O Dom que nasce da Necessidade

FÁTIMA GUEDES Quem não conhece Dona Marilda, jamais imagina que por detrás de toda aquela simplicidade e timidez vive uma corajosa parteira cujos cuidados já acompanharam a vinda de mais de cem crianças na zona rural do Município de Parintins. […]

Dona Marilda Nogueira Prestes vive na Comunidade Perpétuo Socorro do Laguinho, na Vila Amazônia (Foto: Fátima Guedes)

Por Amazônia Real Publicado em: 01/09/2014 às 09:18

FÁTIMA GUEDES

Quem não conhece Dona Marilda, jamais imagina que por detrás de toda aquela simplicidade e timidez vive uma corajosa parteira cujos cuidados já acompanharam a vinda de mais de cem crianças na zona rural do Município de Parintins.

Natural do Igarapé do Saracura (Comunidade do Interior de Parintins), Dona Marilda Nogueira Prestes, casada, residente na Comunidade Perpétuo Socorro do Laguinho, Gleba Vila Amazônia (duas horas de barco da cidade de Parintins/AM), 11 filhos, decide abrir seu arquivo e contar suas experiências como parteira tradicional, atividade que começou aos 13 anos.

A primeira experiência realizou “lá no interiorzão” com uma cunhada. Estava há vários dias em trabalho de parto e sem condições de se deslocar para a cidade. Conta Marilda, “era grande a distância, não tinha transporte e ela já tava muito fraca. Vi aquela situação de sofrimento e me meti ajudar. Fiz ela tomar um chá bem forte de mangarataia, puxei as cadeiras dela, a barriga… Aí a criança nasceu. Já tava morta. Tinha passado dias no sofrimento, mas a Meire ficou bem. Taí pra contar”.

Daí pra frente dedicou-se a ajudar outras mulheres do interior que enfrentam as mesmas dificuldades, lá onde o Sistema de Saúde não se arrisca molhar nem sujar os pés.

Questionada sobre a origem de seus dons, afirma, “Aprendi com a necessidade. No interior não tem médico. Alguém tem que ajudar na hora do enrasque. Foi assim que eu aprendi”.

Nessa trajetória, vem acompanhando os partos das filhas e noras, num total de mais de dez netos nascidos através de seus cuidados. Hoje, com 80 anos, já não se sente em condições físicas de continuar partejando, “A idade já não ajuda. Às vezes, a mulher passa a noite toda com dor e só vai ter no outro dia. Nisso, eu já gramei muito sono e a saúde vai embora.” Afirma.

No entanto, continua sendo procurada, “Hoje, praticamente, só puxo barriga e endireito a criança quando tá de mau jeito. Parto, mesmo, só numa grande necessidade”.

Contou-nos que quase todos os partos que acompanhara não houve qualquer complicação. Lembra apenas do caso da irmã, Aldelina, da Comunidade Perpétuo Socorro do Laguinho: “A criança tava sentada. Puxei a barriga e ajeitei o corpo dela pra que a criança encontrasse um jeito de sair. Fui arrumando devagar as pernas da criança, até que nasceu. É uma menina. Hoje, acho que tá com uns dez anos.” Relatou com entusiasmo.

Dentre as experiências desenvolvidas, a Parteira descobriu que o chá da mangarataia ou da pimenta do reino ajudam “os puxos” e, aceleram o parto, “Esses remédios esquentam a mulher por dentro, ajudam nos puxos e o parto é bem rápido.” Confirma Dona Marilda.

Provocada sobre sua relação com o Sistema Oficial de Saúde, relatou que, na época da fundação SESP, foi convidada para fazer parte da equipe de parteiras tradicionais que atendiam naquela Unidade de Saúde, “Não aceitei. O negócio era muito estranho pra mim. Queria mesmo era ser acompanhante de mulher no interior. É o meu lugar”. Argumenta.

Em meio à timidez, comentou ainda sobre os partos realizados em casa e nos hospitais.

No hospital pode até ter mais recurso, mas não tratam da mulher do mesmo jeito que nós parteira faz em casa. A mulher chega lá com dor e fica sozinha, se chamar ou pedir alguma ajuda ainda pega ralho. Às vezes tem o filho sozinha. Já aconteceu de a criança cair no chão. Em casa não, agente ajeita um chá daqui, faz uma puxação ali e a mulher se sente amparada. Não tem comparação”.

E questionada sobre o reconhecimento por parte do Sistema, desabafou: “Nem sabem que nós existe. Não prestam atenção no nosso trabalho, mas sem ele, as mulheres do interior tavam numa pior. Já pedi: não quero ir pro hospital nem com nojo! Na minha casa, pelo menos, nós é cuidado com amor.”

O arquivo da Parteira fora aberto no terreiro da casinha onde mora, pequeno espaço cercado de ervas medicinais, sob o testemunho de viçosos açaizeiros em cuja acolhida esquecemos o avanço das horas. O retorno à realidade foi trazido por uma ninhada de marrequinhas partejada sob o acolhimento de uma solidária galinha, tal qual a relação de cuidados estabelecida entre os excluídos da história.

Por fim, aquela Parteira, misto de timidez e determinação, é mais uma entre tantas cujas memórias transformar-se-ão em vestígios adormecidos para um tempo em que os “dons”, certamente, serão levados a leilão e terão valor de mercado.

Nota:

Saracura – ave da Amazônia

Interiorzão – termo para identificar lugares distantes de difícil acesso na Amazônia

Mangarataia – Gengibre

Enrasque – termo popular para indicar aperto, situação de

Gramei- o mesmo que padecer, perder…

Puxos – no popular, contrações do parto

Puxação- massagem

Nem com nojo! – O mesmo que “nem morta”; “nem obrigada!”

Marrequinhas – espécies de pequenos patosnativos da Amazônia de fácil domesticação.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins e da Articulação Parintins Cidadã.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Amazônia Real

A agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real é uma organização sem fins lucrativos, criada por jornalistas mulheres em 20 de outubro de 2013, em Manaus, no Amazonas, Norte do Brasil. Sua missão é fazer jornalismo ético e investigativo, pautado nas questões da Amazônia e de seu povo. A linha editorial é voltada à defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos. ([email protected])