Política

Caos na Pandemia: Manauara descumpre lockdown parcial

Por Leanderson Lima Publicado em: 25/01/2021 às 20:46

Nas zonas leste e norte a reportagem presenciou aglomerações com moradores indo às ruas para ganhar algum dinheiro. Não há auxílio emergencial. Na imagem acima, passageiros embarcam em ônibus no T-5 (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)

Manaus (AM) – O primeiro dia do decreto governamental que restringe a circulação de pessoas em espaços e vias públicas foi ignorado por parte da população da capital do Amazonas. Em partes da cidade, a movimentação foi frenética e digna de uma segunda-feira qualquer na folha do calendário. Nas zonas Leste e Norte, as mais populosas e pobres de Manaus, este 25 de janeiro foi apenas mais um dia para sair de casa e trabalhar.

O governo não anunciou um auxílio emergencial. A prefeitura disse que enviará nesta teraça-feira (26) à Câmara Municipal de Manaus (CMM) a mensagem com o pedido de criação do “Auxílio Manauara” que prevê pagamento de R$ 200,00, por seis meses, para 40 mil famílias de baixa renda.

Na zona leste, uma fila de clientes dobrava o quarteirão em torno de uma agência da Caixa Econômica Federal no início da tarde desta segunda-feira (25). “Isso aqui é uma desgraça. Falam que não é para aglomerar as pessoas, mas você chega aqui e está desse jeito. Não é possível que ninguém esteja vendo isso”, reclama Matheus Barbosa, de 46 anos. Ele e a mulher se revezaram na fila do banco desde as primeiras horas da manhã. Ao ser questionado pela Amazônia Real sobre o decreto de Wilson Lima (PSC), Barbosa foi taxativo: “Decreto? Que decreto? Isso aqui é a zona leste, meu filho. O governo está cagando para esse lado da cidade”, desabafa.

Ao circular pela região central da capital, a reportagem presenciou um área vazia, com lojas fechadas e ruas praticamente desertas. Em bairros considerados mais nobres, como Vieiralves e Ponta Negra, o decreto foi respeitado também, como já acontecera na primeira onda da pandemia. Mas bastava avançar por bairros mais periféricos para constatar aglomerações em agências e terminais de ônibus.

O decreto do lockdown parcial, que está em vigor por sete dias e vai até 31 de janeiro, só libera o funcionamento das indústrias por 12 horas. A exceção são as empresas que produzem insumos hospitalares e de alimentação. A circulação das pessoas fica restrita somente para o necessário. Pressionado pela Procuradoria Geral da República, o governador decidiu pela restrição mais séria, ainda que ela só tenha efeito se houver cumprimento da quase a totalidade da população do Amazonas.

O Índice de Isolamento Social, desenvolvido pela plataforma Inloco para auxiliar no combate à pandemia da Covid-19 diz que a taxa no Amazonas no dia 24 de janeiro (sábado) era de 59,3% – similar ao índice de 10 de abril do ano passado, na primeira onda da pandemia.

Conforme o boletim Diário da Covid-19, divulgado pela Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas (FVS-AM), o Estado registrou nesta segunda-feira (25), 1.222 novos casos de Covid-19, totalizando 250.935 contágios em todo o Amazonas. Desde o início da pandemia, 7.232 já morreram no Estado. Manaus registrou 141 sepultamentos, sendo 46 declaradas como Covid-19, e ainda há três outros óbitos por suspeita da doença.

“Para garantir o pão de cada dia”, diz autônoma

Jhone no primeiro dia de maior restrição nas ruas de Manaus
(Foto: Leanderson Lima/Amazônia Real)

Na frente do Hospital-Pronto Socorro Platão Araújo, na zona leste, Jhone Auzier, de 21 anos, manteve aberta sua barraca de impressão de documentos. Com um notebook e uma impressora, ele precisa sustentar a família em um dos palcos da tragédia da Covid-19 em Manaus. “As pessoas têm suas necessidades, né? Precisam levar alimento para casa, para a sua família. Não tenho dinheiro guardado, então preciso vir aqui para garantir o pão de cada dia”, justificou-se.

O autônomo fatura de R$ 70 a 100 por dia, dinheiro que serve para sustentar a filha de dez meses, a mulher desempregada e o pai, de 64 anos, que sofre com sequelas de um acidente vascular cerebral. “E assim a gente vai seguindo, porque se a Covid não matar, a fome vai nos matar”, disse, revelando um dilema comum a muitos manauaras. “Acho errado o governador impor medida restritiva sem dar condição financeira de a gente se manter. É por isso que muita gente vem pra rua.”

Em um quiosque minúsculo na avenida Grande Circular, também na zona leste, Janete Alencar, de 46 anos, vende doces. Como faz todos os dias para conseguir o mínimo para garantir a sua própria sobrevivência, ela também ignorou o decreto estadual. “Ganho em média R$ 10 por dia aqui. Dá R$ 70 por semana, às vezes consigo 80. Eu chego 9 e vou embora às 16 horas. Quando estava normal, dava para ganhar um pouquinho mais, mas agora…”, disse.

Janete mora sozinha e estava conseguindo, nos últimos meses, se virar por causa do auxílio emergencial, que acabou e não será renovado pelo governo de Jair Bolsonaro. “Dava só para comprar comida. Ainda não passei fome, mas para continuar sem passar fome eu tenho que estar todo dia aqui, né?”, justificou. Para a vendedora de doces, a situação do Amazonas se encontra caótica por culpa da população. “As pessoas sabem que existe esta doença e ficam aí em bares, em lugares que transmitem jogos de futebol. Fica todo mundo se aglomerando e levando doença para dentro de casa. Quem sofre são as pessoas idosas.”

O drama de quem mora nas ruas

Serena na frente do Platão Araújo
(Foto: Leanderson Lima/Amazônia Real)

Em uma das calçadas do Hospital Platão Araújo, Serena, de 16 anos, contou que chegou a ser abordada por um policial, que estava fiscalizando quem cumpria o decreto de lockdown parcial. Ela disse morar nas ruas da periferia de Manaus há oito anos, compartilhando o espaço com mais sete moradores de rua. “Eu e minha amiga estávamos fazendo ponto e a polícia chegou e foi logo gritando: ‘Vocês não sabem o que é toque de recolher, não? Será que eu vou ter que prender vocês aí, caralho’. Eu respondi a ele: Como é que você quer que eu vá para casa, se nem casa eu tenho?”

Enquanto vende três palmas de banana por R$ 10, bem na frente do cemitério mais antigo de Manaus, o São João Batista, no centro-sul, Renato Araújo, de 24 anos, é silenciado pelo barulho da sirene de mais um carro funerário que chega. “É assim o dia todo”, comentou. “Mesmo assim não dá para desistir. Não dá para ficar em casa. Tenho que garantir o pão de cada dia. A Covid mata, mas a fome mata também”, disse Araújo, que tem mulher e dois filhos, um de 3 e outro de 2 anos.

Sistema de delivery não funciona em toda Manaus

Motoqueiro de aplicativo no centro de Manaus
(Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)

Para quem pode ficar em casa, respeitando o isolamento mais restrito que vigorará até 31 de janeiro, a situação também não era tranquila. A cantora Karen Francis, que em 2020 tentou trabalhar com shows em bares e restaurantes, tem tido dificuldade com a ‘nova onda’. O pai, pastor, e a mãe, trancista, vêm tentando garantir as contas da casa. Com a nova restrição de circulação, a família que mora no bairro Cidade de Deus, na zona norte, terá de se adaptar. “Onde moro é difícil de alguns aplicativos de delivery chegarem. Temos que sair de casa para comprar mesmo. As pessoas precisam se expor, sair e se arriscar”, disse.

O lockdown parcial, segundo a cantora, é uma medida “boa”, mas fica impossível de ser seguida sem auxílio e sem suportes básicos. “Essa medida pode dar uma segurada (na transmissão da covid-19), mas a população manauara, principalmente a de baixa renda, deveria ter um suporte financeiro para tornar esse momento de lockdown mais possível de se passar”, avaliou Karen.

Para a família de Romero Kael Ribeiro, 25 anos, as fake news nas redes sociais tiveram efeito ruim gerando mais aglomerações. Áudios e mensagens via Whatsapp falavam que a partir do dia 25 de janeiro nem os serviços essenciais estariam funcionando em Manaus. Para não expor a mãe fora de casa, o assistente de inspeção foi, então, ao supermercado mais próximo no fim de semana para fazer estoque de comida. Segundo ele, havia filas intermináveis. Na ronda realizada pela Amazônia Real nesta segunda-feira, os supermercados da capital aparentavam estar normalizados e sem aglomerações.

A partir desta segunda-feira, Ribeiro, que trabalha no bairro Novo Aleixo, foi dispensado por uma semana das atividades. “Como prestamos serviços para empresas do Distrito Industrial, dependemos do funcionamento delas, e algumas do Distrito vão parar”, explicou.

Governo afirma que fiscalização está ocorrendo

Fiscais da Prefeitura no centro de Manaus
(Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)

O governo do Estado do Amazonas se pronunciou sobre o descumprimento do decreto em algumas zonas da cidade e informou que a “Central Integrada de Fiscalização, coordenada pela SSP-AM, está nas ruas desde as primeiras horas da manhã de hoje (25) realizando fiscalização do novo decreto”, afirmou a nota.

O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, que está dando expediente em Manaus, postou um vídeo no fim da tarde desta segunda-feira apenas para propagandear que os insumos para a vacina Coronavac, produzida pelo Instituto Butantan, estão a caminho da China. Ele não falou nada sobre a situação do Amazonas, onde tem ordem para ficar até que a situação melhore. Nesta segunda-feira, o Supremo Tribunal Federal autorizou a abertura de inquérito para investigar a conduta de Pazuello, que é general da ativa do Exército, na crise de saúde do Amazonas. (Colaborou Edda Ribeiro)

Primeiro dia de maior restrição nas ruas de Manaus, movimento no Terminal 5 (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
Primeiro dia de maior restrição nas ruas de Manaus (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
Primeiro dia de maior restrição nas ruas de Manaus (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
Primeiro dia de maior restrição nas ruas de Manaus (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
Primeiro dia de maior restrição nas ruas de Manaus (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
Primeiro dia de maior restrição nas ruas de Manaus (Foto: Juliana Pesqueira/Amazônia Real)
Mateus Barbosa em frente a fila da Caixa na Grande Circular (Foto: Leanderson Lima/Amazônia Real)
enato Araújo, 24, vendedor de banana em frente ao cemitério S. João Batista (Foto: Leanderson Lima/Amazônia Real)
Janete Alencar na avenida Grande Circular em seu quiosque (Foto: Leanderson Lima/Amazônia Real)

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Sobre a matéria

Leanderson Lima

É graduado em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Nilton Lins. Tem MBA executivo em Gestão de pessoas e coaching, pelas Faculdades Idaam. Iniciou no jornalismo profissional em 2003, tendo trabalhado em veículos como Jornal A Crítica, Correio Amazonense, Jornal do Commercio e Zero Hora (RS). Na televisão trabalhou na TV A Crítica, Rede TV! Manaus, e na rádio A Crítica, como comentarista. Está na equipe de jornalistas investigativos da agência Amazônia Real desde o ano de 2021. É o vencedor do Prêmio Petrobras de Jornalismo de 2015, com a reportagem “Chute no Preconceito”.