Alberto César Araújo

Curta “O Barco e o Rio” ganha 5 Kikitos em Gramado. Que venha o longa!

Manaus (AM) – A Amazônia se destacou na premiação do 48º Festival de Gramado, que aconteceu na noite de sábado (26) e pela primeira vez foi inteiramente online, por conta da pandemia do novo coronavírus. O curta amazonense “O Barco […]

Por Alberto César Araújo Publicado em: 27/09/2020 às 23:45

Manaus (AM) – A Amazônia se destacou na premiação do 48º Festival de Gramado, que aconteceu na noite de sábado (26) e pela primeira vez foi inteiramente online, por conta da pandemia do novo coronavírus. O curta amazonense “O Barco e Rio”, do diretor Bernardo Ale Abinader, conquistou cinco Kikitos, inclusive de Melhor Direção e Melhor Filme do Júri Popular. A produção é um dos melhores frutos da chamada geração do audiovisual da UEA (Universidade do Estado do Amazonas), que teve uma vida curta, formando apenas duas turmas. Trata-se de uma obra feita predominantemente por uma equipe de Manaus, com exceção da finalização do som e da correção de cores.

“O Barco e o Rio” conta a história das irmãs Vera e Josi, que não se entendem sobre o que fazer com a embarcação que herdaram da família. A primeira é religiosa e vê a herança como o sustento que pode lhe garantir um futuro. Já a segunda quer vendê-la, pois está mais interessada em curtir a vida com as amigas, inclusive se entregando a romances fortuitos com homens do porto.

O curta-metragem de 17 minutos venceu ainda nas categorias Melhor Filme de Curta, Melhor Direção de Fotografia (Valentina Ricardo) e Melhor Direção de Arte (Francisco Ricardo). Um feito e tanto levando em consideração o atual momento da produção local e o desmonte do cinema nacional promovido pelo governo de Jair Bolsonaro.

Desde 1997, o Festival de Gramado não premiava uma produção de um amazonense. Naquele ano, Djalma Limonge Batista conquistava um Kikito por “Bocage, O Triunfo do Amor”, com o prêmio especial do júri. Porém, naquela produção, os diretores de fotografia, de som e a maioria dos atores eram de fora de Manaus.

Já “O Barco e o Rio” é um divisor de águas para a geração da UEA. Bernardo e Valentina saíram de lá (formados na segunda e última turma), assim como quase todos da equipe técnica. Integravam a equipe César Nogueira (montador), Keila Serruya (diretora de produção) e Hamyle Nobre (produtora executiva do filme). Eles são egressos do curso de pós-graduação de Gestão e Produção Cultural da UEA. César e Keila foram professores no curso de Audiovisual.

Para Bernardo Abinader, os cinco Kikitos se revelaram uma grande surpresa. “Foi tudo muito rápido e agora que estou entendendo que as pessoas estão comentando, se identificando e o pessoal está curtindo o filme e gostando da nossa proposta”, afirmou.

Os Kikitos | Foto: Edison Vara / Agência Pressphoto
A emoção de Bernardo Ale Abinader | Foto: Edison Vara / Agência Pressphoto
Melhor direção de arte: Francisco Ricardo | Foto: Edison Vara / Agência Pressphoto
Melhor fotografia: Valentina Ricardo - O Barco e O Rio | Foto: Cleiton Thiele / Agência Pressphoto
Bernardo Ale Abinader e Isabela Catão no set | Foto: Fita Crepe Filmes/Divulgação
Isabela Catão durante as filmagens | Foto: Fita Crepe Filmes/ Divulgação
Isabela Catão durante as filmagens | Foto: Fita Crepe Filmes/Divulgação
Still com detalhe das filmagens | Foto: Fita Crepe Filmes/Divulgação
Isabela Catão durante as filmagens | Foto: Fita Crepe Filmes/Divulgação
Carolinne Nunes durante as filmagens | Foto: Fita Crepe Filmes/Divulgação

Feliz e ainda incrédulo, ele afirma ser este apenas o começo da carreira do filme em festivais. Mais que isso, ele espera transformar o curta em um longa-metragem, e já está participando de sessões de pitchings com produtores culturais para viabilizar essa ideia. O curta já foi contemplado no Mercado do Audiovisual do Norte, Matapi, ocorrido em 2019 em Manaus, e participou do Talent Coprodution Meeting, do Festival de Guadalajara 2020. Agora o diretor parte para o Porto Iracema das Artes, em Fortaleza, para um laboratório de escrita de roteiro, com duração de um ano.

Esta é a quarta direção de curtas (contando os 3 universitários que fez antes) de Bernardo. A produção impressiona pela delicadeza das cenas e pelo tom intimista e natural que conseguiu imprimir nas excelentes personagens Vera (Isabela Catão) e Josi (Carolinne Nunes). Segundo Bernardo, suas observações de vida familiar não só estão impressas como ajudaram-no a encontrar o tom das personagens. Ele cresceu em um ambiente feminino, cercado de tias e primas. Além do seu interesse pela temática, de falar das questões das mulheres e de sua vivência, acredita que o fato de ser homossexual o aproximou deste universo e também imprimiu uma marca no curta. A preparação de elenco foi feita por Ana Oliveira, atriz e sócia de Bernardo, e da fotógrafa Valentina Ricardo, que desde 2017 fazem parte da Fita Crepe Filmes e Artes Cênicas.

Primeiro filme após sair do curso de audiovisual da UEA, “O Barco e o Rio” teve aporte financeiro do edital da Manauscult. A ajuda permitiu Bernardo fazer, pela primeira vez, um filme do jeito que ele queria. Para César Nogueira, montador do curta e colaborador da agência Amazônia Real, esse tipo de incentivo do Estado gera um retorno não só de renda, mas de projeção da imagem de Manaus e do Estado do Amazonas. O curta traz, como uma de suas mensagens, um estudo de identidade de autoafirmação e de autoestima do amazonense.

“É uma pena esta descontinuidade do curso, porque dá resultado de soft power. Neste filme, está o nosso jeito de falar e a nossa psique transmitida em um dos principais festivais de cinema do Brasil”, disse César, que acredita ter cumprido a missão. “A edição alcançou o seu ethos e com isso contribuiu para potencializar essa história, essa direção de arte, essa fotografia, essa direção e as atuações.”

A estética do precário brilha

Bernardo e Valentina Ricardo no set (Foto: Fita Crepe Filmes/Divulgação)

Como é fazer um filme para o cinema sem a iluminação e aquela parafernália de cinema ou quase sem? A fotógrafa Valentina Ricardo provou que isso é possível, tendo de trabalhar sem luz ou nos contra-luzes e com as latitudes que o sol de Manaus ao fundo exigem, com a câmera na mão na grande maioria dos planos, no balanço do barco, lugar apertado e de mobilidade limitada. A solução criativa e estética utilizada por Valentina acabou por reforçar a fotografia do filme.

Em sua terceira direção de fotografia em curta-metragem, Valentina já havia demonstrado o seu potencial no ótimo “A Goteira” de 2018, seu filme de conclusão de curso com Bernardo no extinto curso da UEA, que também revelou o talento de Isabela Catão. Nesse filme , a fotógrafa constrói sua narrativa imagética nos mais diversos ambientes e situações, inclusive as extremas. Noite, meio-dia, externa, interna, no meio do trânsito, enfim uma variação de situações nas quais a equipe sempre encontrava uma boa solução.

No curta “Barco e o Rio”, o uso da luz natural, luz rebatida, uma tremidinha de câmera na mão, imediatamente absorvida pelo balanço do barco, “um erro” incorporado na estética, uma construção imagética a partir da precariedade do ambiente e de suas limitações técnicas, tudo isso revela a estética que Valentina utilizou para o curta.

Para quem assistir ao filme, vale notar a sintonia entre a direção de arte de Francisco Ricardo com a fotografia de Valentina Ricardo. O trabalho da dupla faz com que o barco atue como um protagonista do filme, ao lado das duas atrizes e da paisagem que de soslaio resplandecem no segundo ou terceiro plano nas janelas e portas do barco, como lascas de imagens ou imagens passantes. O barco, de certa forma, também é representado pelo personagem Vera, pois a cenografia é composta de cartazes evangélicos e outros elementos religiosos. O próprio envelhecimento do barco projeta essa ideia. E o tempo, elemento primordial da fotografia, leva à reflexão sobre o que será daqui para frente no cinema do Amazonas?

A geração do audiovisual da UEA

Bernardo com Valentina Ricardo e os formandos do curso da UEA em 2018
(Foto: Arquivo pessoal)

Para o cineasta e professor Gustavo Soranz, a expressão audiovisual, não só do cinema, mas também de seus derivados, não depende apenas dos talentos individuais, mas de técnica e conhecimentos específicos. Mas, para isso, é preciso recursos e investimentos, assim como de profissionais técnicos capacitados. Só um curso de cinema é capaz de atender a essa demanda. “Um curso completo, passando por várias disciplinas, faz com que vários quadros profissionais sejam formados para desenvolver essa área. Para ter um cinema regional, ou local fortalecidos, precisa ter essa formação não somente na parte técnica, mas estética, precisa-se criar repertório conceitual e histórico”, afirma Soranz.

O professor lamenta que a experiência do curso na UEA tenha sido breve e precário em diversos aspectos, pois foi um curso sem apoio institucional. “Mas permitiu o encontro das pessoas, as trocas e uma certa sinergia, houve momentos importantes, como uma aula inaugural do Ruy Guerra, depois uma aula-magna da segunda turma com o Oscar Ramos”, lembra Soranz.

O curso também serviu para o encontro entre os alunos e que geraram algumas produções e a formação de produtoras a partir desses encontros. “Sem um curso superior de cinema não se cria uma densidade intelectual, nem gera encontros de gerações tão importantes que acabam refletindo na qualidade das produções e acaba-se vivendo de episódios esporádicos”, alerta Soranz.

Ainda assim, Soranz aposta que a próxima onda do cinema nacional deverá vir do Norte, já que nos últimos 20 anos a renovação veio praticamente do Nordeste, puxada pelo cinema pernambucano. “O Pará tem seu curso universitário de cinema e isso é visível, tanto no número de produções e como os filmes de lá têm alcançado com mais frequência certas posições que aqui a gente ainda não consegue”, ressalta o professor.

A existência de um curso regular de audiovisual, em nível universitário, tem a força de se tornar um elemento catalisador de interesses de toda uma cena cultural e artística que vai além da formação técnica pura e simples. Soranz lembra que, nos últimos 20 anos, houve uma grande produção do cinema nacional, mas que esta começou a ser destruída a partir do golpe (de 2016).

Vale destacar que, na noite de encerramento do Festival de Gramado, o cineasta Ruy Guerra venceu na categoria Melhor Diretor, por “Aos Pedaços”, produzido em parceria com a corroteirista Luciana Mazzotti. No mais contundente discurso do festival e ao lado da filha Janaína Diniz, também diretora e produtora, Ruy Guerra, aos 92 anos, fez uma dura crítica ao governo Bolsonaro. “Não posso deixar de falar sobre essa escuridão que estamos vivendo, em que estão sendo dizimadas as populações indígenas e quilombolas, num governo racista, num governo que como a Janaína já falou, é um desgoverno e se não bastasse a pandemia para termos que sofrer essa avalanche de destruição que estamos sofrendo nas artes, na ciência e do próprio povo brasileiro.”

Ruy Guerra agradeceu à direção do Festival por oferecer um “respiro no meio da podridão sufocante”. E concluiu: “Não seremos destruídos e não morreremos e nada nos fará parar, porque os cineastas e os artistas são um tipo de animal que resiste a tudo, são a fonte de vida, sem a qual a vida não existe, sairemos dessa escuridão e voltaremos a respirar um ar puro”.

Em 2014, Ruy Guerra concedeu uma entrevista ao jornalista Jony Clay, logo após uma aula da oficina oferecida no extinto curso de Tecnologia de Produção Audiovisual da UEA. Naquela ocasião, o cineasta já alertava que o desenvolvimento do setor audiovisual numa cidade como Manaus passa necessidade pelo investimento na formação e pelo estímulo à produção cinematográfica local. “Além de um curso de cinema ou audiovisual, é preciso que haja também fomento à atividade por parte do governo”, defendeu. O curso da UEA foi criado em 2013 e se encerrou em 2018.

O vencedor Bernardo considera que o fim do curso da UEA foi uma tragédia. “Era um curso público, numa instituição pública. Hoje, o mundo é do audiovisual e está cada vez mais audiovisual. As pessoas estão muito interessadas na nossa região em termos audiovisuais por ter uma potência estética muito grande e ser um lugar tão bonito e interessante que todo mundo quer saber como é que é”, afirma Bernardo:

Sem uma produção com vitalidade, resta apenas a importação de produtos vindos de fora. “E o que acaba gerando um espaço que é colonizado. Estamos tristes e até revoltados. Espero que, com a nossa premiação, possa voltar em colocar isso de novo na pauta e gere uma preocupação para se retornar com o curso de audiovisual”, conclui o premiado diretor Bernardo Ale Abinader.

A imagem que abre este artigo é um frame do curta “O Barco e o Rio” e mostra a atriz Isabela Catão.

Alberto César Araújo – Possui graduação em Comunicação Social pelo Centro Universitário do Norte, Uninorte-Laureate (2014), é mestre pelo Programa de Pós-Graduação de Letras e Artes, Universidade do Estado do Amazonas, UEA (2018). Repórter fotográfico profissional desde 1991, trabalhou para os principais veículos de imprensa nacional e internacional como fotógrafo freelancer. Atualmente é editor de Fotografia da agência de jornalismo independente Amazônia Real, é também um dos ”nominators” do Programa 6X6 Global Talent da Fundação World Press Photo. Participou de mais de 30 exposições coletivas e individuais com destaque para: Rural-Urban (Somerset House, Londres, 2013) ; Ganadores del POY Latam (Centro Cultural Nigromonte, San Miguel de Allende, México, 2015) e Brics (OI Futuro, Rio de Janeiro, 2015). Curador das exposições “Amazônia, Os Extremos”, (2017) patrocinada por um prêmio concedido pela Missão Diplomática dos Estados Unidos no Brasil com apoio do Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos (ICBEU-Manaus) e do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA); “Olhando por dentro da Floresta (2018) no Icbeu Manaus; Atlas Momosyne (2019) Palacete Provincial em Manaus. Vencedor dos prêmios Esso de Fotografia 2001, Dom Helder Câmara, 2000, Fapeam 2011, HSBC de Sustentabilidade, 2011 e Carolina Hidalgo do Poy Latam 2013 na categoria Paisagem Humana.

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Sobre a matéria

Alberto César Araújo

Editor de Fotografia da Amazônia Real. Possui graduação em Comunicação Social pelo Centro Universitário do Norte, Uninorte-Laureate (2014). Tem experiência na área de Comunicação, com ênfase em jornalismo, fotojornalismo e artes visuais. Mestre pelo Programa de Pós-Graduação de Letras e Artes, Universidade do Estado do Amazonas, UEA. Repórter fotográfico profissional desde 1991, trabalhou para os principais veículos de imprensa nacional e internacional como fotógrafo freelance. Como editor de fotografia trabalhou para os jornais Amazonas Em Tempo, Diário do Amazonas. Participou de mais de 30 exposições coletivas e individuais com destaque para: Rural-Urban (Somerset House, Londres,2013 ) Ganadores del POY Latam (Centro Cultural Nigromonte, San Miguel de Allende, México, 2015) e Brics (OI Futuro, Rio de Janeiro, 2015). Curador das exposições “Amazônia, Os Extremos”; (2017) patrocinada por um prêmio concedido pela Missão Diplomática dos Estados Unidos no Brasil com apoio do Instituto Cultural Brasil-Estados Unidos (ICBEU-Manaus) e do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA); “Olhando por dentro da Floresta” (2018) no Icbeu Manaus; Atlas Momosyne (2019) Palacete Provincial em Manaus; I.Margens, na Galeria do Largo, em Manaus (2022) e “Amazónia, Amazónias Encantos e desencantos” com Lau Zanchi, no Âmbito Cultural El Corte Inglês, em Lisboa (2022). Vencedor dos prêmios Esso de Fotografia 2001, Dom Helder Câmara, 2000, Fapeam 2011, HSBC de Sustentabilidade, 2011 e POY Latam em 2013. Em 2020 lançou o livro de fotografia #Reffrisch pela editora Artisan Raw Books.