Vestígios de Curandagem

FÁTIMA GUEDES O município de Parintins abriga um grande número de curadores populares que, teimosa e silenciosamente, impõem-se à mercantilização da vida, num harmonioso diálogo com a natureza em prol de uma saúde coletivizada e acessível a todos. Com o […]

Por Amazônia Real Publicado em: 25/08/2014 às 13:13

FÁTIMA GUEDES

O município de Parintins abriga um grande número de curadores populares que, teimosa e silenciosamente, impõem-se à mercantilização da vida, num harmonioso diálogo com a natureza em prol de uma saúde coletivizada e acessível a todos.

Com o processo colonizatório muito se perdeu das tradições comunitárias. No entanto, apesar do massacre cultural, comunidades tradicionais, timidamente, conservam na oralidade seus conhecimentos e desenvolvem suas práticas no diálogo com seus curadores.

No universo da curandagem estão parteiras, benzedores, erveiros, pegadores de ossos ou consertadores de desmintiduras, costuradores de rasgaduras e sacacas.

Na oportunidade, trazemos um breve comentário sobre Pegadores de Ossos ou Consertadores de Desmintiduras, Costuradores de Rasgaduras e Sacacas.

O Pegador de Ossos ou Consertador de Desmintiduras dedica-se ao tratamento de contusões e deslocamentos de ossos. Tais nomenclaturas vão surgindo da associação entre os elementos envolvidos nas especificidades das práticas. Exemplo: o Pegador de Ossos ou Consertador de Desmintiduras serve-se de um jeito especial para ‘pegar o osso e consertá-lo’. O termo desmintidura vem de desmeter, isto é, o osso ou o músculo deslocou, ‘saiu do lugar’.

Os registros da medicina oficial ignoram esses termos e, dificilmente, os encontramos em registros acadêmicos. Pertencem ao acervo linguístico dos cabocos da região do baixo e médio Amazonas.

Entre tantos que desenvolvem esta prática, citamos Waldemar de Freitas, parintinense, 60 anos, 2º grau completo, técnico agrícola. Para ele, o Pegador de Ossos ou o Consertador de Desmintiduras é um “enviado de Deus”. Alguém que recebe “iluminação especial” para conhecer o corpo humano e colocar no lugar certo o osso ou o músculo doente. Iniciou seu trabalho ainda jovem: “Tudo aconteceu quando, durante um jogo de bola, atingi a rótula de um colega. Me sentia culpado. Nisso, uma voz me dizia ter chegado a hora de me dedicar a estudar o corpo humano e curar quem precisasse desses serviços. Daí, me dediquei, querendo sempre a melhoria da saúde de quem me procura. Tudo na solidariedade”.

Do silenciamento sobre seu trabalho declara: “Sei da importância da minha prática para a Saúde do Município, embora não seja reconhecida. O sistema é precário. A doença é consequência da pobreza. Se as pessoas tivessem dinheiro teriam boa alimentação e, assim, boa saúde”.

E sobre Costurar Rasgaduras? Com a palavra, Altina Oliveira, parintinense, 62 anos, ensino médio, líder da Pastoral da Criança. Descobriu-se curadora ainda criança: “Minha mãe sempre me via diferente pelas coisas que eu fazia, não sabia que eu tinha o dom de curar. O que vem de berço somente nós sentimos”.

Além de benzer crianças com quebranto, adultos com depressão e dores de cabeça, costura rasgaduras. Explica: “Quando a carne rasga é preciso costurar. Da rasgadura surge a hérnia. Através da concentração, com a ponta dos dedos sentimos o que produz a dor e ardência. Daí, faço a costura com resina da casca da laranja da terra e breu. Coloco a resina sobre a dor e em seguida emplasto com breu. São três dias, e recomendo ao paciente chá de cidreira ou capim santo”.

Também há outros jeitos de costurar rasgadura, comenta: “Há curadores que utilizam um quadradinho de tecido e agulha com linha. Concentram-se. Com orações vão costurando aquele tecido em forma de alinhavo sobre a lesão. O tratamento também dura três dias. Cada dia se costura uma parte do tecido até concluir. É o tempo em que é retirado todo o frio da região afetada e a carne volta ao normal. O paciente também deve tomar o chá”.

Altina é entusiasta em relação à importância de sua prática no meio popular: “Nosso povo são pessoas humildes e trazem em si a tradição dos antepassados. Os primeiros habitantes de Parintins só se cuidavam com os curandeiros. Acreditavam em seus remédios, nas benzeções e se curavam dos males físicos e espirituais”. Defende ainda na possibilidade de uma saúde de qualidade construída com o saber popular: “As necessidades fazem agente descobrir jeitos de viver e assim vamos aprendendo uns com os outros e melhorando a vida. Saúde é isso, todo mundo se ajudando a viver bem”.

Por fim, a outra referência de cuidado em saúde popular/tradicional – o Sacaca.

Esta categoria é identificada no ventre materno. Dos oito pros nove meses de gravidez a mãe ouve o choro do feto. É um aviso de que aquela criança vem com dons de curar por meio das plantas e orações.

Quem fala da questão é o jornalista Fred Góes, 65 anos, coordenador da comissão de arte do Boi Bumbá Garantido, também parintinense: “Em Tupi, sacaca é feitiço, é o sentido mágico da relação com o sobrenatural. É quem tem a capacidade ou o dom de lidar com práticas que permitem essa relação. Os pajés são considerados Sacacas. Já nasceram com o dom da transcendência e com a capacidade ou o poder da cura”.

Comenta que entre seus antepassados maternos há identificação de Sacacas e, embora não tenha desenvolvido a prática, admite possuí-la em estado adormecido. Fred lembra com precisão da hora de seu nascimento: das angústias por não querer deixar o ventre materno, do medo de enfrentar o desconhecido, do frio que lhe feria o corpo… Reconhece o fato como uma das características do Sacaca em potencial.

O trabalho do Sacaca como de outros curadores é de grande importância para a saúde da população. Conforme Fred, “Há localidades nessa imensa região em que o conhecimento do Sacaca pode levar à cura doenças físicas e até mesmo espirituais, através de pajelanças que, certamente, substituem certos tratamentos psicossomáticos”.

E continua: “É interessante destacar o número expressivo de pessoas que, muitas vezes, são desenganadas pela medicina oficial e acabam conseguindo a cura através do conhecimento do Sacaca”.

E sobre a possibilidade de uma Saúde construída a partir do saber popular, comenta: “O saber popular é um vetor importante na relação entre os conhecimentos científico e popular”. Nem os que praticam a saúde popular nem os que atuam na saúde oficial podem sentir-se autossuficientes. Se o objetivo é a cura, por que confronto?”.

Além das conceituações descritas, o termo Sacaca apresenta ainda outra versão popular – “grande conhecedor da floresta”.

Há uma necessidade emergencial de diálogo sobre a importância dessas práticas na construção da Saúde Pública. Portanto, essa construção precisa ser olhada como um direito inalienável e que reconheça outras formas de cuidados com atenção às diversidades culturais.

Benzeções – ato de benzer, acompanhado por rezas.

Capim Cheiroso – Andropogon citratusDC.

Cidreira – Melissa bicornisKlokov.

Curandagem – o que se relaciona aos cuidados popular/tradicionais de saúde.

Erveiros – quem prepara artesanalmente formas naturais com ervas.

Pajelanças – práticas dos curandeiros ou curadores da Amazônia conhecidos por pajés.

Quebranto – estado mórbido; o mau-olhado de certas pessoas sobre outras.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins e da Articulação Parintins Cidadã.

Reportagem Noticiosa

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