Sobrou a Raiva

FÁTIMA GUEDES Frente às gritantes contradições político-históricas a que nos deparamos, é impossível sufocar nosso direito à raiva. A propósito, deste sentimento, o Educador Paulo Freire, em sua Pedagogia da Indignação (p.78), expressa a experiência: “Tenho direito à raiva, […]

Por Amazônia Real Publicado em: 23/03/2015 às 16:31

Área verde é habitat de periquitos,gaviões, beija-flores, preguiças e outras espécies. (Foto: Carmem Florêncio/AmReal)

FÁTIMA GUEDES

Frente às gritantes contradições político-históricas a que nos deparamos, é impossível sufocar nosso direito à raiva. A propósito, deste sentimento, o Educador Paulo Freire, em sua Pedagogia da Indignação (p.78), expressa a experiência: “Tenho direito à raiva, de manifestá-la, de tê-la como motivação para minha briga tal qual tenho o direito de amar, de expressar meu amor ao mundo, de tê-lo como motivação de minha briga porque, histórico, vivo a História como tempo de possibilidade não de determinação”.

Justo, nesse momento, o direito à raiva nos instiga, no mínimo, contestar o discurso morno e cínico de órgãos públicos deste Estado, ditos de defesa ambiental, quanto ao consentimento a absurdas injúrias praticadas por parte de empresas de interesses puramente financeirista. Como é natural, práticas legalistas, criminosas cujo favorecimento ao capital representa prejuízos incalculáveis aos bens culturais e aos interesses coletivos acaba nos tirando do sério, ao mesmo tempo, nos instiga exercitar nossa raiva, ainda que seja, soltando o verbo.

Eis a questão: fora destaque no Jornal A Crítica, (terça-feira, 17 de março, C4), propagandas relativas a ações de ‘plantio e sensibilização’, movidas pela Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMMAS), nos dias 21 e 22 do corrente mês, na área Verde do Loteamento Campo Dourado, Zona Norte, cidade de Manaus/AM, em comemoração à “Semana da Árvore e da Água”. Na divulgação, a Secretaria trouxe como propósito “chamar a atenção para a importância da conservação dos recursos naturais”. Sem dúvida, a iniciativa fora oportuna e necessária.

Trator devasta área verde obra de comércio. (Foto: Carmem Florêncio/AmReal)

No entanto, entre o dizer e o fazer há distâncias conflitantes. Do outro lado da propaganda, a mesma Secretaria que promoveu ações de ‘plantio e sensibilização’, na área Verde do Loteamento Campo Dourado, Zona Norte, em Manaus, para “chamar a atenção para a importância da conservação dos recursos naturais”, inventa mecanismos “legais” e autoriza Terraplanagem – Alvará n⁰ 04762015 – mais um passaporte dúbio de liberação para o Projeto de Implantação de um Centro Comercial (escritórios, restaurantes, lanchonetes, fast food) em conjunto com um Posto de Abastecimento Veicular, com aproximadamente, 300 vagas de garagem.

Para tal empreitada, o referido Projeto, sem dó nem piedade, suprimiu uma vegetação nativa numa área de, aproximadamente, 12.338,26m², situada na Av. Paraíba, ao lado do Condomínio Village Vert, Adrianópolis, na cidade de Manaus. Aquele espaço, abrigo de inúmeras árvores nativas, frutíferas, medicinais e todo um acervo biótico fora destruído em tempo recorde, ignorando-se aspectos éticos e legais constantes no Plano Diretor, no Código de Obras e Edificações, assim como na Lei de Uso e Ocupação do Solo do Município de Manaus.

Frente às visíveis infrações, moradores daquele Bairro, sentindo-se violados em seus direitos, no pleno exercício da Cidadania, cobram do Instituto Municipal de Planejamento Urbano (IMPLURB), Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SEMMAS) e IPAAM (Instituto de Defesa da Amazônia) respostas coerentes ao agravo. Como retorno, fez-se um silêncio morno, ao mesmo tempo cumplicioso, próprio das instituições públicas brasileiras que embriagam o lado esquerdo do cérebro, quando questões de interesses sociais exigem prioridade sobre o poder da grana.

Enquanto, naquele habitat, o licenciamento efetivava seu curso destruidor, periquitos, papagaios, gaviões, japiins, sanhaçus, canários, beija-flores e outras espécies como bicho-preguiça, camaleões e similares emitiam lamentos desesperados na tentativa de salvar seus ninhos, suas crias da ação criminosa negligenciada pelos órgãos citados. Moradores do entorno assistiam indignados, ao mesmo tempo impotentes, àqueles lamentos em forma de piados agudos, gritos desconexos e voos desorientados em protesto à voracidade da motosserra reproduzindo os perversos interesses mercadológicos.

O trágico cenário clama por ações efetivas e por respostas coerentes dos Órgãos responsáveis pela sustentabilidade do que resta de mananciais e áreas verdes nos espaços urbanos do Estado do Amazonas. Na mesma direção dos questionamentos – e mesmo por respeito ao Estado de Direitos Democráticos – é pertinente que se revele oficialmente os critérios e as circunstâncias em que ocorreram o licenciamento para o empreendimento da referida Obra: se houve Estudos e Relatórios de Impactos ao Meio Ambiente, assim como, Estudos de Impactos de Vizinhança.

Admitamos como hipótese a alegação (tanto da Empresa como do Estado), da necessidade de implantação de mais um empreendimento comercial desse porte e natureza, naquele trecho da Av. Paraíba… Não justifica. Aquele espaço da cidade de Manaus já comporta estrutura comercial suficiente e compatível às necessidades dos moradores daquela área.

É bom evidenciar que, na contramão das falácias salvacionistas sobre a Amazônia, verificam-se, em âmbito mundial, perene convergência de ações em defesa da biodiversidade, da saúde do Planeta, enfim, de uma Globalização Solidária que respeite diversidades culturais e toda forma de vida. Por esse olhar, a ação depredadora do Projeto de Implantação do Centro Comercial em questão, sob aval de Órgãos ditos de Defesa da Causa Ambiental no Amazonas, configura-se contrassenso, assim como, mais um crime ambiental consentido por quem tem o dever de coibir.

Ademais, enquanto a ganância for prioridade sobre o direito de todos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado; sobre a obrigação de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações, (Código Ambiental do Município de Manaus), e o Estado fingir não ver crimes dessa natureza é inevitável o caos ambiental anunciado, assim como, as terríveis sequelas para a espécie humana e para os demais seres vivos.

Em nosso pleno exercício do direito à raiva, certamente o último recurso quando se esgotam as possibilidades dialógicas, espera-se que o Coletivo Sadio que representa o Estado de Direitos Democráticos reestabeleça a credibilidade deste Poder e devolva ao Povo Manauara a Sadia Qualidade de Vida com base no respeito universal à fauna e à flora da região, independentemente do que, propositadamente, se deixa como brecha nas legislações de cunho ambiental. E para reafirmar nossos propósitos e compromissos cidadãos, expressamos nosso repúdio e indignação ao triste fato, ao mesmo tempo em que defendemos que a Justiça deve preceder à legalidade.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

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