Questão Agrária

Funcionários de fazenda são indiciados por crime de homicídio contra três trabalhadores rurais em Canutama

Por Elaíze Farias Publicado em: 16/12/2018 às 19:22

Os acusados Antônio Mijoler Garcia Filho e Rinaldo da Silva Mota estão presos em Rondônia. Eles teriam ameaçado e ateado fogo em casa de testemunhas (Foto: Polícia Civil de Rondônia)

Manaus (AM) – “O Flávio era um homem generoso, misericordioso e que lutava por justiça social. A mancha de sangue dele está na terra e está viva em nossos corações. É um imenso vazio não saber onde eles ou os corpos estão”, diz Ângelo Lima de Souza. Ele é irmão de Flávio Lima de Souza, que há pouco mais de um ano desapareceu, junto com outros dois trabalhadores rurais. Tudo aconteceu na comunidade Igarapé Araras, localizada à margem da BR-319, no município de Canutama (distante 615 quilômetros de Manaus em linha reta), no sul do Amazonas.

“Dá um vácuo, sobretudo quando se trata de caso nessa situação. Porque é uma perda sem algo material, que a gente possa se apegar para sentir algum tipo de alívio. É assim que toda família se sente quando não tem o corpo do ente querido”, diz Ângelo.

Flávio Lima de Souza, 42, Jairo Feitoza Pereira, 52, e Marinalva Silva de Souza, 35, foram vistos, pela última vez, no dia 14 de dezembro de 2017, quando realizavam levantamento fundiário de lotes da comunidade Igarapé Araras. O trabalho deles visava levantar dados para a reforma agrária no Instituto de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e no Programa Terra Legal. Eles desapareceram e seus corpos nunca foram encontrados pela polícia, ou pelo Corpo de Bombeiros, apesar das operações de busca.

Conforme as investigações, o caso envolve um conflito agrário. A comunidade Igarapé Araras é alvo de disputa litigiosa com os proprietários da fazenda “Shalom”, do grupo empresarial Rosiquepolo Holding e Master Holding S/A, do município de Ariquemes, em Rondônia. Três meses antes do desaparecimento dos trabalhadores rurais, a Justiça Federal do Amazonas havia cancelado três registros de imóveis, a pedido da União, do Incra e do Ministério Público Federal do Amazonas, em decisão liminar. Os registros estavam cadastrados no Cartório de Registro de Imóveis da Comarca de Canutama em nome do grupo empresarial.

A juíza da Comarca de Canutama, Joseilda Pereira Bilio, determinou, no dia 28 de dezembro de 2017, as prisões preventivas de dois funcionários da fazenda “Shalom”: Antônio Mijoler Garcia Filho e Rinaldo da Silva Mota, mas eles permaneceram por vários meses foragidos. Além do crime de triplo homicídio qualificado, eles são acusados de ameaçar e atear fogo em casas de testemunhas na comunidade Igarapé Araras.

Os acusados Antônio Mijoler Garcia Filho e Rinaldo da Silva Mota (Fotos PC do Amazonas)

No dia 3 de agosto de 2018, a Polícia Civil de Rondônia prendeu Antônio Mijoler Garcia Filho. Ele foi encontrado escondido no forro de uma casa. Atualmente permanece detido na Casa de Detenção Doutor José Mário Alves, também conhecida como Urso Branco ou Pandinha. Segundo a Delegacia de Porto Velho (RO), Garcia Filho não confessou o crime.

No último dia 19 de novembro, Rinaldo da Silva Mota entregou-se à Polícia Civil de Rondônia. Agora ele está preso em uma cadeia do município de Ariquemes, mas ainda não foi interrogado. Segundo policiais civis de Rondônia, Rinaldo afirmou, quando se apresentou na delegacia, que “estava cansado de fugir, passando necessidade e com medo de morrer”.

Responsável pela investigação do caso, o delegado Mateus Moreira, do município de Humaitá, no sul do Amazonas, disse à Amazônia Real que o inquérito policial foi concluído e entregue à Comarca de Canutama.

“O Antônio Mijoler e o Rinaldo foram indiciados pelo crime. O inquérito está em Canutama e virou processo judicial”, disse o delegado, que não deu detalhes sobre o teor do inquérito.

Moreira disse, também, que Rinaldo será interrogado “em data oportuna” e que suas declarações serão enviadas para a Comarca de Canutama. Ele também afirmou que aguarda “quais diligências serão determinadas pela Justiça ou pelo Ministério Público da Comarca”. Sobre a retomada das buscas dos corpos dos desaparecidos, o delegado afirmou que não há previsão para ocorrer.

Procurada pela reportagem, a Vara Única da Comarca de Canutama disse, por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJAM), que o processo tramita em segredo de Justiça e que o Ministério Público ainda não ofereceu denúncia. Segundo a Comarca, o “órgão ministerial pediu a realização de diligências por parte da autoridade policial”. A reportagem não localizou os advogados de defesa dos dois acusados para falar sobre as acusações.

Os representantes do grupo Rosiquepolo Holding e Master Holding S/A, entre eles o empresário Orestes Fernandes Polo, nunca comentaram sobre as acusações dos dois funcionários da fazenda “Shalom”, apesar de terem sido procurados pela agência Amazônia Real em vários momentos desta cobertura.

Citados em relatório internacional

Em Canutama policiais fizeram buscas aos desaparecidos (Foto: PC do Amazonas)

Em julho passado, os nomes de Flávio de Souza Lima, Jairo Feitoza Pereira e Marinalva Silva de Souza foram citados, entre 57 pessoas mortas no Brasil, no relatório sobre assassinatos de defensores da terra e do meio ambiente da organização internacional Global Witness.

“O assassinato é o exemplo mais notório de uma série de táticas usadas para silenciar os defensores, incluindo ameaças de morte, prisões, intimidação, ataques cibernéticos, agressões sexuais e ações judiciais”, diz a Global Witness, em seu site, ao fazer referência às mortes dos três trabalhadores.

Waldiney Teixeira de Souza, presidente da Associação de Produtores Rurais da Comunidade da Região do Igarapé Araras (Aspocria), disse à Amazônia Real que lamenta a conclusão do inquérito “sem respostas concretas sobre o caso”.

“Os presos não confessaram ainda, [por isso] não poderiam ter encerrado [o inquérito]. O Rinaldo nem deu depoimento. É triste e revoltante saber que não estão a favor da gente. Espero que este caso não fique esquecido, e que a Polícia continue as investigações”, disse Souza, mais conhecido como Goiano.

A esposa de Jairo, a dona de casa Marioneide Ferreira Barros, 52, chora ao falar do marido. “Espero da Justiça que a gente encontre pelo menos os ossos deles. Até hoje não me recuperei. Tem sido muito difícil para mim. A dor e a saudade são muito grandes.”

Conforme a dona de casa, bastaria apenas ter uma resposta sobre o que aconteceu. Isso aliviaria o sofrimento dela e dos familiares dos demais desaparecidos.

“Minha filha pergunta tanto por ele. Ela diz: ‘traz ele pra mim. Não sei mais o que fazer. A ferida não sara nunca. A gente não sabe de nada. O Jairo era um homem bom. É muito doloroso o que estamos passando”, afirma Marioneide.

Francisco José do Amaral, 52, marido de Marinalva, conta que até hoje sua família não sabe como lidar com o desaparecimento. Ele tem um filho de pouco mais de um ano com a esposa. Marinalva também tinha mais dois filhos pequenos de relacionamentos anteriores.

“Hoje (13), para mim, desde às 13 horas e alguns minutos, eu perdi a mãe do meu filho. Ela não largaria as crias dela (era assim que ela falava) por nada desse mundo. Vivemos um dia de cada vez, mas estamos desapontados e desesperançados. As autoridades nem procuram dar uma resposta para os familiares e se não são vocês (repórteres), o caso já teria sido esquecido há muito tempo”, afirmou.

Ele também reclama do pouco interesse do agente de segurança pública em dar respostas para o caso, e diz: “No Brasil, pobre não tem vez. Os governos municipal, estadual e, principalmente, o federal não estão nem aí pra esse tipo de situação. Porque se quisessem nós já saberíamos onde eles estão”, afirmou ele.

Amaral descreve Marinalva como “uma mulher normal como qualquer mãe de família, mas que quando precisava pegar no pesado, ela ia”.

“Quando começava a falar sobre o direito de ter um pedaço de terra para o nosso pessoal, ela se transformava. Ela tinha medo do que poderia acontecer, mas também confiava na Justiça. Pena que ela estava enganada”, afirma o marido de Marinalva.

Ângelo Lima de Souza conta que gosta de lembrar de uma frase recorrente que seu irmão, Flávio, repetia quando se referia à sua luta por direito à terra.

“Ele sempre dizia que era para haver ‘homens sobre a terra e não terra sobre os homens’. Então, a gente vê que a maioria desses conflitos termina em terras sobre os homens. Aqueles que lutam, jogam terra sobre eles. Acordei hoje (13 de dezembro) pensando sobre este fato”, conta o irmão que sofre com o desaparecimento de Flávio.

Conforme Ângelo, Flávio era uma pessoa com espírito de liderança e generoso, mas que ele “viveu como nobre e morreu como vagabundo”.

“Ele acreditava nas causas justas. Entretanto, morreu nesse conflito de reforma agrária. Alguns têm esses grupos como marginais, como sem-terra. Mas na verdade, o Flavio era uma pessoa de alma nobre. Acreditamos num Deus justo que vai julgar essa causa, e vai trazer justiça.

Quem são os desaparecidos?

Jairo Feitoza Pereira, Marinalva Silva de Souza e Flávio Lima de Souza (Foto: Polícia Civil do Amazonas)

Flávio Lima de Souza e Marinalva Silva de Souza eram diretores da Associação dos Produtores Rurais da Comunidade da Região do Igarapé Araras (Asprocria). Jairo Feitoza Pereira era um morador da comunidade que ajudava ambos no levantamento de dados sobre os lotes.

Quando os três desapareceram, no dia 14 de dezembro de 2017, os moradores da comunidade Igarapé Araras fizeram buscas por conta própria, mas sem sucesso. Até que comunicaram o desaparecimento à polícia dois dias depois, no dia 16 de dezembro.

A área da comunidade Igarapé Araras, que segundo o Incra pertence à União, foi ocupada pelos trabalhadores rurais em 2016, com fins de reforma agrária. Segundo os diretores da Asprocria, a comunidade Igarapés Araras tem 9 mil hectares e 316 lotes de terras. Na época, havia cerca de 300 pessoas cadastradas. O número aumentou posteriormente para 318. Em 2018, a comunidade ficou praticamente esvaziada. Os moradores ficaram com medo da violência e das ameaças praticadas por funcionários da Fazenda Shalom. Agora, os familiares das pessoas desaparecidas cobram da justiça uma resposta sobre onde estão os corpos.

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Elaíze Farias

Cofundadora da Agência Amazônia Real e editora de conteúdo. É referência em reportagens sobre povos originários, populações tradicionais, denúncias de violações de direitos territoriais e direitos humanos, crise climática, violências socioambientais e impactos de grandes empreendimentos na natureza e nas populações amazônicas. Entre as premiações recebidas, está o Prêmio Imprensa Embratel de 2013. Em 2021, foi homenageada no 16º Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo, da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), junto com Kátia Brasil, também fundadora da Amazônia Real. Em 2022, recebeu o Prêmio Especial Vladimir Herzog. É jornalista formada pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).