Cultura

Aniversário das muitas Manaus e seus contrastes

Oficialmente, Manaus, a capital do estado do Amazonas, completa 348 anos neste dia 24 de outubro de 2017. Contudo, essa pode não ser a verdadeira data do nascimento de Manaus, segundo o Otoni Moreira de Mesquita, doutor em História Social […]

Vista da cidade de Manaus a partir do Cacau Pirera com floresta e o rio Negro. Foto Alberto Cesar Araujo-

Por Elvira Eliza França Publicado em: 24/10/2017 às 14:56

Oficialmente, Manaus, a capital do estado do Amazonas, completa 348 anos neste dia 24 de outubro de 2017. Contudo, essa pode não ser a verdadeira data do nascimento de Manaus, segundo o Otoni Moreira de Mesquita, doutor em História Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e professor associado e aposentado do Departamento de Artes da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Autor dos livros “Manaus: história e arquitetura – 1669 – 1915” (1a. edição pela Valer e 3a. pela EDUA) e “La belle vitrine: Manaus entre dois tempos – 1890-1900”, (1a. edição pela EDUA), Otoni me concedeu uma entrevista na qual ele esclarece pontos polêmicos da história de Manaus, e oferece algumas sugestões para tornar a cidade melhor.

Amazônia Real – Qual é a justificativa para você afirmar que a data de 24 de outubro pode não ser a data do nascimento de Manaus?

Otoni Mesquita – A primeira questão a ser levantada sobre a comemoração do aniversário de Manaus é a imprecisão do dia e do ano da sua fundação. A data mais remota que se refere a algum fato que pode ser interpretado como origem da cidade é a construção da Fortaleza da Barra do Rio Negro. Algumas indicações históricas, nem sempre precisas, apontam que essa fortaleza foi construída no ano de 1669, sem que haja uma data precisa do seu início, nem do dia da sua conclusão. Até o ano de 1990, Manaus comemorava sua data de aniversário em 5 de setembro, com parada estudantil, publicações especiais de jornais e festividades com cantores e artistas. No entanto, essa data se refere ao evento em que a região do Amazonas foi promovida à categoria de Província, o que ocorreu no ano de 1850. Na verdade, a instalação da Província foi, de fato, no dia 1º de janeiro de 1852, com a chegada de seu primeiro presidente, João Batista de Tenreiro Aranha, designado pela Corte para administrar a nova província.

A data de 24 de outubro para a comemoração do aniversário de Manaus foi adotada a partir do ano de 1991, quando o prefeito Arthur Virgílio Neto (PSDB) instituiu o feriado municipal. Na realidade, essa data se refere ao dia da assinatura da lei que promoveu a Vila da Barra do Rio Negro à categoria de cidade da Barra do Rio Negro, no ano de 1848. Contudo, a denominação do nome cidade de Manaus ocorreu somente em 1856, por força de uma nova lei que mudou, definitivamente, seu nome. Trazendo a questão para o plano pessoal, pode-se dizer que não é quando alguém adquire um documento de identidade que ele se torna uma pessoa, mas sim desde o seu nascimento, quando começa a construir sua identidade e memória pessoal no grupo em que vive. No caso de Manaus, há toda uma história que antecede as datas das leis que formalizaram a existência de um povoado que veio a ser chamado depois de cidade de Manaus. Mas antes da chegada do branco, já existiam no local populações nativas, com uma identidade étnica e cultural.

Amazônia Real – Isso quer dizer que você considera os povos nativos como os verdadeiros fundadores da cidade de Manaus?

Otoni – Sim! Ainda que eu tenha elaborado vários estudos, destacando a importância da contribuição da cultura material de origem europeia, na construção e na formação da identidade da cidade de Manaus, não posso ignorar a relevância da cultura dos diferentes povos nativos que aqui habitaram a região. Mesmo que cidade seja uma categoria da cultura branca, foram esses povos que contribuíram, grandemente, para a construção da cidade. Contudo, isso foi quase que ignorado, pois eles estavam na condição de subalternos e se mantiveram invisíveis na construção da história de Manaus. Parte da produção material das diferentes etnias que foram trazidas para a região encontra-se soterrada, abaixo das grandes construções. Essas populações detinham uma identidade cultural, falavam línguas nativas e adotavam outras formas de expressão que foram sufocadas e dizimadas pelos colonizadores europeus, em detrimento de uma ideologia de valorização do que era dos brancos e importada da Europa. Assim, os povos nativos tiveram que esconder a sua cultura, enquanto eram utilizados como mão-de-obra escrava e descartável na construção das grandes obras locais. Depois dos povos indígenas, também tivemos a participação dos escravos negros africanos e dos retirantes nordestinos que também padeceram perante uma sociedade que lhes restringia os direitos humanos básicos e não lhes reservou um papel relevante na construção da história escrita da cidade.

Centro de Manaus (Foto reprodução do Facebook de Otoni Mesquita)

Porto de Manaus (Foto reprodução do Facebook de Otoni Mesquita)

Amazônia Real – Como a cidade poderia honrar esses povos invisíveis nas homenagens de aniversário de Manaus?

Otoni – Esse é um problema muito amplo, que não basta criar uma determinação por lei para que seja adotada uma forma específica de homenagear esses povos. Nós necessitamos de uma educação crítica e inclusiva, que repense a História, incluindo aqueles que foram reais, mas que não ocuparam as posições de poder e de destaque, nem estão citados nos documentos oficiais do país. São aqueles que também foram esquecidos na construção dos monumentos comemorativos da cidade, ainda que tenham contribuído, de modo significativo, para a construção de Manaus. Temos que lembrar sempre que a cidade foi composta por diferentes populações e variadas descendências. Portanto, não temos como apagar grande parte dessa História, ainda que tenha omitido em seus escritos, o que realmente existiu nas relações de dominação. Por conta dessa insatisfação com a história, nós não poderemos sair por aí querendo derrubar e pichar monumentos e edifícios públicos e privados, como forma de protesto, como se tudo pudesse voltar a ser como era antes. Precisamos ter respeito por todas essas populações ancestrais, pois parte dela é detentora de uma memória que tem que ser resgatada, por meio de trabalhos de investigação. Também temos que considerar as demais populações que vieram para Manaus e que estão presentes em grande parte, na periferia da cidade, sem acesso aos seus direitos básicos de saúde, educação, segurança pública, lazer etc.

Amazônia Real – Você falou sobre pichar edifícios públicos e privados. O que pode ser proposto para a gestão local para manter as manifestações artísticas de contestação e aquelas que são encaradas como inconvenientes pela população porque “enfeiam” a cidade?

Otoni – Acredito que seja uma questão muito delicada, do ponto de vista político, estético e educacional. Penso que temos que descartar, inicialmente, a política de repressão que o prefeito Dória aplicou em São Paulo, pois acredito que não surtiria o efeito desejado e poderia haver até uma reação mais intensa, por parte dos executores desse tipo de manifestação de protesto e “empoderamento”. Alguns grafiteiros afirmam que não há distinção entre grafite e picho, pois em geral eles executam as duas coisas. A mim incomoda muito o vandalismo nas obras públicas e privadas, por parte desses jovens, porque ao pichar os espaços eles assumem uma posição autoritária e até mesmo exibicionista. Eles impõem a sua forma de expressão à população sem qualquer negociação, e às vezes causam grandes prejuízos ao patrimônio. Em geral, a população pensa que quem faz isso são todos oriundos da periferia, mas isso não corresponde à realidade. Há jovens de todos os níveis sociais e com diferentes níveis de formação educacional, incluindo aqueles que são da classe média, aparentemente “caretas” no cotidiano, mas que fazem isso como um ato de rebeldia. Outro dia, vi uma reportagem sobre pichação em São Paulo, na qual uma repórter acompanhou um pichador maduro em seu cotidiano. Quando chegou à casa dele, não viu qualquer rabisco ou sinal gráfico nas paredes da casa e o questionou sobre isso. Ele disse que não havia pichação ali, porque era o seu “lugar de paz”. Isso demonstrou que a pichação, pelo menos para ele, não era algo agradável e que trazia mal-estar para o outro.

Amazônia Real – O que você pensa sobre o fato de muitas pessoas em Manaus também urinarem e evacuarem na rua, inclusive no centro histórico da cidade, no qual passam muitos turistas?

Otoni – A qualidade de vida no centro histórico de Manaus tem decaído muito há pelo menos há quarenta anos, depois da instalação da Zona Franca de Manaus, em 1967. O crescimento populacional era grande, mas se tornou maior depois da década de 80, com a vinda de muitos imigrantes para a região, em busca de oportunidades de emprego. Isso provocou uma desestruturação na cidade em relação ao que havia e que já não era eficaz. Mais recentemente, com a crise econômica e social do país, houve uma ocorrência maior na cidade do número de desemprego e falta de ofertas de trabalho. Isso vem causando um aumento no número de moradores de rua, muitos deles pessoas com transtornos mentais, dependentes químicos, que dormem e fazem suas necessidades fisiológicas nas ruas da cidade. Alguns vivem de biscates como guardadores de carro, limpadores de vidros de automóveis, vendedores ambulantes e até mesmo praticantes de furtos. Não existe na cidade um sistema de albergue para atender a essas pessoas, pelo menos à noite, quando poderiam ter um local para tomar banho e um local para dormir. Ali, também teriam banheiros para suas necessidades fisiológicas. Com apoio de psicólogos e assistentes sociais receberiam ajuda para sua inclusão social. Eu pensei que, com a recuperação do prédio da Santa Casa de Misericórdia, poderíamos ter um lugar assim, para abrigar essas pessoas. Isso poderia diminuir o índice de violência, riscos e sujeira no centro da cidade. Mas também temos que considerar que muitos comerciantes e pessoas “de bem”, ambulantes, estudantes e outros também jogam lixo na rua e acham isso normal, o que enfeia a cidade e descaracteriza a amorosidade dos habitantes para com a cidade que os acolhe.

Pichação nos monumentos da Praça da Matriz em 2012 (Foto: Alberto César Araújo)

Escavações arqueológicas do projeto Amazônia Central (PAC) nos arredores de Manaus. (Foto: Alberto César Araújo)

Amazônia Real – Qual a mensagem que você quer deixar para Manaus nesse seu dia de aniversário?

Otoni – Bom, a primeira coisa quero lembrar é que uma cidade não é feita somente de construções, de vias, de carros e de outros produtos de consumo material como importados etc. Ela é feita, essencialmente, por suas tradições e pelo seu caráter humano. Portanto, eu penso que a importância do aniversário da cidade está na forma como cada um de nós a trata, pois o tratamento que damos a ela é o que a configura. Concluindo, eu proponho que as pessoas tratem a cidade como se fosse sua própria casa, as ruas e praças como se fossem seu jardim, um espaço real, tratando Manaus com mais amor.

A fotografia acima é da vista da cidade de Manaus a partir da margem do rio Negro, ainda com floresta, no Distrito de Cacau Pirera (Foto: Alberto Cesar Araujo)

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educação: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Elvira Eliza França

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS). Criou a técnica terapêutica com as expressões das emoções denominada “Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos - CAMM.”