Sob a lua azul que vai

SÉRGIO FREIRE Woody Allen é igual a caviar e a bodó: ou se ama de paixão ou se odeia visceralmente. Eu estou no primeiro grupo. Acabo de ver “Blue Jasmine” e, como sempre, o filme do diretor americano rangeu um […]

Por Amazônia Real Publicado em: 25/11/2013 às 08:33

SÉRGIO FREIRE

Woody Allen é igual a caviar e a bodó: ou se ama de paixão ou se odeia visceralmente. Eu estou no primeiro grupo. Acabo de ver “Blue Jasmine” e, como sempre, o filme do diretor americano rangeu um monte de coisas aqui dentro da minha cabeça.

Bem rapidinho, eis a história. Desde meninas, duas irmãs adotadas seguem destinos bem diferentes. A mais feia e brega, Ginger, repete que foi culpa da genética. A bonita e chic, Jasmine, uma Cate Blanchett simplesmente fenomenal, nega, sabendo que foi. Mas como negar? Jasmine se casa com o bem-sucedido financista Hal, personagem de Alec Baldwin, que se mostra um golpista. Leva uma vida de luxo e futilidade, com caviar, filantropia e jantares para a alta sociedade. Tudo isso enquanto seu marido a trai com várias mulheres diferentes. Quando Hal vai preso e perde tudo, Jasmine precisa ir viver com sua irmã pobre e brega. É aí que começa o Woody Allen que faz pensar.

Uma das questões que me foram despertadas foi a das escolhas de vida afetiva. De um lado temos Jasmine, nascida Jeanette. Do outro, a irmã pobre Ginger. São dois padrões bem conhecidos na vida real: a mulher que casa com um homem que lhe proporciona viagens, conforto e bolsas Louis Vuitton e a mulher que se envolve com um sujeito comum, assalariado, mas que lhe faz feliz com pequenas coisas, daquelas que a gente guarda numa caixa como parte da nossa história.

Eu conheço pessoalmente os dois tipos aqui em Manaus, onde vivo. Jasmines possuem carros luxuosos, viajam para Miami a cada feriado, vivem com os melhores outfits. Sabem que seus maridos aprontam, mas fingem que não veem para manter o estado das coisas. A vista grossa para as puladas de cerca são fundamentadas na crença de que são apenas aventuras sexuais, sem vínculo, o que, em última instância não é considerado traição. E assim a vida segue. Todo mundo feliz, com as medidas sempre compradas com um cartão Platinum.

As Gingers são mulheres que almejam mais, claro, mas que não mudam de nome para ter mais. Há um limite e o limite é a preservação da identidade. Vivem na sua casa pequena de conjunto habitacional, têm seu trabalho decente, e, como disse acima, são felizes em dividir a pizza no sofá vendo Faustão. Todo mundo feliz, na medida do possível e enquanto as dívidas da Riachuelo e do cartão de crédito rolado há meses deixam.

Mas o que há de novo nisso? O filme de Woody Allen me fez pensar nas diversas formas de equilíbrio. Sim, antes de nos deixar impregnar por questões valorativas tipo “a primeira é vazia” e “a segunda é que é feliz”, a história nos mostra que é possível ser feliz – e infeliz – de muitas formas, que a felicidade é uma questão conceitual de como a definimos.

Mulheres como Jasmine buscam para a vida esse papel de mulher de homem com dinheiro. Esse é o ar que elas respiram. Se isso lhes falta, o mundo desaba e literalmente lhes falta o ar, como realmente faltava a Jasmine com suas crises de pânico depois que Hal foi preso e ela ficou pobre. Manter o equilíbrio é manter essa máquina funcionando a todo custo e a um alto custo. Isso é a felicidade para Jasmines. Se algo dá errado, a pessoa pira, volta a ser Jeanette e precisa urgentemente reiniciar o ciclo o mais rapidamente possível, como a personagem de Cate Blanchette busca fazer. Como ficar sem as três viagens a Miami? Como não fazer aquela festa de aniversário extravagante para o filho? O que vão dizer as minhas amigas Jasmines se eu faltar com isso? Não, sem isso elas enlouquecem e passam a falar sozinhas pela rua, como a pobre Jeannette.

Gingers estão mais próximas da maioria das pessoas e por isso tendemos a nutrir simpatia por elas. Questão de identificação. É assim que funciona: se há empatia, a capacidade de se colocar no lugar do outro, tendemos a ver com bons olhos. Se não há, rotulamos: “vazia, infeliz, aproveitadora”. Viver uma vida de mortais, como a maioria de nós vive, com filhos, contas, trabalho de oito horas e ter um lugar para morar com alguém para misturar calorzinho já está bom demais. Felicidade é isso para as Gingers.

A vida gira em torno do conceito de felicidade e o conceito de felicidade, nos lembra Woody Allen, é variado. Com ele vão variar os conceitos de amor, de traição, de importância, de futilidade, de família. Cada um vê de onde os pés pisam e querer que o outro viva a nossa felicidade ou querer viver a felicidade do outro é uma pretensão sem tamanho, além de esforço vão, porque cada um vive mesmo é a sua felicidade, com tudo o que ela implica. Gingers são felizes a seu modo. Jasmines também. A pergunta que vem é: até que ponto precisamos alterar o conceito de felicidade no percurso da vida, esticando as cordas que nos sutentam?

No filme, Jasmine quebra, no entanto, quando descobre mais um caso do marido. Porque há limites para o sujeito. Ele, o sujeito, não se entrega fácil e resiste enquanto pode para, um dia, estourar. Ela estourou. Por sua falibilidade humana, Jasmine desequilibrou seu mundo. Gingers sempre buscam, mas voltam correndo ao lugar seguro da vida média no primeiro sobressalto. E mais eu não falo para não estragar as surpresas do filme.

Há arte de vários tipos. Há a fast art, para consumo rápido de quem dela tem fome, como a música de Matheus e Kauan, de Anitta ou do Naldo. Lembra dele? Do jeito que vêm, essa música e esses cantores vão, cumprida sua função lúdica imediata de sentido conotativo ou denotativo óbvio. Na outra ponta, há a música de Tom, Chico, Caetano, que trazem um espaço a ser preenchido pelo sujeito, se perpetuando exatamente porque sempre haverá uma lacuna na música que nós vamos encher com a nossa história. A mesma coisa pode ser dita do cinema. Há filmes como “Crô”, “Se beber não case”, “Meu passado me condena” e “Velozes e furiosos”, de um lado, divertindo em curto prazo e cumprindo bem sua função, e há os Woody Allen, de outro, que nos permitem entrar e preencher espaços de significação a partir do que vemos e vivemos. Há gente que gosta de caviar e há gente que gosta de bodó. E ambos têm razão porque eles saciam suas diferentes fomes. Não é bonito saber que a felicidade é como um brilhante que, partindo a luz, explode em sete cores, revelando então os sete mil amores? Leitor querido, você tem fome de quê?

No fim, o que importa é que (in)felicidade é uma questão de prefixo, como dizia Guimarães Rosa e que todo mundo pode ser feliz sob a luz azul. “Blue Moon”, a propósito, era a música que tocava quando Jasmine conheceu Hal. A mesma lua que, a pedidos, vai iluminar os pensamentos dela, na suingada do Katinguelê. É, Caetano, de fato cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é…

Reportagem Noticiosa

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