Política

Quilombolas do Vale do Acará deixam de votar por obras de empresa

Uma vala foi aberta na principal via de acesso da comunidade quilombola aumentando o trajeto que deveria ser percorrido pelos comunitários até suas seções de votação. Vala cavada pela BBF na principal via de acesso da comunidade quilombola Vila Formosa, […]

Vala cavada pela BBF na principal via de acesso da comunidade quilombola Vila Formosa, no Vale do Acará, no nordeste paraense (Foto:Reprodução/Redes sociais)

Por Cícero Pedrosa Neto Publicado em: 30/10/2022 às 18:41

Uma vala foi aberta na principal via de acesso da comunidade quilombola aumentando o trajeto que deveria ser percorrido pelos comunitários até suas seções de votação. Vala cavada pela BBF na principal via de acesso da comunidade quilombola Vila Formosa, no Vale do Acará, no nordeste paraense (Foto:Reprodução/Redes sociais)

Tracuateua (Pa) – Uma vala aberta na sexta-feira (29) na principal via de acesso da comunidade Vila Formosa, em Tomé-Açu, no nordeste do Pará, aumentou em 230 quilômetros a distância da localidade à cidade de onde a maioria dos comunitários iriam votar neste domingo (30) no segundo turno das eleições. A Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará (Malungo) afirma que a obra foi realizada pela empresa Brasil Bio Fuels (BBF), maior produtora de óleo de palma da América Latina.

Sem a vala, o trajeto que deveria ser percorrido pelos comunitários até a seção de votação seria de 20 quilômetros, de acordo a Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto Acará (Amarqualta). Não há informações de quantas pessoas deixaram de comparecer às urnas.

Para Raimundo Magno, um dos assessores quilombolas da (Malungu), “esta é mais uma atitude inaceitável da BBF contra as comunidades quilombolas do Vale do Acará”.

“Num momento tão crucial como este para os brasileiros e para os povos tradicionais e originários do Brasil, tirar a possibilidade de cidadãos circularem livremente e exercerem seu direito de votar é algo que não pode passar despercebido por nós. É algo que repercute no nosso futuro ou na falta dele”.

“Há anos a gente vem denunciando os crimes cometidos pela BBF, ameaças, ataques, contaminação dos rios e igarapés, problemas de saúde por conta de agrotóxico etc. Dessa vez ela prejudicou nosso direito de ir e vir cortando a principal estrada que a gente usa. O povo hoje não conseguiu nem ir votar por causa disso”, conta Josias dos Santos, coordenador de relações públicas da Associação de Moradores e Agricultores Remanescentes de Quilombolas do Alto Acará (Amarqualta).

A BBF mantém uma relação conflituosa com os quilombolas, ribeirinhos e indígenas dos povos Tembé e Turiwara, cujos territórios integram a região e fazem fronteiras com os vastos campos de dendê da empresa, que acumula diversas denúncias por ameaças e violências promovidas por parte de seus seguranças contras as comunidades tradicionais. Os casos são investigados pelo Ministério Público Federal (MPF) e pelo Ministério Público do Estado do Pará (MPPA).

A reportagem acompanha de perto os casos de violações de direitos humanos e ambientais cometidos pela BBF na região há pelo menos quatro anos. O último caso registrado é atribuído à empresa ocorreu no dia 24 de setembro deste ano, quando um grupo de indígenas Turiwara foi atacado por pistoleiros no quilômetro 14 da rodovia estadual PA-256. Quatro pessoas ficaram feridas. O motorista não-indígena Clebson Barra Portilho morreu no local do atentado.

Em relatório recente da Global Witness, organização que investiga casos de violações de direitos humanos ao redor mundo, a empresa é citada por conta da contaminação de aquíferos com seus rejeitos industriais e por violar direitos de povos indígenas e quilombolas.

“Muita gente ficou em casa”

Josias não sabe precisar quantas pessoas deixaram de ir votar por conta da interdição da estrada, mas cerca de 600 pessoas estão afetadas pelos danos da estrada. Segundo ele, a única alternativa para os comunitários conseguirem se deslocar até a cidade de Tomé-Açu, onde a maioria vota, seria percorrendo 230 quilômetros, passando por dois outros municípios.

“O trajeto que era pra ser feito em 20 quilômetros aumentou para 230, passando pelas cidades de Concórdia do Pará, Acará e depois Tomé-Açu, onde muita gente vota. Não tem carro de frete e nem ônibus para fazer essa rota, o cara tem que se virar e é caro. Muita gente ficou em casa e não foi votar”, explica Josias, falando que um desses casos é o do irmão dele, Josiel Dias dos Santos, que “não teve recursos para exercer o direito dele”.

Josias, é conhecido por ser uma das principais lideranças quilombolas da região e por viver sob ameaça constante por conta da luta travada contra a empresa. Ele conta ainda que as “valas” abertas na estrada também estão prejudicando o escoamento da produção de agricultores familiares das comunidades e impedindo a ida à cidade para comprar mantimentos. “Se alguém ficar doente então, piorou”.

A Amazônia Real procurou a Brasil Bio Fuels, que informou que “o local mencionado na reportagem é de propriedade da BBF, porto da empresa na Fazenda Paraíso para escoar frutos, local este que está sendo utilizado por furtadores”. Segundo a empresa, “o local não é usado por ribeirinhos, e sim para escoar os frutos subtraídos pelos criminosos. A região enfrenta invasões de infratores que buscam este porto para transitar com frutos ilegais da fazendas invadidas da BBF e realizar desmatamento em áreas de reserva legal”.

A BBF também informou que mantém “o diálogo contínuo com as aldeias indígenas e com as comunidades quilombolas que coabitam as regiões onde a Companhia desempenha suas atividades produtivas em 5 estados da região Norte, procurando sempre manter a boa convivência, promover o respeito e segurança as pessoas, ao meio ambiente e às culturas locais e tradicionais.”

Plantio de dendê da BBF, entre os municípios de Acará e Tomé-Açu (Foto: Cícero Pedrosa Neto/Amazônia Real/2018)

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Cícero Pedrosa Neto

Cícero Pedrosa Neto é repórter multimídia e colaborador da agência Amazônia Real desde 2018, atuando em temas relacionados ao meio-ambiente, impactos sociambientais da mineração, populações quilombolas, populações indígenas e conflitos agrários. Em 2019 foi um dos jornalistas premiados com o 41º Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humano na categoria multimídia com a série “Sem Direitos: o rosto da exclusão social no Brasil”, um trabalho colaborativo entre mídias digitais independentes: #Colabora, Ponte Jornalismo e Amazônia Real. Foi bolsista do Rainforest Journalism Fund | Pulitzer Center em 2020. É fotógrafo, documentarista, roteirista, podcaster e mestre em sociologia e antropologia pela Universidade Federal do Pará. ([email protected])