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Manaus (AM) – Jovens artistas estão cada vez mais utilizando as artes na rua, ou dentro de espaços culturais, além dos eventos na educação, para falar sobre o enfrentamento diário do racismo e preconceito contra pessoas negras na capital do Amazonas. O performista Vitor Rocha, 18 anos, sabe quando um olhar de uma pessoa branca é uma atitude de preconceito.

“Um dia eu estava em uma parada de ônibus, quando um cara branco chegou perto de mim e disse: ‘Nossa! Olhei para o teu cabelo e já ia chamar a polícia’”, revela o artista.

Vitor diz que a abordagem racista é cotidiana. “Posso estar com turbante ou sem turbante (na cabeça), com dreads ou sem dreads (mechas do cabelo emaranhadas). Os olhares, as brincadeirinhas, o segurança da loja nos seguindo. São infinitos os casos”, revela o artista, que nunca foi em uma delegacia denunciar o racismo sofrido no cotidiano.

Em 2019, ele criou a performance “Cabô”, inspirada na música da cantora e compositora baiana Luedji Luna. Ela fez a canção que é “o choro de uma mãe preta que perde seu filho para violência policial”, depois dos assassinatos de cinco jovens negros, por 111 tiros, na comunidade Costa Barros, em 2015, no Rio de Janeiro.

O performista Vitor Rocha no Tetro Amazonas (Foto: divulgação)

Vitor levou a performance com a música de Luedji para as ruas, praças e no dia 30 de agosto deste ano apresentou “Cabô” no palco do centenário Teatro Amazonas, durante o 3º Festival 5 Minutos em Cena.

“O teatro é para evidenciar as vozes; me auxilia com muitos problemas. Diferente das pessoas que o procuram para inibir a timidez, eu o procurei para dar visibilidade a mim e aos meus. É nele que tenho autoridade para gritar e fazer ecoar diversas vozes e denunciar infinitos casos”, diz o artista.

Na performance “Cabô”, Vitor Rocha levou para o teatro a discussão sobre a violência e o genocídio do negro no Brasil. “Fazer arte é fazer ativismo. É escancarar a realidade que ninguém teve coragem de enfrentar, para gerar uma mudança através disso. Há necessidade de que todos falem disso”, afirma ele.

Lugares de opressão

Daniely Lima e o personagem Lola (Foto: divulgação)

A denúncia de “infinitos casos” de racismo, como diz Vitor, é o que motiva ele e outros jovens negros amazonenses na produção artística.

A estudante Daniely Lima, 25 anos, é finalista este ano do curso de Bacharelado em Teatro da Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Nos quatro anos de faculdade, ela decidiu desenvolver suas criações com a temática étnico-racial. No trabalho de finalização de curso, ela vai encenar a palhaça Lola, que conta as vivências da solidão de uma mulher negra da região Norte. “Dentro da montagem, abordo a minha relação com a família, com a instituição igreja, com minhas relações afetivas”, explica a artista.

Daniely afirma que o teatro é um espaço para denunciar o preconceito, fazendo dele um ambiente político. Em 2018, a estudante chamou atenção de colegas, professores e do público ao fazer a re-performance “Bombril” inspirada na performance original de Priscila Rezende. “Bombril” (nome da marca da lã de aço para lavar panelas) faz parte de uma extensa lista de apelidos utilizados por pessoas brancas e racistas para se referir ao cabelo de homens e mulheres negros.

“Entendi que nas situações em que sofri opressões eu estava sendo atravessada pelo racismo. Comecei a me ver em um lugar de necessidade de fazer um teatro mais político e de denúncia a esses lugares de opressão”, conta a estudante. Por isso, durante a performance Daniely permaneceu lavando panelas, utilizando o próprio cabelo, para expressar como a mulher negra se sente quando dizem que seu cabelo é um “bombril”.

Daniely na performance “Bombril” (Foto: Caroene Neves)

A artista também viu no teatro um meio de poder assumir seu protagonismo e ampliar a voz de outras mulheres negras. “Como a maioria das jovens negras, eu não acreditava que era capaz de fazer uma faculdade, ou seguir uma carreira que não fosse trabalhar para alguém. Por meio do teatro e da educação, a minha autoestima mudou. Hoje busco subsídios para viver da arte que me proponho a fazer”, revela Daniely Lima.

Muitos jovens seguem o pensamento de Daniely e percebem que nos espaços culturais, no palco e na plateia, a presença de negros ainda é pequena, assim como no desenvolvimento do tema étnico-racial nas escolas. O professor de teatro e ator Keven Sobreira, 25 anos, conta que sentiu a ausência de trabalhos voltado para essa questão na entrada do curso superior.

“Durante a graduação em teatro, uma percepção minha ali naquele ambiente, mas que eu acho que é coletiva, é que eu via poucos trabalhos na universidade e até mesmo na cena teatral manauara. Nos espaços reconhecidos, coletivos reconhecidos, havia poucas obras, propostas que trabalhavam com a temática étnico racial”, disse ele, que também participou do 3º Festival 5 Minutos em Cena, no Teatro Amazonas.

No trabalho de conclusão do curso de Licenciatura em Teatro da UEA em 2018, o ator apresentou o trabalho “Maculelá, Maculecá, Maculemim, Maculenós: o que foi o teatral Maculelê no projeto Arte e Comunidade na Colônia Antônio Aleixo e no estágio supervisionado no Instituto de Educação do Amazonas?”.

Keven Sobreira se apresentou no Teatro Amazonas (Foto: divulgação)

Keven também pondera que trabalhar com a temática racial não pode ser visto como uma obrigatoriedade. “Eu teria gana, sim, de desenvolver trabalhos que discorrem também sobre a temática étnico racial. Acho que a obrigatoriedade de artistas negros criarem somente a respeito dessa temática é uma cadeia que não me interessa. Mas ela é muito presente quando nos propomos a criar a partir de questões raciais”.

Reflexão nas escolas

Aline Cassiano em cena do filme “Zana – o filho da mata” (Foto: divulgação)

Neste dia 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, as temáticas que envolvem a população negra ganham mais repercussão em alguns municípios brasileiros, pois não é um feriado nacional no Brasil. A data escolhida em 1970 é atribuída à morte de Zumbi dos Palmares (1655-1695), símbolo da resistência negra ao regime escravocrata, e que deve ser compreendida como uma lembrança da luta coletiva da população afrobrasileira e para levar estudantes à reflexão sobre as questões da igualdade racial em todos os espaços, principalmente nas escolas e universidades.

“Essas discussões precisam existir não só sobre racismo, mas sobre as diferenças, a diversidade, o respeitar ao outro e respeitar as escolhas do outro. O teatro serve para isso mesmo. É um local democrático onde as pessoas precisam falar sobre vários assuntos, ouvir o outro, deixar o outro falar”, afirma a professora de teatro, Aline Cassiano.

Aline Cassiano com estudantes: arte é resistência (Foto: divulgação)

Aline, de 41 anos, iniciou sua carreira artística dando aula de teatro em projetos sociais para adolescentes, e questiona a ausência de pessoas negras nos espaços culturais de Manaus. “No teatro manauara não termos essa expressividade grande de negros no palco, e a gente sente falta desse olhar pelo negro que mora no Amazonas e que não tem essa visibilidade tão grande das problemáticas que a gente sofre na escola, e no trabalho”, diz a professora.

“A gente acha que não, mas antigamente, no shopping, eu era olhada dos pés à cabeça, como se eu não tivesse dinheiro para comprar. As pessoas já criaram um estereótipo tão grande de que o negro é pobre, de que negro não pode ter posse, que é raro você encontrar [negros consumindo em locais da classe média]”, conta a professora Aline Cassiano.

Em 2018, a atriz participou do filme “Zana – O Filho da Mata” vivendo a personagem Andí, o espírito da Natureza, mãe dos animais e protetora das florestas, que salva crianças das ameaças do velho do saco Mamulengo (Gomes de Lima). Com direção de Augustto Gomes, o filme foi o mais premiado do 2º Festival de Cinema Olhar do Norte.

Arte como ativismo

Obra de Saulo Oliveira

O artista visual Saulo Oliveira, 22 anos, diz que reflete suas vivências de combate ao racismo nas obras que faz. “São muito pessoais, é muito sobre o que estou sentindo. Também retrato o racismo, de como é ser uma pessoa preta”.

Ele também vê a arte como uma forma de ativismo. “A arte é a maior forma de ativismo que existe. Falo de todo tipo de arte, desde a pichação no muro da rua, pois tudo quer dizer alguma coisa”, explica ele. “Ser artista hoje para mim é resistir, porque é muito difícil ser artista aqui, sem ser valorizado”, acrescenta.

Saulo revela que já sofreu várias formas de racismo, mas era geralmente velado, o que é mais frequente. “O jeito que as pessoas te olham toda vez que você entra em uma loja. A gente sabe as maneiras de racismo que existe. Mas dessa maneira descarada foram poucas vezes, mas nunca tão descaradas assim”, conta o artista.

Para explicar a maneira “descarada” de racismo, Saulo revela que foi chamado de “macaco”, enquanto saía fardado da loja em que trabalha. “Na hora eu não sabia se era comigo mesmo, porque a gente, sabe, demora a acreditar, custa a acreditar. E aí, ela [uma mulher branca] foi me seguindo até eu sair da loja e enquanto eu saía ela repetia: ‘macaco’. Chegou uma hora que eu a questionei sobre o que ela estava falando, para quem ela estava falando e se tudo isso que ela dizia era pra mim. Olhei para ela e disse que ia chamar a polícia. Ela disse que eu estava seguindo ela”. O artista disse que não conseguiu denunciar o caso à polícia, mas guardou a filmagem das câmeras de segurança da loja.

Sobrevivência e superação

Karen Francis se apresenta neste 20 de novembro no Teatro Amazonas (Foto: Divulgação)

A cantora Karen Francis, 19 anos, também combate o racismo em suas apresentações musicais. Ela é uma das atrações do Festival Até o Tucupi de Artes, realizado pelo Coletivo Difusão, que acontece nesta quarta-feira (20), no Teatro Amazonas, no centro de Manaus. O evento vai reunir jovens artistas negras e negros da região Norte numa programação gratuita.

“A minha vida, o lugar que eu vivo, os lugares por onde passei, os lugares que frequento, eles são organizados por uma estrutura racista. Acho que não necessariamente alguém vai chegar a me injuriar, falar alguma coisa para mim, ou me privar, dizer para mim: ‘Você não vai acessar esse lugar, você não vai fazer tal coisa’. Acho que é muito mais que isso, é muito sutil às vezes, é muito velado e, às vezes é muito explícito. Vivo em uma estrutura racista”.

Karen começou a cantar ainda na infância, quando frequentava uma igreja com a família. Hoje, apresenta-se em vários espaços culturais de Manaus, e usa sua arte para combater o racismo. “O ativismo na minha vida acaba sendo natural. Tem pessoas que não escolhem, que não têm a oportunidade de escolher porque a única opção é resistir, ter que dá a cara a tapa para conseguir as coisas: o mínimo de respeito. Não é uma ferramenta que eu escolhi, que eu escolho, mas que eu fui encaminhada a vida toda”, diz a cantora.

Para Karen Francis, a música é seu meio de sobrevivência e de superação. “A música me faz muito bem, eu venci todos os meus problemas. Acredito que a música caminha com o povo negro. A expressão caminha com o povo negro. Isso é algo além de eu me sentir bem ou não. É algo que eu necessito e que faz parte de mim. O sentir, o expressar, o fazer e o criar acompanham a gente”.

Assista a performance Cabô, de Vitor Rocha:

Alicia Lobato é estudante de jornalismo da faculdade Fametro e participa do 4º. Treinamento em Jornalismo Independente e Investigativo da agência Amazônia Real.

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Sobre a matéria

Alicia Lobato

Alicia Lobato é jornalista, natural de Belém (PA e vive em Manaus desde 2017. Integra a equipe da agência Amazônia Real desde 2019, quando iniciou como estagiária depois de participar da 1ª Oficina de Jornalismo Socioambiental promovida pela Amazônia Real e pela organização internacional Climate Tracker. Na agência, escreve reportagens que pautam a violência contra a mulher e o racismo. Tem interesse pelo jornalismo ambiental e de dados. ([email protected])

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