Caos na Pandemia: O que se sabe sobre a nova cepa do Amazonas

Por Eduardo Nunomura Publicado em: 17/01/2021 às 19:30

Há mais dúvidas do que certezas em relação à variante do novo coronavírus, mas não se deve culpar a nova cepa pelo tragédia humanitária em Manaus

(Foto: Raphael Alves/Amazônia Real)

O governador Wilson Lima (PSC), em entrevista ao jornal O Estado de S.Paulo, prestou um desserviço ao dizer: “A informação que a gente tem é de uma nova cepa, uma nova variante do vírus que está em circulação no estado, que tem um poder de infecção muito maior, muito superior àquele primeiro vírus que foi identificado aqui”. Ainda é incerto se essa mutação é mais transmissível ou tem maior poder letal. Os cientistas estão debruçados sobre essa questão, mas entre o dito e não-dito fica a versão de um governante que se recusa a adotar medidas mais enérgicas para conter a pandemia. Na mesma entrevista, publicada no sábado (16), Lima, que já atuou como apresentador de TV, afirma que “em nenhum momento, o estado do Amazonas cogitou a possibilidade de fazer lockdown. (…) Essa possibilidade não passa pela nossa cabeça”. Eis uma verdade que já condenou os amazonenses a uma segunda e mais temida onda da pandemia e ameaça agora com um futuro incerto.

Lima não está sozinho nessa cruzada negacionista. O presidente Jair Bolsonaro disse que o governo federal “fez sua parte” no combate à pandemia, numa tentativa de se livrar de sua responsabilidade sobre a tragédia humanitária do Amazonas. O Ministério da Saúde apressou-se em informar que o caso de reinfecção na capital amazonense é da nova cepa da Covid-19. Mas foi o vice-presidente, general Hamilton Mourão, que revelou a jornalistas a estratégia diversionista do governo: “Você não tem como prever o que ia acontecer com essa cepa que está ocorrendo lá em Manaus. Totalmente diferente do que tinha acontecido no primeiro semestre, né?”

Para combater a desinformação, a Amazônia Real apresenta uma série de perguntas e respostas sobre o que se sabe sobre a nova cepa originária do Amazonas. As respostas foram extraídas de entrevistas com os especialistas Felipe Naveca, da Fiocruz-Amazônia, Ingra Morales Claro, do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de São Paulo, e Lucas Ferrante, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia. O primeiro assina a nota técnica que informa sobre a nova variante da Sars-CoV-2 no Amazonas. Ingra é coautora do artigo publicado em pré-print (uma versão prévia antes do artigo científico) no Virological, um fórum global de discussões epidemiológicas, com a caracterização genômica dessa nova linhagem do vírus. E Ferrante fez parte do grupo multidisciplinar que previu, em agosto, uma segunda onda da pandemia no Amazonas.

Nova linhagem estava presente em 42% dos pacientes infectados testados na cidade e também foi detectada no Japão, sugerindo que a variante do vírus teria sido levada por viajantes vindos do Amazonas – Imagem: Cadde Project

A nova cepa é mesmo originária do Amazonas?

“A gente precisaria de um estudo genômico com todos os estados do Brasil, com um grande número de amostras e de todos os meses. Não conseguimos ter certeza absoluta. Mas é possível dizer que por estar tão frequente na cidade de Manaus possa ter surgido no Amazonas. A partir do momento em que tivermos mais dados de outros estados, podemos inferir essa data inicial, que é o que estamos tentando fazer agora”, esclarece Ingra Morales, do Instituto de Medicina Tropical (IMT). O estudo da Fiocruz-Amazônia sugere que as cepas detectadas primeiro em quatro viajantes que chegaram ao Japão evoluíram de uma linhagem viral que já circulava no Amazonas desde abril de 2020. Designada provisoriamente de B.1.1.28 (K417N / E484K / N501Y), a nova variante da linhagem SARS-CoV-2 apresenta mutações na proteína Spike, ou espícula, que é a estrutura que o vírus utiliza para infectar a célula de um hospedeiro.

Quando essas mutações ocorreram?

A partir do levantamento sobre centenas sequências do genoma completo do SARS-CoV-2, os pesquisadores da Fiocruz Amazônia detectaram que a rápida mutação da variante B.1.1.28 (K417N / E484K / N501Y) só veio a ocorrer no fim do ano passado. “Essa mutação apareceu entre novembro e fins de dezembro de 2020, mas não temos certeza de quando surgiram. Estamos conduzindo estudos para isso”, diz Felipe Naveca. Segundo o virologista, em comparação com novas linhagens detectadas no Reino Unido e na África do Sul, a variante do Amazonas apresenta muito mais mutações.

Por que ela foi detectada primeiro no Japão?

Porque o sistema de vigilância sanitária no Japão testa mais. E, como em outros países desenvolvidos, a testagem da população faz parte de uma estratégia para mapear a evolução da pandemia. É a partir desses testes em massa que se pode criar bancos de dados genômicos, traçando uma história dos diferentes vírus em circulação. Foi só a partir do alerta das autoridades de saúde japonesas que o Brasil acordou para essa variante.

A cepa do Amazonas é mais transmíssivel?

A nova cepa foi identificada em 13 de 31 amostras positivas para o teste RT-PCR coletados entre 15 e 23 de dezembro de 2020, portanto em 42% dos pacientes testados, dentro de um estudo do Centro Brasil-Reino Unido de Descoberta, Diagnóstico, Genômica e Epidemiologia de Arbovírus, que conta com a participação do IMT da USP, do Imperial College London e da University of Oxford, entre outras instituições. Essa nova variante estava ausente em 26 amostras coletadas entre março e novembro pelo grupo de pesquisa. Isso permite dizer que essa linhagem é recente e dada a percentagem alta de detecção (42%) indica que seja mais transmissível.

Mas ainda se está no campo das hipóteses. “Precisamos investigar uma amostragem maior para ter certeza. Além disso, é preciso realizar outros estudos laboratoriais, de isolamento e cultura, para ter certeza dessa transmissibilidade, assim como foi feito com a variante do Reino Unido”, diz Ingra Morales. “Temos algumas suspeitas de ela ser mais transmissível, baseada nos dados das linhagens do Reino Unido e da África do Sul que compartilham algumas mutações com a nova variante e para os quais já havia dados de maior transmissão. Mas não é uma certeza”, acrescenta Naveca.

É mais letal?

“Não existe nenhum dado que comprove que até o momento ela cause doenças mais graves”, atesta Naveca. Na maioria das vezes, os vírus evoluem se tornando menos letais, até por uma razão de sobrevivência. Se ela causar mortes de um grande número de hospedeiros, ela própria pode se extinguir. E o objetivo principal de um vírus é se proliferar. Mas só estudos clínicos poderão atestar a letalidade da cepa do Amazonas.

A nova variante já está em circulação pelo Brasil?

Os sistemas de vigilância dos demais estados foram alertados e desde a semana passada passaram a fazer a busca da variante do Amazonas. No Rio de Janeiro, uma linhagem que se assemelha com a do Amazonas já havia sido detectada, mas esta possui bem menos mutações. “Não é possível saber se ela está contida no Amazonas, uma vez que quando detectamos uma variante circulando não quer dizer que aquele é o primeiro caso”, explica o virologista Naveca. “No nosso caso, precisamos fazer um estudo retroativo para ver desde quando essa variante foi inserida, desde quando está circulando e se está em outros estudos”, acrescenta Ingra Morales.

Sem um ***lockdown*, o Amazonas tem como evitar que a nova cepa migre para outras regiões do país?**

Ruas vazias do bairro Nova Cidade em Manaus durante o toque de recolher
(Foto: Márcio James/Amazônia Real)

Não. Se a variante já foi parar no Japão, por que ficaria restrita ao Amazonas? O Brasil testa muito pouco, não controla o trânsito de pessoas pelas vias aéreas, marítimas ou terrestres e desde a confirmação da mutação os governantes no máximo lamentaram a descoberta. Diante da explosão de casos em Manaus, é questão de dias para que o vírus esteja circulando pelo resto do País. “Ao não defenderem um isolamento rígido, inclusive fechando as fronteiras do Amazonas, estão colocando em risco não só a população de Manaus, mas de todo o Brasil”, alerta Ferrante.

Por que os vírus sofrem mutações?

Mutações de vírus já são esperadas, mas o SARS-CoV-2 evolui mais lentamente por uma característica peculiar de fazer um controle que outros vírus não possuem, explica Naveca. Em todo o mundo, banco de dados de sequenciamento dos genomas do novo coronavírus guardam centenas de linhagens distintas, mas as variantes do Brasil, do Reino Unido e da África do Sul chamaram a atenção dos cientistas por conta das várias mutações em sua estrutura.

“Como já acumula muitas mutações quando comparado com o genoma original, de 2019, já falamos em ‘constelação de mutações’. A nova variante contém 17 mutações, mas 3 delas têm importância biológica, a E484K, a K417T e a N501Y”, explica Ingra. Em estudos passados, a E484K já havia sido reportada no Rio de Janeiro e em Manaus. A N501Y é a variante da nova cepa do Reino Unido. A K417T foi detectada na cepa da África do Sul. Essas mutações merecem atenção especial por estarem ligadas às proteínas Spike, relacionadas à questão da transmissibilidade e reinfecção.

Novo Coronavírus SARS-CoV-2 Micrografia eletrônica de varredura colorida de células CCL-81 (verde) infectadas com partículas do vírus SARS-CoV-2 (marrom), isoladas de uma amostra de paciente. (Foto: NIAID)

Há uma relação de causa e efeito desta mutação com o agravamento da pandemia em Manaus?

“Não podemos afirmar ainda qual é o papel dessa variante na explosão de casos recentes. Precisamos sequenciar muito mais amostras para ver a frequência dela atualmente. Mas sempre considero que essa situação é multifatorial. A gente tem o início da temporada de vírus no Amazonas, que historicamente acontece em meados de novembro em diante, no chamado inverno amazônico, onde outros vírus respiratórios como o influenza aumentam. Então tem essa situação sazonal, a variante e a diminuição do distanciamento social”, explica o pesquisador da Fiocruz-Amazônia.

“Não é só por causa dessa variante que Manaus experimenta esse caos. É também por perda de imunidade sobre a primeira linhagem do novo coronavírus”, adiciona Ferrante. “Essa nova cepa não pode ser considerada como uma desculpa para a ausência de tomada de decisão.” A pesquisadora Ingra Morales acrescenta outro ponto: “Por estudos anteriores, sabíamos que o número de pessoas infectadas em Manaus já era muito grande em outubro de 2020, um aumento desproporcional e não compatível. Por isso foi necessário investigarmos rapidamente esse aumento tão grande, pois é possível que haja outras variantes circulando, como aconteceu na Inglaterra. Mas tivemos também festas de fim de ano, e não conseguimos dizer que esse aumento é consequência da introdução dessa nova variante”.

O caso de reinfecção recente em Manaus é da nova cepa?

Sim, os pesquisadores da Fiocruz compararam o sequenciamento genético das amostras da primeira linhagem, nos meses iniciais da pandemia, com a última variante e comprovou que eram distintas. “A reinfecção se deu pela nova variante descrita pelos pesquisadores japoneses, mas que tem origem no estado do Amazonas”, declara Naveca.

Se a nova cepa for mais contagiosa, os governantes têm pouco a fazer?

No Reino Unido, que faz milhares de vezes mais sequenciamentos do que no Brasil, a nova linhagem do SARS-CoV-2 só foi detectada quando já estava espalhada pelo país inteiro, lembra Naveca. Mas lá a decisão do primeiro-ministro Boris Johnson foi de adotar um lockdown mais rígido no fim do ano. Agora, diante da possibilidade de maior transmissibilidade da variante do Amazonas, Johnson decidiu proibir a chegada de voos da América Latina, de Portugal e países africanos. Para Lucas Ferrante (Leia aqui a sua entrevista sobre o atual caos em Manaus), um lockdown e mais uma campanha massiva de vacinação são as únicas formas de frear o avanço do novo coronavírus.

Por que os governantes têm alertado tanto sobre os riscos dessa nova variante?

Paciente de Covid-19 na porta de hospital em Manaus
(Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Porque eles se aproveitam de uma hipótese ainda em estudo para semear a dúvida na população e, com isso, desviam a atenção sobre suas próprias responsabilidades na falta de um plano para combater a Covid-19. Agem como se a nova cepa fosse um “castigo” e nada pudesse ser feito. “Essa nova cepa não pode ser considerada como uma desculpa para a ausência de tomada de decisão”, diz Lucas Ferrante.

A vacina será eficiente contra a nova cepa?

Os fabricantes de vacinas já demonstraram que elas protegem das variantes do Reino Unido e África do Sul. Como a variante brasileira acabou de ser descoberta, ainda não há estudos divulgados, diz Naveca. Mas rápidas adaptações podem ser feitas na fabricação dos imunizantes para que elas continuem eficazes contra o novo coronavírus, com ou sem mutação. Em resumo, como diz Ferrante, não existem evidências de que a vacina não imunizaria contra essa variante e qualquer notícia no sentido contrário é uma tentativa de desinformação da população.

Como se prevenir diante desta variante do novo coronavírus?

O vírus, mutante ou não, ainda não consegue atravessar as máscaras, não resiste à lavagem das mãos com água e sabão, ou ao álcool em gel, e a transmissão também é evitada com distanciamento social. “A gente precisa frear a evolução desse vírus e só se faz isso diminuindo a transmissão, o contato pessoa a pessoa, que é como se transmite o vírus, seja ele original ou mutante”, resume Naveca. “Se há mesmo uma variante mais transmissível, os nossos cuidados são os mesmos, mas temos que nos cuidar ainda mais, com máscara, distanciamento social, lavar as mãos, até que tenhamos acesso às vacinas”, finaliza Ingra.

Pessoas lavam as mãos nas praças atendimentos em espaços socioassistenciais
(Foto: Leonardo Leão / Semasc)

Leia #CoberturaCovid19Amazônia

Leia sobre o impacto da pandemia nas populações indígenas

Leia O que é o novo coronavírus?

Gostou dessa reportagem? Apoie o jornalismo da Amazônia Real aqui.

Esta reportagem é apoiada pela Open Society Foundations dentro do projeto “Marcas da Covid-19 na Amazônia”

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Eduardo Nunomura

Na Amazônia Real, exerce a função de editor de especiais. ([email protected]). Mestre e doutor em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo, é professor de Jornalismo na Faculdade Cásper Líbero. Iniciou a carreira jornalística em 1992, no grupo Folha, e teve passagens pelo Estadão e pela revista Veja. Foi repórter especial por quase dez anos no Estadão.