“Tem, mas tá escondido…”

FÁTIMA GUEDES Em Parintins, tornara-se rotineiro e ao mesmo tempo vicioso o sumiço de medicamentos das Unidades Básicas de Saúde disponibilizados à população. Vez por outra, um desabafo revoltoso: “Onde enfiaram os recursos da Saúde?… Só deus e o prefeito […]

Por Amazônia Real Publicado em: 10/11/2014 às 10:38

FÁTIMA GUEDES

Em Parintins, tornara-se rotineiro e ao mesmo tempo vicioso o sumiço de medicamentos das Unidades Básicas de Saúde disponibilizados à população. Vez por outra, um desabafo revoltoso: “Onde enfiaram os recursos da Saúde?… Só deus e o prefeito sabem onde tá escondido!…”.

Numa outra versão, o desabafo dos engabelados da administração municipal lembra um fato ligado à dinâmica da comunicação entre populares. Nas palavras de Manuel Bandeira, “é a língua errada certa do povo” que desnuda hipocrisias e, sem trique-triques, vai direto ao assunto. Por esse entendimento, a Academia precisa ouvir mais as ruas; dialogar com as filosofias silenciadas se quiser produzir ciência de cunho social transformador…

Em verdade, é sabido que a nóia do ‘Ctrl C / Ctrl V’ é hoje o mais rentável bagulho para quem faz qualquer negócio por um título de mestre, de doutor e o que tiver em oferta. Como diria o Educador Mario Iasi, “o ensino superior no Brasil vem se transformando numa fabriqueta de universiotários”. Se exagero, Iasi apoia-se no volume de suas bagagens para pensar assim… Deixemos, pois, a crítica ao arbítrio do leitor e voltemos ao fato que lembra a linguagem articulada nas espontaneidades populares.

Faz tempo, o álcool vem fazendo estragos entre a cabocada da zona rural: é briga que nem presta! Pareceiros se espancam. Machões agridem mulheres, filhos e, muitas vezes, finda em morte. E não adianta reprimir o viciado: a mardita é ouro no mercado livre da droga lícita… Compartilhando desse ritual, compadre Lango, Gleba Vila Amazônia, criara códigos para fugir da pressão da diretoria da comunidade – “que fala, mas não se repara”; das esculhambações de Dona Kita e, principalmente, da perseguição da companheirada, amante do goró – quase sempre sem um puto pras doses.

Assim, quando a turma sedenta encontra compadre Lango pelas estradas, traça-se o diálogo:

– Nada por aí?…

A resposta temperada com bafo amanhecido sai da ponta da língua:

– Tem, mas tá escondido…

Numa dessas, a pareceirada acaba por encontrar a garrafa em moitas, aceiros de roçado ou sob tocos nas margens das estradas ou riachos. E pra contornar o furto, os parceiros guardam, nem que seja uma dose, para o logrado que espera a vez da desforra.

Com a frequência daquele diálogo incomum naquelas paragens, a comunidade, matutando daqui e dali, sacou o lance e sem recorrências técnicas ou teóricas avança na criatividade e economiza informações:

– Nada… Nada?…

– Hem!… Hem!…

Toda essa riqueza linguística ainda permite a utilização daquela comunicação, quando os comunitários se encontram e querem saber das novidades e fofocas da comunidade…

Na “língua errada certa do povo” há muita liberdade… É direto ao assunto. Por exemplo, sobre as constantes reclamações sobre a falta de medicamentos na Ilha dos Bumbás, o aconselhamento seria mais ou menos assim: “Larga de frouxura, parente! Reage, pô!”

Nota:

Gleba Vila Amazônia – Projeto de Assentamento no Município de Parintins;

Mardita – Cachaça no popular;

Goró – Idem;

Esculhambações – Repreensão acompanhada por desmoralização;

Sacou o lance – Decodificou a informação;

Frouxura – Indolência; covardia.

Compadre Lango e Dona Kita são personagens reais.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins e da Articulação Parintins Cidadã.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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