Imagina na Copa do Catar

SÉRGIO FREIRE Quem mora em Manaus viu-se em meio ao caos na semana que passou. A cidade parou. Após uma grande chuva, a energia foi-se em boa parte da cidade, os semáforos deixaram de funcionar e o trânsito virou uma […]

Por Amazônia Real Publicado em: 11/11/2013 às 00:00

SÉRGIO FREIRE

Quem mora em Manaus viu-se em meio ao caos na semana que passou. A cidade parou. Após uma grande chuva, a energia foi-se em boa parte da cidade, os semáforos deixaram de funcionar e o trânsito virou uma terra de ninguém, sem ordem e sem fluxo. Onde quer que se estivesse, enfrentou-se congestionamentos imensos e irritantes. Foi impossível ter estado no meio do inferno e não ter ficado irritado com a sensação de impotência. No entanto, passada a raiva do momento, atenuada pelos xingamentos e promessas de êxodo em massa, acredito ser interessante buscar compreender do que esse caos sistemático que a cidade tem vivido é sintoma. Sim, porque ele significa algo.

Penso que os problemas graves de Manaus em áreas cruciais ocorrem devido à falta de ação política das administrações municipais e estaduais que temos tido. Problematizo neste texto três deles, em maior ou menor grau: a mobilidade urbana, a educação e a saúde. Somados na equação e subtraídos da cidade, essas questões jogam a qualidade de vida lá para baixo. Essas áreas são problemas hoje, sustento, porque não têm sido pensadas em médio e longo prazos. E por que não têm sido? Porque nós temos tido prefeitos e governadores que administram de forma reativa, seja por falta de condição política ou seja por incompetência gerencial mesmo. Administração reativa é aquela que vive de apagar incêndios, diferente da administração propositiva, que planeja políticas para o futuro.

Quando Manaus foi anunciada como subsede da Copa do Mundo, prometeu-se muita coisa quanto à mobilidade urbana. Projetos de monotrilho, BRT e afins circularam em suas maquetes virtuais. Um sopro de esperança passou em nossos corações manauaras. Fato é que o tal legado da Copa deverá se limitar à reforma do aeroporto e à construção da Arena da Amazônia, que muitos julgam um elefante branco. Desconfio de que se ambos não fossem absolutamente essenciais para o evento da FIFA talvez não tivessem saído do papel também.

Para agravar a situação das promessas não cumpridas quanto à mobilidade, vivemos imersos no caos do transporte público com o sistema atual. Segundo a Superintendência Municipal de Transporte Urbano (SMTU), os ônibus representam menos de 2% da frota que circula em Manaus, mas transportam 56% da população. As consequências imediatas dessa desproporção são um péssimo serviço para quem precisa do sistema, por um lado, e a obrigatoriedade de tirar o veículo da garagem para aqueles que possuem carros, por outro. É o caos anunciado. É o caos que vivemos semana passada.

Antes de acusarem este texto de ser feito em cima de achismos pessimistas, vamos aos dados. Eles são bastante esclarecedores. O Departamento Nacional de Trânsito (Denatran) informa que o número de veículos de todos os tipos nas ruas de Manaus cresceu em 7,18% de 2012 para cá. Só o número de carros cresceu 6,40%, sendo hoje cerca de 424 mil automóveis. Há um carro para cada 4,6 habitantes. É um proporção alarmante, como muitos analistas afirmam. O número de motocicletas aumentou mais ainda: 11,44%. Temos quase 140 mil motos ziguezagueando pelas ruas da cidade. Usando a lógica formal: se o número de veículos aumenta e a malha viária não acompanha, o resultado é um trânsito cada vez pior e mais lento. Isso sem falar na condução de veículos em Manaus, que é do estilo agressivo, no estilo Sr. Volante do Pateta, um assunto que merece um texto só para si. Se o quadro não é bonito, essa situação toda ainda é potencializada por outro grave problema da cidade: a falta de energia elétrica.

Já há algum tempo que Manaus vive sob o regime de racionamento de energia. Apesar das negativas da Eletrobras – Amazonas Energia, de fato é isso que acontece. Em grande parte gerada por Balbina, a situação do fornecimento de energia para a cidade deveria ter melhorado com duas medidas: a chegada do gás (boa parte da produção de energia na cidade já usa gás natural) e a conexão do Amazonas ao linhão da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará, ocorrida em julho, interligando nossa rede ao sistema nacional da Eletrobras. O problema é que o gás é um tecnologia com investimentos tardios e a energia que chega a Manaus pelo linhão não consegue atingir o consumidor final por falta de uma rede de subestações de distribuição. A Eletrobras está agora, com o incêndio acontecendo, construindo subestações na cidade, como a de Cachoeira Grande. De novo, é a administração reativa correndo atrás de uma solução para o estrago feito pela falta de planejamento de longo prazo. Dessa vez, o corre-atrás é do Governo Federal.

Aliada ao problema da administração reativa, há ainda a questão do roubo de energia. O “gato” não é feito somente pela população de baixa renda nos bairros mais periféricos da cidade. Não. O felino está presente nos bairros de classes média e alta e, pasmem, até nas indústrias da Zona Franca. Segundo dados da Amazonas Energia, a perda decorrente das ligações clandestinas é da ordem de 30% de tudo que é ofertado. Esse custo, claro, é repassado para quem paga a conta: eu e você, pressupondo que sua residência não tenha gato, claro. A falta de cidadania de quem rouba energia é decorrência, entre outras coisas, da falta de um senso de coletividade que deveria ser trabalhado pela educação sistemática. E aí a gente bate de frente com outro problema: a educação também é vítima da administração da reação.

A qualidade da educação pública em Manaus é sofrível, a despeito dos heroicos professores. Os números também são bem esclarecedores. Em 2011, no IDEB (índice de Desenvolvimento da Educação Básica), que parametriza metas para a educação no país, Manaus ficou na 20a posição nas séries iniciais do ensino fundamental e na 23a nas séries finais. Isso entre as 26 capitais. É de dar dó. E não adianta fazer viradões antes das avaliações e premiar as poucas escolas que estão acima da média nacional, apenas 3,3% das escolas da rede municipal. Essas ações paliativas nada resolvem a médio e longos prazos. É preciso, insisto, mudar da administração reativa para a propositiva e pensar em um planejamento para décadas para que se reverta o quadro de verdade. É triste falar disso e constatar que na administração do ex-prefeito Amazonino Mendes Manaus ainda teve reduzidos os recursos destinados à educação na Lei Orgânica do Município. Passou-se dos então 30% para os 25% mínimos obrigatórios, com o apoio pragmático de muitos vereadores que hoje têm cinicamente a educação como bandeira. O ex-prefeito, ajudado por vereadores ruins, tirou dinheiro da educação. Diga-se de passagem, salvas as honrosas exceções de sempre, o nível dos nossos vereadores é correspondente às notas de nossas escolas públicas no IDEB: uma tristeza. Usei a educação como exemplo porque é a área em que atuo e sobre a qual me sinto mais à vontade para falar. Mas na saúde, outra área estratégica para qualquer lugar, a situação não é muito diferente.

Educação e saúde, somados à renda, são os componentes do IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). O IDH mede o progresso de uma região a partir dessas três dimensões. Segundo o Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil de 2013, Manaus é a 850a colocada no ranking de qualidade de vida, de um total de 5.565 municípios. Uma pergunta inevitável se projeta: como é que a cidade que é a 6a economia do país vive um caos tão grande em áreas tão essenciais da vida e entrega à sua população uma qualidade de vida tão ruim?

Talvez a resposta a essa pergunta não seja muito agradável, mas vamos lá. Uma análise aos olhos nus da lógica parece apontar para a explicação de que muita riqueza é produzida aqui, mas dessa riqueza pouco retorna para a cidade e/ou há uma concentração de renda indecente ampliando o abismo social e a quantidade de pessoas que não têm cidadania plena com acesso aos bens sociais. Não é à toa que a violência urbana e a sensação de insegurança aumentam a olhos vistos. Para desespero das classes média e alta, a violência deixa as zonas mais pobres da cidade para se fazer presente em áreas mais nobres com maior frequência, ajudando a recrudescer o triste discurso da direita reacionária sobre a necessidade de um apartheid social. Volta com força total a lógica do “bandido bom é bandido morto”. Mas é um fato que a sensação de insegurança não é apenas “psicológica”, como chegou a afirmar o então governador e agora senador Eduardo Braga (PMDB). É real. Bem real.

Enfim, nós, manauaras, estamos vivendo em uma bolha prestes a estourar. O caos da semana passada é o preço que começamos a pagar por décadas de falta de um planejamento sério em médio e longo prazos para a cidade. Sem planejamento não há desenvolvimento. A cidade cresceu e não desenvolveu. Manaus inchou e está doente. Desenvolvimento pressupõe uma ampliação corresponde da infraestrutura de serviços sociais para acompanhar o crescimento populacional. É essa infraestrutura que nos falta. E faz muita falta.

Não adianta brigar por mais 50 anos de Zona Franca se continuarmos a ter administrações reativas. É em vão querer garantias futuras se igualmente não pensarmos a cidade para o futuro, para além dos necessários remendos do presente. Precisamos, inclusive, repensar o próprio modelo da Zona Franca: bens tangíveis há muito perderam importância em relação a bens intangíveis: as grandes commodities hoje são informação e conhecimento. A riqueza hoje não é feita de átomos, mas de bits. Por que então não pensar em um polo de conhecimento que lide com a produção de informação? Investimento em ciência e tecnologia é estratégico em todo lugar que pensa o futuro. Em Manaus, no entanto, com sua característica reativa, parece ser sonho quixotesco para muita gente. Nós e os moinhos de vento…

Quando a febre aparece no corpo é preciso entender o que ela está sinalizando. Ao contrário do que muita gente pensa, a febre é uma aliada. Claro que é necessário cuidar para que ela não ultrapasse níveis que façam a pessoa convulsionar e por isso tomamos antitérmicos. Mas além de monitorar a febre é fundamental saber o que a está causando, senão, passados os efeitos do antitérmico, ela voltará porque o problema que a provoca não foi solucionado. A metáfora da doença serve para pensar Manaus em seu momento atual. A cidade está convulsionando. Os antitérmicos já não fazem mais efeitos. Está na hora de buscar as causas reais das febres e das convulsões, como aquela que a cidade sofreu na semana que passou. Quando o paciente morrer já não haverá muito a fazer.

Há cidades grandes que são grandes cidades. Manaus está se apequenando à medida que cresce. Minha cidade atrofia, de forma degenerativa. Ver alguém querido definhar é dolorido e Manaus, tão querida, está definhando. Temos de intervir por meio da forma que nos cabe para sair desse círculo vicioso da política de administrações reativas, alterando a cara da política para um política proativa, planejadora. Nós não precisamos de políticos mais novos. Precisamos é de uma política nova, que pense grande, no futuro, e cujo maior feito não seja pintar o símbolo e as cores de sua administração em cada parede de órgão público quando assume. Não vai dar para fazer uma revolução. Sei que é processo. Mas um passo que se dê e já não se está mais no mesmo lugar. Se há uma certeza é a de que é necessário fazer alguma coisa.

Já que falamos de Don Quixote, no tempo de Cervantes, o poeta Régnier, dizia: “o mundo é um carnaval onde tudo se confunde; quem pensa ganhar é amiúde quem perde”. Muitas aparentes vitórias políticas no passado não passaram de derrotas para a cidade em que vivemos no futuro. Aí é inevitável o chavão: se Manaus está assim agora, amigos, imagina na Copa do Catar.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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A agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real é uma organização sem fins lucrativos, criada por jornalistas mulheres em 20 de outubro de 2013, em Manaus, no Amazonas, Norte do Brasil. Sua missão é fazer jornalismo ético e investigativo, pautado nas questões da Amazônia e de seu povo. A linha editorial é voltada à defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos. ([email protected])