Impunidade impulsiona tráfico de drogas e peixes

01/06/2023 as 08:05

O crime organizado controla a rota do rio Yavari, na tríplice fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, onde espécies vulneráveis como o pirarucu são retiradas ilegalmente de territórios indígenas. Nessa área disputada, Dom Phillips e Bruno Pereira foram assassinados há um ano. Equipe do OjoPúblico investigou nos três países, desde Tabatinga, Leticia, Loreto e Lima, as rotas desse negócio lucrativo patrocinado por máfias locais e com vínculos com o narcotráfico, que se espalhou na ausência de controle pelas autoridades desses países. Esta reportagem faz parte de um especial global coordenado pela Forbidden Stories.

Por Rodrigo Pedroso, Nelly Luna Amancio e Jonathan Hurtado (OjoPúblico)
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Ao lado do porto da cidade colombiana de Leticia, na fronteira do país com o Peru e o Brasil, um homem com uma cicatriz que divide sua testa está sentado bloqueando a entrada de um armazém de peixes. Quando perguntado se a casa sobre palafitas às margens do rio Amazonas tem algum peixe para mostrar, ele franze a testa. Então, um segundo homem aparece no local e se aproxima para encerrar as perguntas: “Não há nada aqui. Vocês estão procurando a porra da sua morte”.

A morte não é apenas uma ameaça nessa tríplice fronteira remota. Os assassinatos transformaram a área em uma das mais violentas da Amazônia. Há um ano, nessas terras indígenas cortadas pela bacia do rio Javari, o jornalista britânico Dom Phillips e o indigenista brasileiro Bruno Pereira foram assassinados perto de Atalaia do Norte, no estado do Amazonas, Brasil. 

A comercialização de peixes é um dos pilares da economia e base do abastecimento de alimentos da tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia. Mas grande parte desses peixes é extraída ilegalmente de territórios indígenas ou de áreas naturais protegidas, sendo depois legalizadas e vendidas em mercados nacionais e internacionais.

Uma equipe da Rede de Investigação Transfronteiriça OjoPublico – como parte de uma investigação global coordenada pela Forbidden Stories, em memória de Dom Phillips e Bruno Pereira – percorreu a fronteira e investigou nos três países, desde Tabatinga, Letícia, Loreto e Lima, as rotas desse negócio lucrativo patrocinado por máfias locais e apoiado na falta de controle das autoridades desses países. 

As espécies mais vendidas na tríplice fronteira são surubim (Pseudoplatystoma), tambaqui (Colossoma macropomum), pacu, piracatinga (Calophysus macropteru), bagres e a majestade dos lagos amazônicos, o Arapaima gigas, conhecido como pirarucu no Brasil ou paiche, no Peru. Essas espécies são capturadas em grandes quantidades, principalmente nos rios e lagos do território brasileiro, para abastecer uma intrincada rede que vai de mercados locais e regionais até as capitais Lima e Bogotá.

Impunidade e falta de fiscalização

Carga de Pirarucu no porto de Leticia, Colômbia (Foto:. Alex Rufino./OjoPúblico)

Os peixes são carregados em barcos ou pequenas embarcações e passam de um lado para o outro da tríplice fronteira sem controle. A inspeção das autoridades dos três países é débil. OjoPúblico constatou que em nenhum dos portos e locais de desembarque as autoridades pesqueiras solicitam documentação para verificar a origem do peixe comprado e vendido na região. 

A informalidade do setor é tão alta que a Autoridade Nacional de Aquicultura e Pesca (Aunap) da Colômbia, as secretarias de agricultura municipais e do Estado do Amazonas (Brasil) – que emite certificados de operação para empresas de pesca – e o Ministério da Produção do Peru não mantêm registros detalhados do volume de peixes por espécie desembarcados nos portos e vendidos na região. 

No lado peruano, no distrito de Santa Rosa de Yavari, às margens do rio Amazonas, a Diretoria Regional de Produção (Direpro), responsável pela inspeção e controle da pesca, não conta com nenhum inspetor no local. A ilha é o último entreposto peruano na tríplice fronteira. O descaso é tão grande que, do lado brasileiro, o órgão ambiental federal (Ibama) fechou seu escritório de Tabatinga em 2019, mesmo que se trate de uma fronteira com mais de 100 mil habitantes circulando livremente. 

Depoimentos de policiais e autoridades locais a que OjoPublico teve acesso durante esta investigação expõem como a falta de controle e a dificuldade de rastrear a cadeia de comercialização de peixes chamaram a atenção do tráfico de drogas, maior atividade econômica na fronteira, que criou laços comerciais com pescadores ilegais. O duplo crime do ano passado mostra alguns elementos de como essa relação funciona.

O mandante dos assassinatos de Bruno e Dom, Rubens Villar Coelho, conhecido como Colômbia, financiou expedições de pesca para invadir terras indígenas em troca da compra garantida de peixes cobiçados, como o pirarucu, de acordo com investigação da Polícia Federal (PF) brasileira.

Líderes da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) – a maior organização indígena do Brasil nessa parte da fronteira – alegam que Rubens Villar Coelho, hoje preso em uma penitenciária federal, foi financiado por traficantes de drogas que lucram e lavam seu dinheiro em atividades pesqueiras.

A falta de fiscalização se repete nos três países. Em resposta a uma solicitação de informações no Peru sobre as apreensões de pescado ilegal realizadas entre 2011 e 2022 nessa área, a autoridade tributária e aduaneira peruana informou ter feito apenas duas apreensões, correspondentes ao ano de 2019. A resposta oficial foi que esses postos de controle não oferecem as condições para uma intervenção adequada, pois sua infraestrutura não garante a cadeia de frio. Eles confirmaram que também não abrem contêineres.

As duas únicas apreensões realizadas em julho e agosto de 2019 em Santa Rosa – de 97 e 221 quilos cada – corresponderam justamente a pirarucus cuja origem foi registrada como “estrangeira”.

A rota de um negócio lucrativo

Mapa: OjoPúblico

O coração da rota do negócio de pesca ilegal na tríplice fronteira está em Atalaia do Norte, Brasil, porta de entrada para a Terra Indígena (TI) Vale do Javari no Brasil, onde Bruno e Dom foram assassinados por pescadores ilegais em junho do ano passado. 

O OjoPúblico conseguiu reconstruir e identificar – com base em depoimentos na área e informações de autoridades locais – a rota desses peixes de origem ilegal. Os peixes são extraídos de territórios indígenas e depois transportados em barcos ou canoas pelo rio Javari, sem nenhum controle, até balsas ou casas de refrigeração de pescado em Islandia, Benjamin Constant, Santa Rosa e Letícia, na tríplice fronteira.

Mas nem todos os peixes ficam na região. Há intermediários que compram os peixes já legalizados na fronteira e os vendem em Iquitos (Loreto), Lima e Bogotá. E, na ausência de controle adequado, parte deles é lavado no mercado formal nacional e internacional. 

“Os pescadores que entram ilegalmente são principalmente do Peru e do Brasil”, diz Kell Wadick, missionário residente em Atalaia e que conhece pescadores e indígenas.

Esses grupos entram na TI principalmente driblando a base da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) na junção dos rios Ituí e Itacoaí, e também pelo rio Javari, que faz fronteira com o Peru e deságua no gigantesco rio Amazonas. “Eles afundam a canoa e esperam a noite passar. Eles entram no lado peruano do Javari e vendem em Islândia, principalmente em balsas, e em Benjamin Constant”, explica Wadick.

Container para congelar pescado. Proveniente de Iquitos, Peru. (Foto: Alex Rufino/OjoPúblico).

Em outras palavras, grande parte do pirarucu comercializado na zona é extraído do Brasil e vendido como se fosse peruano. O governo brasileiro realizou operações de fiscalização na área, mas não resolveu o problema até o momento. No lado peruano, os controles são quase inexistentes, de modo que líderes indígenas locais – que preferiram não ser identificados por receio a represálias – disseram que os pescadores ilegais vendem peixes como o pirarucu dizendo que são do Peru, quando na verdade foram retirados de territórios indígenas no Brasil.

Um número que se soma a essas alegações tem a ver com as diferenças na quantidade registrada de pirarucu que o Peru exporta em relação ao Brasil. Uma análise do OjoPúblico sobre o volume de exportações constatou que, entre 2014 e 2022, o Peru exportou 377,8 toneladas de Arapaima gigas, 18% mais do que o registrado pelas autoridades brasileiras (321 toneladas) no mesmo período.

O pescador Raimundo Pinheiro nasceu na parte brasileira do Vale do Javari e viveu lá até a homologação da TI em 2001. Esse reconhecimento foi seguido por um processo de extrusão dos não indígenas das áreas demarcadas. A família de Raimundo se assentou na zona entre a área urbana de Atalaia e o território indígena. Ele não sabe ler nem escrever e pesca desde criança. Hoje, aos 51 anos, conta que está cada vez mais difícil pescar e caçar na região. Raimundo e seus colegas têm que subir mais os rios em cada expedição, especialmente em busca do pirarucu, que vive em lagos.

Círculo de dívidas

Carga de pescado próximo ao porto de Santa Rosa, Peru (Foto: Alex Rufino/OjoPúblico).

O peixe capturado ilegalmente é transportado de duas maneiras para os portos de Benjamin Constant e Tabatinga (Brasil), Santa Rosa (Peru) e Leticia (Colômbia). Ele pode ir fresco ou em mantas, já salgado, explica Raimundo Pinheiro. Os pescadores trabalham em geral em grupos de 3 a 6 pessoas. O tempo das expedições depende do financiamento que recebem de terceiros, o que lhes permite cobrir a compra de gasolina, redes, sal ou gelo e alimentos para o grupo.

“Com menos de 10 mil reais [2 mil dólares] você não sai de casa. Tudo é muito caro. Então, ou você tira tudo do seu bolso, ou o comprador paga as despesas e você recebe um preço mais baixo pelo peixe que leva para ele. No esquema meio a meio, eles pagam cerca de 5 reais [um dólar] o quilo do pirarucu. Outros peixes, dependendo do tamanho, custam 3 ou 4 reais o quilo”, diz Raimundo, que agora vive em uma comunidade no lado peruano do rio Javari.

Nessa área, muitos pescadores trabalham no esquema meio a meio: recebem financiamento de terceiros para bancar as expedições. Se as autoridades interceptam um barco com peixes de origem ilegal, os pescadores ficam em dívida com seus financiadores. “Tenho muitos colegas que estão nessa situação. E você tem que fazer outra (expedição) para pagar a anterior”, diz o pescador. O círculo de dívidas torna-se então mais violento.

Raimundo afirma que não pesca em áreas indígenas, mas que não há como controlar a entrada de outros pescadores. “Aqui [referindo-se a Atalaia e às comunidades em frente a ela, no lado peruano] há cerca de 600 de nós que só vivem da pesca. São pessoas como eu, que não sabem escrever, que não sabem ler. Se eles nos proibirem de pescar…. A área é pequena e eles querem fechá-la ainda mais. Do que vamos viver, chefe?”, diz Raimundo.

Mas a extração ilegal de espécies não é o único problema para os povos indígenas da região. Presidente da Organização Geral Mayoruna no Brasil (conhecida como Matsés no Peru), Bene Mayoruna, adverte que a pesca ilegal está dividindo comunidades nessa parte da fronteira Brasil-Peru. 

Os mayorunas mais jovens, que tendem a passar mais tempo na cidade para estudar, têm dificuldade de acesso a empregos e são tentados por pescadores ilegais a trabalhar com eles. “Estamos tentando evitar esse problema interno entre nós, porque muitos jovens agora querem trabalhar com os pescadores para ganhar dinheiro, enquanto os mais velhos querem impedi-los de entrar em nossos territórios. Essa situação está acontecendo em ambos os lados (da tríplice fronteira)”, diz ele.

Com 20 mil habitantes, Atalaia do Norte tem o terceiro pior Índice de Desenvolvimento Humano do Brasil (0,450), abaixo da média da África Subsaariana. Uma situação semelhante se repete nos territórios peruanos e colombianos nessa parte da tríplice fronteira, onde vivem comunidades indígenas.

Os peixes e o tráfico de drogas

Apreensão de cocaína em Loreto, Peru (Foto PNP)

A rota utilizada pelos pescadores ilegais para entrar no território indígena no lado brasileiro do rio Javari também é usada por traficantes de drogas. Nos últimos anos, as plantações ilegais de folhas de coca no lado peruano aumentaram em ritmo alarmante. Somente entre 2020 e 2021, essas plantações aumentaram de 4.247 para 6.472 hectares. Em 2017, eram apenas 1.855 hectares.

Vários depoimentos de líderes indígenas locais e agentes de forças de segurança – coletados pelo OjoPúblico na área – também apontam para a ligação entre o tráfico de drogas e a pesca ilegal, com o compartilhameto não apenas de rotas, mas de financiamento. Nos últimos anos, líderes indígenas relataram a presença de membros de cartéis de drogas colombianos e de máfias peruanas de processamento de cocaína na área.

A polícia destruiu tanques de maceração de pasta de cocaína no lado peruano. De acordo com relatórios da polícia, a droga é entregue a compradores na foz do rio Javarí, na Amazônia, na tríplice fronteira.

A coca – assim como a pesca ilegal – está avançando sobre os territórios indígenas. O relatório da Comissão Nacional para o Desenvolvimento e Vida sem Drogas (Devida) do Peru identifica que, nessa parte de Loreto, a área de plantações de folha de coca afeta 37 comunidades indígenas, atingindo 1.752 hectares cultivados em 2020. Desse total, 77% estão em território Tikuna (1.348 hectares), seguido pelo povo Yagua, com 20% (355 hectares) e 3% nas terras de Kichwas (38 hectares), Kukama Kukamirias (9 hectares) e Awajúns (1 hectare).

Ataques à base da Funai

Base da Funai que foi várias vezes atacadas (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Um relatório do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis  (Ibama) de outubro de 2022 – obtido pela Forbidden Stories – afirma que os narcotraficantes financiam atividades ilegais (caça, pesca, mineração e extração de madeira) na tríplice fronteira, fornecendo motores, gasolina e equipamentos, além de segurança para os envolvidos nessas atividades.

Entre 2018 e 2019, no lado brasileiro, pescadores atacaram oito vezes a base da Funai, na confluência dos rios Ituí e Itacoaí. Em setembro de 2019, o agente Maxciel dos Santos Pereira foi morto na avenida principal de Tabatinga após apreender pesca e caça ilegais saindo da terra indígena. O caso ainda não foi esclarecido pelas autoridades brasileiras, mas no final de março deste ano a PF afirmou que há indícios de que Maxciel foi morto a pedido de Rubens Villar Coelho, o mesmo que ordenou as mortes de Bruno e Dom, segundo a PF.

Uma demonstração mais recente da falta de controle sobre o rio Javari ocorreu em 12 de janeiro de 2022, quando um grupo de indivíduos armados – de acordo com a polícia, traficantes de drogas peruanos e brasileiros – destruiu o posto da polícia peruana Puerto Amelia, às margens do rio Yavari, em frente à Atalaia do Norte. Durante o ataque, fuzis e metralhadoras foram roubados e quatro policiais ficaram feridos. O posto não foi reaberto desde então.

Manuel – que chamaremos por esse nome porque tem medo de ser identificado – confessa que até quatro anos atrás estava envolvido com o tráfico de drogas. Ele trabalhou em plantações de coca no lado peruano e escalou na hierarquia do tráfico até chegar à gerência de um laboratório de refino de cocaína antes – diz ele ao OjoPúblico – de conseguir deixar o tráfico. 

Ele, que começou a trabalhar nas plantações de folha de coca com 14 anos, relata que uma das maneiras de levar as drogas das plantações para a tríplice fronteira é colocar a mercadoria em fundos falsos de barcos com peixes dentro.

“Alguns pescadores se tornaram mulas do tráfico. Quando a polícia parava o barco, só via o peixe. Mas no meu trabalho, no meu caso, também acontecia o contrário: nosso pessoal se disfarçava de pescador”, diz ele.

Um agente da PF com experiência em operações de combate ao tráfico de drogas na região afirmou à reportagem que esse tipo de transporte de drogas em peixes é normal na área. “Isso ainda acontece, mas ninguém lá quer falar sobre isso. Ninguém quer morrer.”

Essa invasão permanente dos territórios indígenas colocou os líderes locais em alerta, muitos deles alvos de ameaças e agressões. O indigenista Bruno Pereira estava ajudando os povos indígenas do Vale do Javari, no lado brasileiro, a se organizarem para patrulhar e defender seus territórios. Mas seu trabalho chamou a atenção das máfias locais.

O encontro dos rios Javari e Amazonas

Agente de controle de pescado durante fiscalização no mercado municipal de Benjamin Constant, Brasil (Foto: Alex-Rufino/OjoPúblico).

A cidade de Benjamin Constant é o último ponto do rio Javari no Brasil, na foz do rio Amazonas. À direita da entrada da cidade, no rio, quatro balsas de madeira recebem e congelam peixes todas as manhãs. Barcos com peixes chegam ao porto, que são retirados e levados para o mercado municipal, a poucos metros de distância.

Francisco Antonio usa uma fita métrica para medir o tamanho de um surubim. Ele é o inspetor de pesca e produção da Secretaria de Produção e Abastecimento da cidade, e percorre o mercado para fazer cumprir a lei brasileira, que estabelece tamanhos mínimos para a comercialização de peixes e define períodos de defeso para algumas espécies, como o pirarucu.

O inspetor informa que só trabalha no mercado. “Poderíamos fiscalizar as balsas ou barcos no porto, mas não temos apoio do Ibama ou da Polícia Federal, então não vamos. Somos apenas três. É perigoso, não vou me arriscar, porque sou daqui. Só vamos se tivermos o apoio da polícia, senão não fiscalizamos. (Mas) o pirarucu não entra na cidade. Ele acaba indo para Tabatinga e principalmente para Letícia”, diz.

Desde que a sede do Ibama em Tabatinga – localizada a meia hora de lancha de Benjamin Constant – foi desmontada, em 2019, as operações de fiscalização têm se tornado cada vez mais raras. Isso deixa os grupos mais livres para comprar e vender peixes ilegalmente. 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva prometeu o retorno dos órgãos federais à região, e a sede de Tabatinga deve ser reaberta ainda este ano, segundo o superintendente do Ibama no Amazonas, Joel Araújo. “Há realmente uma falta de controle sobre a saída de peixes do Brasil na fronteira. Grande parte do pirarucu que sai da Amazônia sai ilegalmente”, afirma. 

No dia 8 de março, o Ibama e policiais apreenderam na tríplice fronteira 31 toneladas de peixes, como surubim e matrinxã, de origem ilegal, em uma balsa refrigerada. A fiscalização pode assustar os pescadores, mas o comércio continua. 

Em Islândia, uma ilha peruana localizada às margens do rio Javari e a três quilômetros de Benjamin Constant, navios de passageiros e de carga, como o Maria Fernanda, continuam levando peixes da região para Iquitos.

“Brasil e Peru são países irmãos. Os peruanos vão a Benjamin e trazem o peixe para cá, e os brasileiros também vêm vender aqui, até trabalham juntos. Eles também levam facilmente o produto para Letícia, na Colômbia, e para Tabatinga. Depende de onde o preço está melhor. Esta é uma região onde não há fronteira”, é como Mario Jiménez define a dinâmica comercial da área.

Chefe da prefeitura da Islândia, Jiménez é peruano filho de brasileiro. Pescador há 17 anos, afirma que a disponibilidade de peixes vem diminuindo, forçando os pescadores a se aprofundarem cada vez mais em terras pouco exploradas. “Diminuiu muito por causa da quantidade de peixes que estão sendo pescados. A pesca é muito importante para a economia daqui, é a atividade em que a maioria das pessoas está envolvida”, continua.

Balsas de apoio de pescadores em Islândia, Peru (Foto. Alex Rufino./OjoPúblico)

Quando os rios estão baixos, o pescador Juan – que não quis revelar seu nome completo – vai pescar. Ele se junta a pescadores brasileiros em viagens à região do rio Javari para pescar surubim e, acima de tudo, pirarucu. Ele vende cada quilo por 7 soles nos portos de Benjamin Constant e Islândia. O peixe geralmente vai para Iquitos. Juan não perde o sono com a inspeção das autoridades.

“Não há alternativa, não há empregos. O governo, a polícia, só aparece para pedir propina. O único que fica rico é o comerciante que vende um quilo por 20 soles em Iquitos. Nós, pescadores, ganhamos só o suficiente para sobreviver e alimentar nossas famílias”, diz ele.

O peixe ilegal se torna legal

Pescado à venda no Mercado de Benjamin Constant Foto: Alex Rufino/OjoPúblico)

Uma cadeia de pescadores, compradores, intermediários e vendedores povoa os mercados e as balsas dos rios de Benjamin Constant e Tabatinga, no Brasil, Islandia e Santa Rosa, no Peru, e Leticia, na Colômbia. Os peixes circulam entre compradores e vendedores dos três países. Mas Islândia e Santa Rosa, no Peru, e Letícia, na Colômbia, recebem a maior parte dos peixes que saem da fronteira. 

Um quilo de pirarucu é vendido por por volta de 25 reais em Tabatinga e 25 mil pesos colombianos (US$ 5,6) em Letícia. Nos portos, balsas e câmaras frigoríficas recebem os peixes, que são cortados e embalados, principalmente para compradores de Iquitos e Letícia. De lá, a principal rota de vendas para fora da Amazônia passa pelo aeroporto das cidades.

No lado peruano, contêineres refrigerados sobem o rio Amazonas em balsas ou barcos de carga e de passageiros até Iquitos, onde empresas de comercialização vendem o peixe para outras partes do Peru.

As autoridades responsáveis – a Diretoria Regional de Produção no Peru e a Autoridade Nacional de Aquicultura e Pesca na Colômbia – não mantêm registros detalhados do volume de peixes comercializado na área. Ambas ressaltam que se baseiam na presunção de boa fé do comprador para validar a origem do peixe, tornando-o legal.

Santiago Duque, pesquisador do Instituto de Pesquisas Amazônicas (Imani) da Universidade Nacional da Colômbia, vive em Letícia há três décadas estudando os ecossistemas aquáticos da região e sua dinâmica de exploração. Segundo Duque, estudos feitos na área estimam que entre 6 mil e 10 mil toneladas de peixes saem de Letícia todos os anos para outras partes da Colômbia. 

“Uma grande parte do mercado nacional é abastecida com peixes de couro, que saem por avião. Não há controle. É impossível saber a origem. Temos que olhar para os pontos fracos que temos, as instituições, que não têm dinheiro para suas funções. No porto, é impossível fazer o controle, porque as fronteiras são totalmente abertas. Então se aproveitam disso e há contrabando de todos os tipos”, diz ele.

O vai e vem do pescado ilegal

Carregador de pescado na zona portuária de Leticia, Colômbia (Foto: Alex Rufino/OjoPúblico)

A fragilidade institucional a que o pesquisador se refere é materializada na Aunap, que em Letícia tem apenas dois funcionários para supervisionar todo o comércio de pesca no lado colombiano.

A autoridade colombiana afirma que há 40 empresas de pesca registradas nessa parte da fronteira, em Leticia. Os comerciantes vão ao Brasil e ao Peru para negociar e pré-comprar grandes volumes de peixe, que depois são enviados à cidade para serem revendidos a outras partes do país. 

A maioria dos negócios são empreendimentos individuais, diz Daniela González, funcionária da Aunap na cidade. Ela ressalta que, embora os pescadores afirmem que está cada vez mais difícil encontrar peixes, as estimativas sobre o volume de vendas vem crescendo.

“Todo ano há mais licenças expedidas. Você confia no que o comerciante diz e pronto. Não somos obrigados a pedir provas (de procedência). Ela está no formulário, mas não somos obrigados a preenchê-la. Em outras palavras, controlar isso diretamente é muito difícil”, diz Gonzáles.

Para operar na legalidadel em Letícia, um comerciante precisa ter permissão da Dirección de Impuestos y Aduanas Nacional (Dian), que inspeciona se a mercadoria pagou os impostos correspondentes, da Cámara de Comercio del Amazonas, uma instituição de classe, da Secretaría de Salud, que verifica as condições sanitárias da carga, e da Aunap, que inspeciona a origem e o cumprimento da legislação pesqueira do país.

No comércio de pesca, a parte mais difícil de inspecionar são os armazéns, espaços de armazenamento refrigerado que comportam até 20 toneladas de peixe. “São os mais difíceis, porque trabalham com grandes quantidades. Vamos a um deles e perguntamos quantos bagres eles têm, por exemplo. (Se eles disserem) uma tonelada, nós registramos uma tonelada. Todas as amostras são escolhidas de forma aleatória. Então, se eles tiverem mil pacotes de peixe, abrimos só alguns para olhar. O pirarucu é o maior, então você o identifica sem abrir. É como se fosse um ser humano amarrado”, diz o inspetor.

A falta de instrumentos institucionais para separar os peixes obtidos legalmente dos ilegais é semelhante no lado peruano do rio Amazonas. A ilha de Santa Rosa, assim como na Islândia, não tem inspetores da Diretoria Regional de Produção (Direpro). O escritório da agência está localizado rio acima em Caballococha, a cerca de quatro horas de barco, em uma pequena casa de madeira com documentos empilhados em duas mesas.

A sede é responsável por centralizar e coordenar a inspeção de todo o trecho peruano do rio Amazonas até Iquitos. Os funcionários, que não são mais de dez, não receberam salários nos primeiros três meses do ano devido à mudança de governo departamental no final de 2022. Alguns ameaçaram voltar para suas cidades de origem.

Declaração voluntária

Instalações do escritório de controle pesqueiro em Caballo Cocha, Peru (Foto: Alex Rufino/OjoPúblico)

“Estamos exatamente no mesmo dilema que a Colômbia. Como estamos em uma situação de fronteira, não há muito que possa ser controlado se as instituições não trabalharem juntas. Alfândega, Direpro, Marinha. O pescador vem com o peixe para o lado peruano e diz que o pescou na Islândia ou em Santa Rosa. Não conseguimos checar isso, apenas registramos o que eles declaram. Em seguida, eles assinam e legalizam a declaração no juiz de paz. Em seguida, a Direpro verifica se o produto está de acordo com as medidas regulatórias, como ter mais de 1,60 metro no caso do pirarucu, e pronto”, diz Junior Macedo, diretor da Direpro na província de Mariscal Ramón Castilla.

Este ano, a Direpro planeja montar um posto em Santa Rosa com dois inspetores para evitar a evasão fiscal. Enquanto isso, contêineres refrigerados com capacidade para 80 toneladas com peixes como surubim e pirarucu são carregados no porto da cidade e enviados para Iquitos.

Se as autoridades pesqueiras peruanas e colombianas declaram abertamente que não podem separar a pesca legal da ilegal, o que justifica o clima de ameaça e medo nas balsas e nos cais dessa parte do rio Amazonas é a névoa sobre o financiamento da atividade pesqueira e seus proprietários, de acordo com um policial colombiano que não quis ser identificado.

Por ser uma atividade lucrativa, algumas empresas têm vínculos econômicos com o tráfico de drogas na região, o que também explica a falta de maior controle por parte das autoridades. O OjoPúblico solicitou uma entrevista com o comandante da Polícia Amazônica da Colômbia para discutir o assunto, mas ele se recusou.

Para essa investigação, também solicitamos informações sobre o número de empresas de pesca registradas nas localidades peruanas e brasileiras nessa parte da fronteira, mas as autoridades disseram que não tinham essas informações.

Pirarucu (Ilustração: Claudia Calderón / OjoPúblico)

* Publicada originalmente no site OjoPúblico

** A reportagem faz parte do Projeto Bruno e Dom, coordenado pela Forbidden Stories e da qual a Amazônia Real é uma das integrantes

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