Crônicas de gente pouco importante: Manaus, século XIX

Por Patricia Alves Melo Publicado em: 06/08/2014 às 09:12

Sei que vocês nunca ouviram falar de Apolinária. Nem poderiam. Apolinária faz parte de um conjunto de pessoas que jamais usufruíram de notoriedade. Como tantas iguais, a vida passou sem registro de algum ato seu importante o suficiente para ser lembrado pela coletividade. Então, por que falar dela? Exatamente por isso. Meus personagens são as gentes desimportantes que têm feito a história dessa cidade de Manaus valer a pena porque é dessa imensitude de atos anônimos, cotidianos, minúsculos e inefáveis que se constitui a matéria-prima da História. Então, no que depender de mim, hoje é dia de Apolinária.

O primeiro olhar sobre a cidade não dá para esquecer. As casas amontoadas na parte mais elevada, o vento que soprava sobre aquelas águas estranhas. Nunca poderia ter imaginado existir um rio assim de águas negras. O desembarque no porto precário, o lugar perdido no meio da mata, mais um destino desde que havia sido resgatada do tráfico ilegal. O navio agora lhe trazia do Rio de Janeiro, mas antes, estava em algum lugar do Atlântico, na rota dos tubarões.

E, já que sabemos de tratar-se de mulher de muitas travessias, seria importuno adivinhar-lhe o sentimento de angústia e desamparo? Como não se preocupar com o futuro das crianças agarradas às suas saias, pernas inseguras com o banzeiro. O que seria de Firmino e Luiza? Olhou para os companheiros de jornada: Joaquim, Apolinário, Acácia, Maria e Geminiana abraçada à filha Silvéria, percebeu que seus sentimentos não eram diferentes. O grupo estava vindo para trabalhar nas obras públicas da cidade. Era junho de 1855 quando Apolinária, 24 anos, Cabinda, Africana Livre, afinal desembarcou no porto de Manaus.

No início do século XIX, quando o tráfico de escravos foi tornado ilegal como parte de um conjunto de acordos internacionais, os Africanos Livres eram os indivíduos que compunham a carga dos navios apreendidos no tráfico ilícito. Pela lei de 1831, se a apreensão ocorresse em águas brasileiras, eles ficavam sob tutela estatal e deviam prestar serviços ao Estado ou a particulares por 14 anos até sua emancipação. Com isso, os Africanos Livres chegaram aos quatro cantos do Império, inclusive ao Amazonas. Apolinária é um dos mais de 80 indivíduos aqui chegados, na sua maioria, originários da África Central Atlântica.

Apolinária foi designada para trabalhar na recém-instalada Olaria Provincial. Suas crianças foram junto. Ali já estavam outros Africanos Livres que, além da fabricação de telhas, potes e tijolos, também eram responsáveis pela supervisão do trabalho dos índios que vinham das aldeias para prestar servir nas obras públicas. Eram cerca de 20 pessoas que viviam no mesmo lugar em que trabalhavam e assim foi até 1858 quando a olaria foi fechada para se transformar em uma nova escola: os Educandos Artífices.

A rotina na Olaria era dura e foi com alegria que Apolinária soube que seria a lavadeira dos Educandos. Diferente dos outros, não ia precisar se mudar para o outro lado do igarapé. Podia continuar ali com os filhos, o marido Gualberto, o cozinheiro Bertoldo e Severa, filha de Domingos Mina. O salário não era grande coisa, mas a amizade antiga com Bertoldo garantia alimento extra à mesa para todos. A tranquilidade durou pouco. O diretor dos Educandos, certamente mal informado pela boataria maledicente, a demitiu do cargo alegando que era ladra e dada a bebedeiras. Menos de 3 meses depois, Apolinária já estava de volta ao trabalho nas obras públicas, com destino incerto.

Sou incapaz de dizer mais alguma coisa sobre o que aconteceu com Apolinária porque ela desapareceu da documentação, mas os fragmentos de sua vida que pude recuperar são poderosos para iluminar cenas da vida desta cidade que estavam nas sombras. A presença negra no Amazonas é tratada de modo marginal na historiografia local e, só muito recentemente, vemos mudanças neste cenário. Há ainda muitas zonas de silêncio. A história de Apolinária nos ajuda a colocar problemas novos, entre eles, o fato de que a trajetória destas pessoas que cruzaram o Atlântico e, depois, o Império, permite acessar um mundo bem pouco visível na história do Brasil: a diversidade de experiências que uniram índios, escravos, libertos e africanos livres no mundo do trabalho no século XIX.

Falar dessa gente pouco importante é, de fato, buscar dialogar com personagens reais e concretos. Suas vidas comuns foram, na verdade, extraordinárias, cada uma a seu modo. Foram capazes de sobreviver em condições adversas, determinados o suficiente para tomar o destino nas mãos, gargalharam até chorar, trincaram os dentes de dor, cerraram os punhos de ódio, entonteceram de amor, trabalharam à exaustão, baixaram a cabeça humilhados. Desistiram, recomeçaram, se reinventaram e, afinal, morreram. Seres humanos verdadeiros, aqueles que fazem a História acontecer todos os dias. Hoje foi de Apolinária e também de Firmino e Luiza. Foi só por causa deles que chegamos até aqui.

* A historiadora Patricia Alves-Melo estreia como a nova colunista da agência Amazônia Real. Os primeiros artigos de Patricia compõem uma série de histórias consideradas pouco convencionais. Ela diz que a proposta é recuperar a vida de personagens anônimos, pessoas comuns que, aparentemente, nada fizeram de excepcional; apenas existiram. O limite é a documentação disponível.

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Sobre a matéria

Patricia Alves Melo

Patricia Alves-Melo é professora titular da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e pesquisadora do CNPq. Fez doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF/RJ) e é Investigadora Visitante da Universidade de Lisboa ( UL/PT). Suas áreas de pesquisa são história indígena e do indigenismo no Brasil e da escravidão africana na Amazônia. Neste espaço, Patrícia Melo publica uma série de histórias consideradas pouco convencionais. A proposta é recuperar a vida de personagens anônimos, pessoas comuns que, aparentemente, nada fizeram de excepcional; apenas existiram. ([email protected])