Philip M. Fearnside

A Hidrelétrica de Sinop: 9 – O papel dos consultores

Em 24 de janeiro de 2019, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso (SEMA) autorizou o enchimento do reservatório de Sinop com base em relatórios de consultoria apresentados pela empresa de energia [1]. No dia seguinte a […]

Indígena Pataxó Hã-hã-hãe, da aldeia Naõ Xohã, às margens do rio Paraopeba, contaminado pela lama de rejeitos de Brumadinho. (Foto: Lucas Hallel Ascom/FunaiI)

Por Amazônia Real Publicado em: 29/04/2019 às 19:01

Em 24 de janeiro de 2019, a Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Mato Grosso (SEMA) autorizou o enchimento do reservatório de Sinop com base em relatórios de consultoria apresentados pela empresa de energia [1]. No dia seguinte a atenção mundial foi capturada por um grande desastre em outra parte do Brasil: o rompimento de uma barragem de rejeitos de mineração em Brumadinho, Minas Gerais, que matou mais de 300 pessoas além de causar uma dramática destruição ambiental (e.g., [2]).

O desastre de Brumadinho levantou a questão há muito intocada da responsabilidade de consultores terceirizados. Os engenheiros consultores que atestaram a segurança da barragem em Brumadinho foram presos e encarcerados sob uma ordem judicial federal, e alguns dias depois outra ordem judicial resultou na sua soltura para aguardar um processo legal [3].

No caso da barragem de Sinop, como é prática comum no desenvolvimento de hidrelétricas e em outras indústrias (inclusive a mineração), a companhia hidrelétrica contratou firmas de consultoria, que, por sua vez, contrataram especialistas técnicos que, coincidentemente, chegaram a conclusões que os proponentes do projeto presumivelmente queriam ouvir.

Os consultores de pesca concluíram que deixar as árvores mortas no reservatório era necessário para fornecer esconderijos para os peixes escaparem dos predadores ([4], p. 129-197). Os consultores de modelagem concluíram que apenas 30% (em vez de 100%) da vegetação na área do reservatório precisavam ser removidos para garantir que os níveis de oxigênio na água sempre estivessem acima de 4 mg de oxigênio dissolvido por litro, inclusive durante o período de enchimento do reservatório, e que após os primeiros cinco meses os níveis de oxigênio ficariam acima do padrão mínimo de 5 mg por litro fixado pela Resolução n° 357/2005 do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) ([4], p. 130-197; [5]).

Os resultados da modelagem para o corpo principal do reservatório de Sinop, que é a parte da qual a água é extraída pelas turbinas e vertedouros e passada a jusante da barragem, indicaram níveis de oxigênio acima de 5 mg por litro em todo o comprimento do reservatório durante o processo de enchimento, com exceção de uma queda momentânea para 4,5 mg por litro em um segmento do rio (Figura 10).

O fato que em 06 de fevereiro de 2019 a água liberada do reservatório continha menos de 2 mg de oxigênio dissolvido por litro indica que esta previsão foi errada.

Figura 10. Resultados modelados para concentrações de oxigênio no corpo principal do reservatório de Sinop de um relatório de consultoria apresentado no pedido da empresa hidrelétrica para obter autorização para suprimir a vegetação em apenas 30% do reservatório. Fonte: ([4], p. 90, Gráfico 9.1.2-1).

Figura 11. Resultados modelados para as concentrações de oxigênio no Rio Roquete inundado (o tributário mais problemático que entra no reservatório de Sinop) de um relatório de consultoria apresentado no pedido da empresa hidrelétrica para obter autorização para suprimir a vegetação em apenas 30% do reservatório. Fonte: ([4], p. 91, Gráfico 9.1.2-2).

No tributário mais problemático que entra no reservatório, o Rio Roquete, a modelagem previu níveis de oxigênio acima de 4 mg / litro em todos os trechos desse afluente inundado, e os declínios em alguns trechos pararam acentuadamente no limite de 4 mg / litro (Figura 11).

O relatório dos consultores contém a advertência de que os resultados modelados são médias, e que as concentrações podem variar abaixo dessas médias “em locais específicos do reservatório”; no entanto, esses locais específicos foram descritos como estando nos afluentes inundados ([4], p. 89), isto é, não no corpo principal do reservatório de onde a água foi extraída que matou os peixes a jusante.

Focar uma luz sobre a indústria de consultoria paga que sustenta uma vasta gama de desenvolvimentos prejudiciais ao meio ambiente e à sociedade é apenas um primeiro passo necessário. Mudanças são necessárias nos sistemas de decisão e licenciamento para eliminar conflitos de interesse inerentes.

Conclusões

Deixar árvores em um reservatório como o da UHE Sinop contribua a diversos impactos ambientais, como a emissão de gases de efeito estufa, especialmente metano, e a transformação de mercúrio na sua forma venenosa (metil-mercúrio). Os benefícios em fornecer abrigo e alimento para peixes, alegados como raciocínios para deixar essas árvores, são exagerados.

A legislação é clara em exigir a remoção total da vegetação, e normas com relação à qualidade mínima da água (em termos de teor de oxigênio) são adicionais à exigência de remover a vegetação, não fornecendo um substituto para esta remoção. Embora haja um histórico de ignorar a legislação em questão, o processo em curso no Brasil para voltar à legalidade na área ambiental é muito importante para o futuro da Nação. Seria um revés triste se o desrespeito à Lei nº 3.824/60 fosse permitido neste caso emblemático. [8]

Notas

[1] dos Santos, L.F. & de Lima, V.S. 2019. Autorização para enchimento do reservatório e testes para comissionamento em unidades de geração. Autorização No. 1028/2019. Secretaria de Estado do Meio Ambiente (SEMA), Cuiabá, Mato Grosso.

[2] Darlington, S., J. Glanz, M. Andreoni, M. Bloch, S. Peçanha, A. Singhvi & T. Grigg. 2019. A Tidal wave of mud. The New York Times, 9 February 2019.

[3] Tajra, A. & M. Leite. 2019. Brumadinho: Dois dias depois de decisão, funcionários da Vale e engenheiros são soltos. UOL, 07 fevereiro de 2019.

[4] CES (Companhia Energética Sinop). 2016. Solicitação de autorização de supressão de vegetação – ASV da área do reservatório. Sinop-MT, dezembro-2016. 246 p.

[5] EON Consultoria e Planejamento S/C Ltda. 2018. A EON Consultoria e Planejamento S/C Ltda vem através desta responder as demandas da SEMA apresentadas em Parecer Técnico, datado de 25 de abril de 2018. EON, São Paulo, 12 de junho de 2018.

[6] Fearnside, P.M. 2018. Remoção prévia da vegetação na área do reservatório da UHE Sinop. Parecer técnico para o Ministério Público do Estado de Mato Grosso. 06 de dezembro de 2018.

[7] Fearnside, P.M. 2019. Brazil’s Sinop Dam flaunts environmental legislation. Mongabay, 01 de março de 2019.

[8] As pesquisas do autor são financiadas por fontes acadêmicas: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) (processos 429795/2016-5, 610042/2009-2, nº575853/2008-5, 311103/2015-4), Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Amazonas (FAPEAM) (processo 708565) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) (PRJ13.03). O autor agradece o Ministério Público do Estado de Mato Grosso (MPE-MT) pelas despesas de viagem e apoio logístico durante uma visita à área do reservatório de Sinop; ele não aceitou pagamento pelo parecer que fez para essa entidade. Este texto é atualizado a partir de [6]. Uma versão em Inglês foi publicada pela Mongabay [7].

A fotografia que abre este artigo é de um indígena Pataxó Hã-hã-hãe, da aldeia Naõ Xohã, às margens do rio Paraopeba, contaminado pela lama de rejeitos de Brumadinho (Foto: Lucas Hallel Ascom/FunaiI)

Leia os outros artigos da série:

A Hidrelétrica de Sinop

A Hidrelétrica de Sinop: 2 – Mortandade de peixes

A Hidrelétrica de Sinop: 3 – As explicações da empresa

A Hidrelétrica de Sinop: 4 – O processo de licenciamento

A Hidrelétrica de Sinop: 5 – Floresta morta e peixes em reservatórios

A Hidrelétrica de Sinop: 6 –Floresta morta e gases de efeito estufa

A Hidrelétrica de Sinop: 7 – Sinop como emissor de gases de efeito estufa

A Hidrelétrica de Sinop: 8 – Metilização de mercúrio

Philip Martin Fearnside é doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências e também coordena o INCT (Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia) dos Serviços Ambientais da Amazônia. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 500 publicações científicas e mais de 200 textos de divulgação de sua autoria que estão disponíveis aqui.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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