Doutores das Ruas

FÁTIMA GUEDES Doente como vive o sistema de saúde – em que cada cidadão comum se vira como sabe e como pode – saberes e práticas popular/tradicionais, além da peculiar acessibilidade, vêm mostrando eficácia de cuidados no meio da população […]

Por Amazônia Real Publicado em: 06/10/2014 às 15:47

Campinho do Cumaru, em Parintins. (Foto: Floriano Lins/AR)

FÁTIMA GUEDES

Doente como vive o sistema de saúde – em que cada cidadão comum se vira como sabe e como pode – saberes e práticas popular/tradicionais, além da peculiar acessibilidade, vêm mostrando eficácia de cuidados no meio da população empobrecida e baqueada. Os serviços públicos essenciais, defendidos em meio à discursalha politiqueira como perfeitamente funcionais, comprovam a inoperância, quando nos deparamos com a negligência e a falta de respeito aos usuários desses serviços.

Acompanhamos o caso do compadre Castanheira, assim conhecido pelo rigor de seus dribles durante as peladas no Campinho Cumaru cuja denominação fluíra por acomodar em uma das laterais daquela improvisada “área de lazer” um centenário cumaruzeiro.

Ali, todas as tardes, a turma da rua – sem espaços adequados para o justo lazer – se reúne para peladas, fofocas, “consultas médicas”, e outras questões de interesse daqueles comunitários. Aquele pequeno território também se oferece como uma fonte perene onde, dependendo da temática em questão, se registram flagrantes incomuns e memórias compartilhadas na oralidade de seus protagonistas.

Há mais de mês, Compadre Castanheira se queixava de dores lombares, acompanhadas de íngua. Como vivia bulindo no alheio, acusaram-no de ter contraído doença feia. Sobre ele, abatera-se discunforme preocupação. Naquela noite não pregou os olhos. Revirou a caixa velha de livros da Tia Chica em busca de informações sobre doenças sexualmente transmissíveis. Pra seu desespero, deparava-se com gravuras do aparelho genital contaminado o que só aumentava sua angústia.

Compadre suava frio, lembrando-se de suas traquinagens; temeu até uma possível contaminação virtual, tendo em vista as constantes bolinações na rede social e as viagens na luxúria…

Era madrugada, discunforme aflito rumara para o posto médico do bumbódromo – Dom Arcângelo Cérqua. Às sete horas, começa a distribuição das fichas e o Compadre pegou a de número vinte e quatro. Não acreditou: “será que tudo tá contra mim?…”

Passava das dez, quando o médico chegou. Segundo relatos de Castanheira, a relação médico/paciente seguia a dinâmica do picote: o profissional era rápido e indiferente às queixas dos adoecidos; automaticamente prescrevia a receita. Quanto à íngua, às dores na pente… o médico fez pouco caso, recomendou apenas uso de Dipirona. Nenhum toque, nenhum exame.

Silenciosamente, dialogando com a própria indigência, Compadre murmura: “realmente, pobre nunca tem nada”.

Voltou para casa desolado… Queixou-se. Tia Chica retrucou:

– Teu caso num é pra médico… Vai cum sêo Manel, aquele homem, abaixo de Deus, num há!…

Descrente e desiludido recolheu-se na própria dor…

À tardinha, para descontrair, foi no Cumaru tentar uma pelada. Acabrunhado, alongou vagarosamente, aguardando a vez. Nisso, seus companheiros questionaram seu estado de saúde.

Após relatar a indiferença médica ao caso, os “doutores da rua” e também atletas – Spli e Janclô Dandan – lavraram o diagnóstico: rasgadura, costela montada e frio na pente.

Acadêmico de Pedagogia e já contaminado pelas ‘verdades científicas’, após ouvir o diagnóstico, o adoecido esboçou um sorriso incrédulo e gozador. Ao mesmo tempo, fora assaltado pelas dúvidas primeiras e baixou o cesão.

Na sequência, indiferentes ao preconceito, os curadores apresentaram a terapia – puxação de arnica com andiroba e pó de vergalho de boto toda noite e banho quente da cintura pra baixo…

Castanheira arrepiou-se… Lembrou-se das suspeitas sobre o cesão abalado.

Passados alguns dias, encontramos o atleta bem mais alegre, na Feira do Bagaço, comprando andiroba, cascas medicinais e procurando por vergalho de boto.

Indagamos sobre o motivo da compra. Segundo ele, os “doutores da rua” acertaram de cheio o diagnóstico…

Em síntese, os “doutores do cumaruzeiro e das ruas” continuam de plantão permanente a serviço dos desvalidos, fornecendo diagnósticos, oferecendo terapias, amenizando dores físicas e mesmo espirituais. Na contramão, Parintins, a “capital brasileira do folclore”, segue seu ritmo ignorando garantias, direitos sociais e ao mesmo tempo anestesiando a massa contaminada com farsas, circos e orgias.

Baqueada – sem ânimo

Campinho Cumaru– área pública de Parintins ocupada aos finais de tarde por populares para prática de peladas

Cumaruzeiro– Dipteryx odorata (Aubl.) Willd.

Íngua – ingurgitamento do gânglio linfático inguinal

Bulindo no alheio – relacionamento sexual proibido

Traquinagens – travessuras

Discunforme – muito além do comum

Bumbódromo – arena onde acontece a Festa do Boi de Parintins

Pente – região pélvica

Rasgadura – hérnia

Costela montada – Quando uma costela móvel sai do lugar e fica junto à outra

Frio na pente – inflamação na região pélvica

Cesão – apetite sexual

Dinâmica do picote – (picote = galinha de angola) relação rápida e inconsequente

Puxação de arnica – massagem com utilização de Solidago chilensis Meyen

Andiroba – Carapa guianensis Aubl.

Vergalho de boto – pênis do cetáceo da Amazônia – (platanistídeo)

Feira do Bagaço – feira popular situada no Bairro da Francesa – Parintins

Spli e Janclô Dandan – personagens reais. Assim conhecidos na Comunidade.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins e da Articulação Parintins Cidadã.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Amazônia Real

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