Memórias Políticas do Céu

FÁTIMA GUEDES De cor negra, altura mediana, beirando oitenta anos, Maria do Céu se faz existir por sua altivez e irreverência expressadas na voz rouca, incansável nos gritos em defesa do Partido dos Trabalhadores (PT), ideário cultivado em suas […]

Imagem da Conferência Nacional de Saúde (Foto: Karina Zambrana/SGEP/MS2)

Por Amazônia Real Publicado em: 25/01/2016 às 17:43

FÁTIMA GUEDES

De cor negra, altura mediana, beirando oitenta anos, Maria do Céu se faz existir por sua altivez e irreverência expressadas na voz rouca, incansável nos gritos em defesa do Partido dos Trabalhadores (PT), ideário cultivado em suas memórias políticas. À primeira vista, o nome dialoga com seu perfil: sonhador, idealista e materialmente fora da realidade – aspecto observável no culto ideológico às concepções ainda latentes em sua existencialidade.

A conheci durante a 15^aConferência Nacional de Saúde (Brasília/DF). A Nordestina de olhar grave e expressão rígida nos encara como a se bloquear ou se defender de quaisquer cobranças dos rumos controversos do Partido dos Trabalhadores. Tal comportamento atrai isolamentos, aversões, palavras ásperas… E quase me deixo contaminar…

No retorno da Conferência, trajeto – Centro das Convenções/Aeroporto – troca de farpas entre Do Céu e companheiras que dividiam o táxi. Discordavam entre si sobre incoerências de suas lideranças na ocupação do poder. Nas leituras da Leal Militante, análises sobre o Partido contrárias aos acúmulos cultivados como verdade absoluta não merecem crédito: “É perseguição política; inveja da oposição”. E se a discussão enveredar sobre as contradições internas, aliados se transformam em cruéis adversários.

Por prudência, mantive-me na retaguarda e na observação. Após ataques simultâneos, as manas “oponentes” decidiram silenciar; Do Céu continuou resmungando. As tensões no interior do táxi certamente alertavam o condutor para o pior.

Finalmente, chegamos ao aeroporto. A solidariedade ultrapassa divergências e oferece ajuda no traslado das malas. Do Céu recusa deliberadamente.

Ilustração Iran Martins, de Parintins (AM)

No aguardo do voo, acompanhei discretamente os movimentos solitários da Companheira. Recolhia-se num passado cujos impactos do presente – aliancismos, contaminações e fragilidade frente às artimanhas neoliberais – tornavam-se invisíveis em sua apaixonada leitura. Em meio à rigidez do olhar, escaparam-lhe escassas lágrimas sobre a face esquerda. O dorso da mão foi o lenço.

Sintonizei o silêncio doloroso da Companheira com quem estabeleci um diálogo íntimo de compreensão, respeito e acolhimento. Encarou-me. Aproximei-me e estendi a mão. Entregou-se reservadamente como se o mundo inteiro fosse adversário. Abracei-a e sussurrei em seu ouvido: “Você é linda e única! Seu valor está na coerência, autenticidade e fé na luta”.

Ficamos juntas até a hora do voo. Nada mais que silêncio. Apertou levemente minha mão… Senti por não ter absorvido mais daquela fonte nativa, legítima, sem contaminação… Contrariamente à aspereza de suas palavras e gestos, possui um coração de criança – sensível, livre e autêntico.

Na verdade, o mundo e o País estão na contramão do ideário construído na inocência e pureza política daquela Lutadora Popular. Na altura da vida, já não muda; lealdade aos princípios é sua identidade.

O único pecado: é Do Céu; seu imaginário político ficou num tempo que não mais existe… Também fui Do Céu… O PT de Parintins/AM, onde me construí sujeita política, só existe nos meus sonhos mais puros: uma esquerda incorruptível que transformaria o Brasil numa república soberana. Lulu Santos havia alertado, “nada do que foi será de novo do jeito que já foi um dia… Tudo passa; tudo sempre passará…”

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

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