A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto

O legado e o estigma de Sarney

José Sarney é político destacado e atuante há mais de meio século. Pulou do governo do Maranhão para a presidência da república, galgando no caminho os cargos de deputado federal e senador. Tem um dos mais bem sucedidos currículos políticos […]

Cidade do Laranjal do Jari, no Amapá (Foto: Divulgação)

Por Lúcio Flávio Pinto Publicado em: 02/11/2017 às 16:26

José Sarney é político destacado e atuante há mais de meio século. Pulou do governo do Maranhão para a presidência da república, galgando no caminho os cargos de deputado federal e senador. Tem um dos mais bem sucedidos currículos políticos do país, que se estende à cultura, por sua condição de membro da Academia Brasileira de Letras – um imortal, portanto.

Esse brilho é tisnado a cada novo resultado da apuração de indicadores sociais. O Maranhão, sua terra natal e origem da sua carreira política, sempre aparece no último lugar ou bem próximo do rabo da fila nos rankings que medem a qualidade de vida do povo. Isso, apesar de ter tido, por cinco anos, um filho no comando da nação e ser beneficiado por duas agências de desenvolvimento regional – a Sudene, voltada para o Nordeste, e a Sudam, com jurisdição amazônica. Localizado no Meio-Norte, o Maranhão recebe os investimentos nas duas regiões. É condição única na estrutura federativa brasileira.

Nas últimas estatísticas divulgadas, da violência e do ensino fundamental, o Maranhão foi superado em negatividade pelo Amapá. Foi para esse Estado, que se tornou território federal ao ser desmembrado do Pará, em 1944, que Sarney transferiu seu domicílio, em 1990, quando o PMDB maranhense lhe negou a legenda e ele teve que encontrar abrigo para sua sucessora, a filha, Roseana, em outro partido.

Verdadeiro estranho no ninho, Sarney conseguiu três mandatos seguidos de senador até desistir de mais uma reeleição, em 2014, aos 84 anos, por cansaço ou realismo político: talvez não conseguisse os votos necessários para ocupar de novo a sua cadeira na câmara alta.

Em 2006, ele quase perdeu a eleição para a então desconhecida Cristina Almeida, do PSB. Foi o ano em que o senador passou mais tempo no Amapá, quase um mês. Costumeiramente, ele só viajava para o seu domicílio eleitoral duas ou três vezes por ano. Em 2010, bateu o seu recorde de abstinência: só apareceu no dia da eleição para presidente. Chegou a Macapá de jatinho, às 7 horas da manhã e decolou para o Maranhão ao meio-dia.

Aos que o atacam por sua omissão na terra que lhe foi tão acolhedora e generosa, repetindo as críticas que cresceram no Maranhão, a ponto de vetar-lhe o sucesso nas urnas, o ex-presidente costuma responder que quase tudo que foi criado ao longo de um quarto de século da sua presença no Estado teve a sua participação.

Cita como exemplo a Área de Livre Comércio Macapá-Santana, “o carro-chefe da economia amapaense, responsável por 80% dos empregos”, a Zona Franca Verde, as três hidrelétricas que foram construídas nos últimos anos e estão gerando a maior parte da energia consumida no Estado.

A história contada pelo ex-presidente é contestada e os alegados benefícios dessas iniciativas postos em dúvida. A maior prova estaria no crescimento do Amapá como rabo de cavalo: quanto mais cresce, mais vai para baixo nos indicadores de progresso. Sinal de que as atividades implantadas para a extração das riquezas naturais servem mais aos compradores dos produtos do que aos seus fabricantes.

Os amapaenses conhecem muito bem esse processo colônia. Durante quase meio século seu subsolo forneceu ao exterior, especialmente aos Estados Unidos, o melhor manganês do mercado. Para que isso se tornasse possível, foi instalada a mina, uma ferrovia, um porto e uma cidade industrial. Os royalties serviram a um fundo de fomento e à construção da primeira hidrelétrica da Amazônia.

Quando a jazida de Serra do Navio se exauriu, o Amapá se tornara maior e mais populoso, mas estava tão pobre quanto antes. Ou mais. Sobreviveu das verbas federais transferidas por ser um território federal, status no qual se manteve até 1988, quando virou Estado.

O paradoxo entre o discurso de Sarney e o dos seus críticos talvez se explique pela dificuldade de escrever a história de áreas coloniais. Por mais meticuloso que seja a pesquisa sobre a socioeconomia local, ela falha e conduz a interpretações equivocadas quando não leva na devida consideração o além-mar, o outland dos colonialistas ingleses.

O Pará, vizinho do Maranhão, costuma atribuir a Sarney, por sua influência no topo do poder político e empresarial, a maior derrota sofrida pelo Estado, lamentada até hoje: não ter conseguido que o minério de ferro de Carajás, o melhor do planeta, fosse escoado pelo interior até um porto paraense no litoral.

Há mais de 30 anos o minério segue pela maior ferrovia de carga do mundo até o porto da Ponta da Madeira, na ilha de São Luís, a capital do Maranhão. Sarney teria sido mais esperto e capaz do que Jarbas Passarinho, a maior liderança surgida no Pará após o golpe militar de 1964. Ele só não foi presidente da república. Mas foi senador e ministro várias vezes, além de governador do Estado.

Na verdade, quem decidiu como o minério sairia do Pará foram os japoneses, os maiores clientes de Carajás até recentemente, quando perderam essa posição para os chineses. Ambos tiveram que exigir uma logística rigorosa, definida conforme seus interesses, para que o minério chegasse aos seus portos, a mais de 20 mil quilômetros de distância, tão ou mais barato do que o produto australiano, ali perto.

Foi uma façanha do colonialismo, perto do qual a política, a politicagem e a visão regional se reduzem a meros detalhes, coisas supérfluas.

A fotografia que ilustra este artigo é da Cidade do Laranjal do Jari, no Amapá

(Foto: Divulgação)

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Leia mais aqui. Veja outros artigos do autor.

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Sobre a matéria

Lúcio Flávio Pinto

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.