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‘Tenha coragem, você é um milagre de Deus’, diz pai ao filho curado de raiva humana no Amazonas

Por Vandré Fonseca Publicado em: 09/01/2018 às 23:58

A Susam afirma que Mateus Silva é o segundo paciente a ser curado da doença pelo protocolo de Milwaukee no Brasil (Foto da vacinação no rio Unini/Semsa/Barcelos)

A Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam) anunciou nesta terça-feira (9) que o adolescente Mateus dos Santos Silva, de 14 anos, internado por mais de 30 dias em estado gravíssimo com uma infecção no cérebro causada pelo vírus da raiva humana, foi considerado curado da doença após ser submetido ao tratamento com o Protocolo de Milwaukee.

Criado pelo médico norte-americano Rodney Willoughby, o protocolo é o responsável pela primeira cura da raiva humana no mundo, em 2004. Segundo a Susam, Mateus Silva é o segundo paciente a ser curado da doença pelo protocolo de Milwaukee no Brasil, e o primeiro no Amazonas.

Com a erradicação do vírus, Mateus deixou a Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) do Hospital e Pronto Socorro da Criança, na Zona Leste de Manaus, e continua internado, agora na enfermaria. Dois irmãos do menino morreram vítimas da doença: Lucas, de 17 anos, e Miriã, de 10.

A família, incluindo o pai, a mãe e quatro filhos, foi mordida por morcegos hematófagos, que transmite a raiva, na Comunidade Tapiira, que fica no Rio Unini, em Barcelos, no norte do Amazonas. Na época dos ataques dos animais silvestres, eles não foram vacinados pelas autoridades de saúde, o que gerou uma denúncia e abertura de investigação do Ministério Público Federal.

“Todo dia eu dizia para o meu filho: ‘tenha fé, tenha força, tenha coragem, você é um milagre de Deus’, disse o pai do menino, Levi Castro da Silva, sobre a cura do vírus da raiva em Mateus.

Levi é um dos fundadores da Reserva Extrativista Rio Unini, unidade de conservação onde estão localizadas nove comunidades ribeirinhas do Rio Negro. Na resex, 270 pessoas foram atacadas por morcegos em 2017, diz a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS). O caso foi tratado como surto de raiva por especialistas.

Um dos coordenadores do tratamento de Mateus Silva, o infectologista Antônio Magela Tavares afirmou que a raiva está erradicada no paciente. “Agora estamos lidando com as complicações”, declarou o médico.

Magela é chefe do Departamento Clínico da Fundação de Medicina Tropical, em Manaus, para onde o adolescente foi internado no dia 2 de dezembro. No dia 22 (de dezembro), o adolescente foi transferido para o Pronto Socorro da Criança, onde continua até o momento em tratamento.

A primeira cura de raiva humana no mundo aconteceu em 2004, em Milwaukee, estado do Wisconsin, nos Estados Unidos. O médico norte-americano Rodney Willoughby aplicou o tratamento experimental pelo protocolo de Milwaukee.

Em 2009, Willoughby participou da equipe que fez o primeiro tratamento bem sucedido da doença no Brasil. Em 2009, em Recife (PE), o adolescente Marciano Menezes da Silva, na época com 16 anos, contraiu a doença após ser mordido por um morcego. O paciente sobrevivente, atendido no Hospital Oswaldo Cruz, ficou com sequelas na fala, membros inferiores e tem crises convulsivas.

A raiva é uma grave doença infecciosa causada pelo vírus do gênero Lyssavirus, da família Rhabdoviridae, que leva ao óbito praticamente 100% dos pacientes contaminados. Desde o século 19, porém, já existe vacina contra a raiva, sendo ela bastante efetiva em impedir o avanço da doença, caso administrada em tempo hábil.

A doença é transmitida ao homem pela inoculação do vírus presente na saliva e secreções do animal infectado, principalmente pela mordedura, como cães, gatos e, nas áreas rurais, por morcegos e macacos. O vírus provoca a encefalite viral com sintomas como dor de cabeça intensa, vômitos e desconforto gastrointestinal. Para pessoa atacadas por animais infectados é recomendada aplicação da vacina antirrábica e o soro antirrábico, diz o MS.

Como foi o tratamento

Mateus dos Santos da Silva (Arquivo pessoal)

O Protocolo Milwaukee responsável pela cura da raiva humana foi adotado no adolescente Mateus dos Santos Silva a partir de 4 de dezembro. O tratamento prevê a sedação profunda do paciente, que recebe um antiviral (Amantadina) e uma droga denominada Biopterina.

A Biopterina, conforme explica o infectologista Antônio Magela Tavares, é uma precursora de neurotransmissores que tem seus níveis reduzidos em decorrência da infecção com o vírus da raiva. O uso dessa droga ajuda na motricidade (conjunto de funções nervosas e musculares) dos vasos sanguíneos e a prevenir convulsões.

De acordo com o infectologista, Mateus ainda corre o risco de ter sequelas, em função da ação do vírus e do tempo em que o paciente ficou sob fortes sedativos.

“Ainda não sabemos quais os níveis de sequelas e nem quais são, podem ser motores, podem ser dificuldades da fala ou para ouvir, ter convulsões”, explicou Magela.

O adolescente está sob os cuidados de uma equipe multidisciplinar. Ele ainda está com a cânula de traqueostomia, usada para evitar que se afogue ao engolir alimentos, mas que deve ser removida na próxima semana.

No dia 10 de dezembro, a Susam comunicou que o menino passou por um procedimento neurocirúrgico para medir e controlar a pressão intracraniana. Ele continua internado com quadro de saúde considerado gravíssimo, porém estável.

Alguns dias depois, em 22 de dezembro, Mateus foi transferido ao Pronto Socorro da Criança, onde seria submetido a uma nova cirurgia no crânio. Devido ao inchaço no cérebro, os médicos planejavam abrir a calota do crânio, para evitar a compressão.

Os médicos decidiram esperar até o dia seguinte, para fazer novos exames e confirmar a realização da cirurgia. Mas Mateus começou a reagir e os médicos desistiram do procedimento, conforme conta a chefe da equipe do Hospital e Pronto Socorro da Criança, a médica Dayse de Araújo Souza.

“A frequência cardíaca dele melhorou, estava muito baixa antes devido à infecção, e a pupila que estava dilatada voltou a fechar”, lembra a médica. Apesar da desistência da cirurgia, os dias seguintes foram difíceis para Mateus.

Dayse Araújo Souza conta que o período do Natal foi o mais crítico, pois os batimentos cardíacos dele voltaram a baixar e o cateter que já havia sido retirado foi recolocado. E já se aproximava o momento de suspender os sedativos a que o adolescente era submetido. O protocolo adotado prevê até duas semanas de sedação profunda.

A médica lembrou o momento da decisão sobre suspender os sedativos. Ela disse que a decisão foi tomada após uma conversa com o médico Rodney Willoughby, que desenvolveu o Protocolo de Milwaukee. A médica destacou o apoio dado pelo médico norte-americano, principalmente, para dar segurança as decisões tomadas.

Dayse de Araújo Souza, que em 23 anos de carreira nunca tinha tratado um paciente com o vírus da raiva, acreditava que a suspensão dos sedativos iria amenizar o inchaço, que estava na parte superior da cabeça, conforma mostrou uma tomografia. A intenção era parar essa medicação e ver como o paciente reagiria. O médico Rodney Willoughby concordou com a ideia. “A gente tirou os sedativos e viu que ele abriu os olhos”, comemora a médica.

Com a evolução, na quarta-feira (3) passada, os médicos retiraram os aparelhos que auxiliavam a respiração de Mateus. Entre os remédios que o garoto ainda toma, está um ansiolítico e relaxante, para acalmá-lo e ajudar no sono.

“Essa vitória não é só do Mateus, essa vitória é de todos, é da medicina da ciência porque é a partir de erros que a gente acerta”, disse a médica Dayse de Araújo Souza.

A fé da família

Comunidade Tapiira, banhada pelo Rio Unini (Foto: Josângela Jesus/ Facebook da Resex Unini)

Líder da Resex Rio Unini, extrativista Levi Castro da Silva, mesmo perdendo dois filhos para a raiva humana, acompanhou todo o tratamento do garoto Mateus junto com a esposa Débora e do filho Thiago. Com apoio de doações de amigos, a família mudou da comunidade ribeirinha Tapiira para Manaus.

Sobre a recuperação de Mateus, Levi disse que na enfermaria do Pronto Socorro da Criança, o menino já apresentava reações como demonstrar descontentamento ou sinalizar com piscar dos olhos quando conversam com ele.

“Ele não tinha movimento na perna esquerda e no braço e agora tem”, contou, em entrevista à Amazônia Real. “E o olhar dele também. Estava muito prejudicado e agora está um olhar mais sereno”. São reações que aliviam a dor de uma família.

Mateus foi o terceiro filho de Levi a ser diagnosticado com raiva humana na Comunidade Tapiira, no Rio Unini, município de Barcelos. Seu irmão Lucas, 17 anos, e a irmã Miriã, 10 anos, morreram no ano passado, em decorrência da doença respectivamente em 16 de no novembro e 2 de dezembro.

Lucas morreu em uma maca no corredor do Pronto Socorro 28 de Agosto, na zona centro sul de Manaus, com pouca assistência. Levi disse que já vinha pedindo providências desde 2016 às autoridades de Saúde, devido aos ataques de morcegos hematófagos na comunidade Tapiira.

A filha Miriã apresentou sintomas de raiva humana ainda em novembro passado. Chegou a ser internada na Fundação de Medicina Tropical em Manaus, onde foi iniciado o Protocolo de Milwaukee para tentar salvá-la. Ela morreu no mesmo dia em que Mateus foi internado pela segunda vez.

No dia 27 de novembro Mateus se queixou de dor no quadril, segundo a Fundação de Vigilância em Saúde (FVS), mas o hospital deu alta. “Ele foi examinado pela equipe médica que constatou tratar-se de uma lombalgia mecânica ocasionada por esforço. O menino passou a noite em observação e recebeu alta no dia seguinte”, disse o órgão.

No dia 2 de dezembro ele foi internado novamente. A FVS informou que Mateus tinha sintomas de encefalite viral e suspeita de raiva humana, mesma doença que matou seus outros dois irmãos. Transferido para a Fundação de Medicina Tropical, os médicos decidiriam iniciar o protocolo de Milwaukee.

Agora na enfermaria do Pronto Socorro da Criança, Mateus respira sem ajuda de aparelhos e consegue engolir, além de ter uma lenta, mas progressiva melhora clínica e neurológica. “Os médicos disseram que não há mais risco, porque a parte principal do cérebro dele está sem inchaço”, conta o pai do adolescente, Levi Castro da Silva.

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