Meio Ambiente

Morre menina que estava internada com raiva humana. É o segundo óbito da doença em 15 anos no Amazonas

Por Elaíze Farias Publicado em: 02/12/2017 às 13:40

Os casos surgiram após ataques de morcegos hematófagos aos moradores da Comunidade Tapiira, na Resex Rio Unini, em 2016. Eles não foram vacinados pelos órgãos de Saúde (Foto de Josângela Jesus/ Facebook da Resex Unini)

A menina Miriã dos Santos da Silva, de 10 anos, que estava internada há 16 dias e foi submetida ao tratamento para combater a evolução de uma encefalite viral causada pela raiva humana, morreu vítima da doença na manhã desde sábado (02) no hospital da Fundação de Medicina Tropical (FTM), em Manaus. A criança foi mordida por mais de 20 vezes por morcegos hematófagos na Comunidade Tapiira, que fica na Reserva Extrativista Rio Unini, mas não foi vacinada na ocasião dos ataques do animal silvestre, o que impediria a evolução da doença.

É a segunda morte por raiva humana registrada em duas semanas no Amazonas. No último dia 16 de novembro o irmão da menina, Lucas Santos da Silva morreu de raiva humana. Ele foi mordido por morcegos por mais de dez vezes desde 2016, segundo a família.

Até então, o último óbito por raiva humana foi notificado no Amazonas em 2002, segundo o Ministério da Saúde.

A confirmação do ressurgimento da raiva humana no estado foi divulgada no dia 25 passado pelo Instituto Evandro Chagas, em Belém (PA), que analisou amostras do sangue dos irmãos Silva.

Nova internação

Outro irmão de Miriã, Mateus, de 14 anos, foi internado no dia 27 com queixa de dor no quadril, segundo a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS). “Ele foi examinado pela equipe médica que constatou tratar-se de uma lombalgia mecânica ocasionada por esforço. O menino passou a noite em observação e recebeu alta no dia seguinte”, disse o órgão.

Por volta das 20h30 deste sábado, a FVS informou que Mateus Santos da Silva foi novamente internado no hospital da FMT. A fundação divulgou o boletim médico do garoto esclarecendo que ele tem sintomas de encefalite viral e suspeita de raiva humana, mesma doença que matou seus outros dois irmãos. Leia no final desta matéria o boletim.

O médico Bernardino Albuquerque, diretor-presidente da FVS, ligada à Secretaria de Estado da Saúde do Amazonas, confirmou a morte de Miriã Silva em entrevista à agência Amazônia Real. “Ela morreu de raiva humana causada por mordida de morcego. A situação dela era gravíssima”, disse.

O médico explicou como foi o tratamento pelo Protocolo de Milwaukee, indicado pelo Ministério da Saúde, para casos de raiva humana com a medicação Biopterina e Amandatina.

“É um tratamento experimental ainda. Temos somente casos de três pessoas no mundo que conseguiram sobreviver com este protocolo. Não é um tratamento que a gente pode confiar totalmente, até porque depende da capacidade de reação de cada paciente. É uma situação que ainda não nos torna creditados a botar em rotina. A situação dela era gravíssima”, disse Albuquerque.

O médico-infectologista Antônio Magela, da Fundação de Medicina Tropical, coordenou o tratamento da menina Miriã Silva no hospital. Ele disse que a criança ficou sob cuidados intensivos com o medicamento durante dez dias, mas não surtiram efeito. O quadro de saúde dela permaneceu gravíssimo nesse período. Segundo ele, o corpo da menina foi liberado para o sepultamento no município de Novo Airão. “A letalidade da doença [raiva humana] se manifestou de maneira bem real neste caso”, disse.

Em nota divulgada na tarde deste sábado, a Susam disse que “a paciente apresentou pela manhã instabilidade hemodinâmica, com parada cardio-respiratória não responsiva à reanimação”.

Em entrevista anterior à reportagem, o pai de Miriã e Lucas, Levi Castro da Silva, 47, contou que os ataques de morcegos aos moradores da Resex Rio Unini foram denunciados aos órgãos de Saúde do município de Barcelos e do Amazonas no ano passado, mas a vacinação contra a raiva humana não aconteceu.

Este ano mais de 88 pessoas da Comunidade Tapiira foram mordidas por morcegos, disse a Associação dos Moradores do Rio Unini (Amoru).

“Ela (Miriã) amanhecia quase todos os dias amarela e encharcada de sangue devido às mordidas. Foram mais de 20 (mordidas). Era no cotovelo, nas mãos, nos dedos dos pés. Os sintomas da doença demoraram. Eles surgiram na mesma semana que apareceram no Lucas”, contou Levi Silva, que é uma das lideranças que fundou a Resex Rio Unini.

Questionado pela reportagem sobre a vacinação dos moradores da Resex Rio Unini, o diretor-presidente da FVS, Bernardino Albuquerque disse que uma equipe da Susam continua em campo fazendo cobertura de vacinação da região do Unini. Ele disse que a raiva humana foi provocada por mordedura de morcego silvestre, comum na região.

“A situação de controle é difícil, esses morcegos são contaminados em áreas silvestres. São morcegos que se alimentam de sangue. Á medida que tem desmatamento, a seca ou outros fatores que causam diminuição da fonte alimentar desses morcegos dentro do ambiente silvestre, eles começam a buscar o homem para se alimentar. Mas é preciso estudos maiores para que se possa ter uma clareza maior”, disso o médico.

Nesta semana, o Ministério Público Federal no Amazonas instaurou inquérito civil para apurar as medidas adotadas pelo poder público referentes à saúde dos ribeirinhos e, em especial, à contenção de ataques de morcegos aos moradores da Resex Rio Unini.

Conforme divulgou à Amazônia Real, em outubro de 2016 a Gerência de Zoonose da FVS recomendou a sorovacinação antirrábica humana a todas as pessoas mordidas por morcegos hematófagos nas comunidades de Lago das Pedras, Patauá, Tapiira, Terra Novo e Vista Alegre. A recomendação não foi atendida pelo órgão.

Ao determinar a abertura do inquérito civil, o procurador Fernando Soave considerou que a existência da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo, da Floresta e das Águas (PNSIPCF) tem o objetivo de garantir o direito e o acesso à saúde por meio do Sistema Único de Saúde (SUS), considerando seus princípios fundamentais de equidade, universalidade e integralidade, bem como abrindo caminhos para incluir as peculiaridades e necessidades em saúde dos trabalhadores rurais, dos povos da floresta e comunidade tradicionais.

O Ministério da Saúde diz que a raiva é uma grave doença infecciosa causada pelo vírus do gênero Lyssavirus, da família Rhabdoviridae, que leva ao óbito praticamente 100% dos pacientes contaminados. Desde o século 19, porém, já existe vacina contra a raiva, sendo ela bastante efetiva em impedir o avanço da doença, caso administrada em tempo hábil.

Um estudo o Ministério da Saúde diz que ataques de morcegos hematófagos, que tomam o sangue de galinhas, cães, bois e do homem, são comuns nos moradores de comunidades ribeirinhas e nos garimpos da Amazônia. As medidas preventivas são, entre outras:

Impedir que os morcegos hematófagos entrem durante a noite nas casas, utilizando telas de arame ou de plástico nas janelas; manter uma luz acesa durante toda a noite, uma vez que os morcegos hematófagos evitam a luminosidade; dormir em rede e/ou cama com mosquiteiro (cortinado) para evitar que o morcego vampiro se aproxime das pessoas dormindo.

A Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde tem um manual com as normas de prevenção e tratamento da raiva humana denominado “Normas Técnicas de Profilaxia da Raiva Humana”.

Vizinha ao Parque Nacional do Jaú, a Resex Rio Unini foi criada em 2006 pelo governo federal. Com uma área de 850 mil hectares de floresta nativa, moram no local 280 famílias. A gestão da reserva é de responsabilidade do Instituto Chico Mendes da Conservação da Biodiversidade (ICMBio), ligado pelo Ministério do Meio Ambiente.

Boletim médico da FMT

A Fundação de Medicina Tropical (FMT) informou em nota oficial, divulgada por volta das 21h deste sábado (2), que Mateus Santos da Silva, irmão de Miriã e Lucas, deu entrada na unidade, durante a tarde, com sintomas de febre e formigamento nas mãos. O menino é o terceiro filho de Levi Castro da Silva, um dos fundadores da Resex Rio Unini. Após passar por exames e avaliação da equipe médica, segundo a FMT, foi confirmado o quadro de encefalite viral e suspeita de raiva humana como os motivos da internação do garoto.

Mateus, diz o boletim médico, está internado na Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTI) da FMT, lúcido e sendo acompanhado por médicos pediatras e intensivistas.

O diretor de Assistência Médica da FMT, o infectologista Antônio Magela, que está acompanhando o caso, disse que Mateus já está sendo submetido ao protocolo de Milwaukee, indicado pelo Ministério da Saúde (MS), com uso dos medicamentos Biopterina e Amantadina. A FMT disse, ainda, que já foram coletadas amostras biológicaas do menino para investigar a suspeita de raiva humana. As amostras serão analisadas pelo Laboratório Central de Saúde Pública (LACEN). (Colaborou Kátia Brasil)

Matéria atualizada às 14h40, para acrescentar nota da Susam, e às 20h40 e às 21h45 para informar a nova internação de Mateus Silva no hospital da FMT, em Manaus.

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Elaíze Farias

Cofundadora da Agência Amazônia Real e editora de conteúdo. É referência em reportagens sobre povos originários, populações tradicionais, denúncias de violações de direitos territoriais e direitos humanos, crise climática, violências socioambientais e impactos de grandes empreendimentos na natureza e nas populações amazônicas. Entre as premiações recebidas, está o Prêmio Imprensa Embratel de 2013. Em 2021, foi homenageada no 16º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), junto com Kátia Brasil, também fundadora da Amazônia Real. Em 2022, recebeu o Prêmio Especial Vladimir Herzog. É jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).