A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto

A salinização no litoral do Amapá

No dia 14, a prefeitura de Macapá decretou estado de emergência na região do arquipélago do Bailique, no Amapá, na foz do rio Amazonas, onde vivem oito mil pessoas. Com a iniciativa, o poder público passou a fornecer água potável aos […]

salinização das águas na foz do rio Amazonas em Bailiqui no Amapá. Bombeiros levam água potável para a comunidade (Foto: Governo do Amapá)F

Por Lúcio Flávio Pinto Publicado em: 26/10/2021 às 18:28

No dia 14, a prefeitura de Macapá decretou estado de emergência na região do arquipélago do Bailique, no Amapá, na foz do rio Amazonas, onde vivem oito mil pessoas. Com a iniciativa, o poder público passou a fornecer água potável aos moradores, já sem acesso nas drenagens antes doces.

O problema é anual. Surge quando diminuem as chuvas na Amazônia e se reduz o volume de água que o Amazonas, o maior e mais volumoso do mundo, despeja no Oceano Atlântico. Na fase de enchimento, a vazão é tão grande (ultrapassa 200 milhões de litros por segundo) que representa quase 20% da água doce que chega aos oceanos (sendo ela 7% das águas do planeta). Chega a penetrar 100 quilômetros no mar.

Na vazante, é o Atlântico que invade o continente. A salinização da água e da terra é o efeito, com aspectos positivos e negativos, por um período de três a quatro meses. Mas a população tem observado a intensificação desse fenômeno. A principal marca dessa alteração é o desaparecimento das famosas pororocas, geradas pelo choque das águas do Amazonas ao se lançar sobre o oceano.

O sumiço das grandes ondas, que se mantinham por quilômetros, atraindo um número cada vez maior de surfistas, deve-se à diminuição do volume das águas do caudaloso rio Araguari, o mais extenso do Amapá, com 500 quilômetros de extensão. Sua bacia se espalha por dois terços do território do Estado. Mas antes de chegar ao oceano, ele foi desviado do seu curso natural pela formação de um canal, também natural, o Urucuritiba, que formou a nova foz, no Amazonas. Daí o avanço constante do mar por novas áreas.

Essa é uma das hipóteses, dentre as muitas que mereceram a atenção da sucursal da BBC de Londres no Brasil. Alguns pesquisadores ouvidos atribuíram a mudança à elevação global do nível do mar, um resultado das mudanças climáticas. O mar avança porque suas águas estão ficando mais altas.

Outro fator que pode estar incidindo nessa transformação seria criação de búfalos nas várzeas, que somam mais de 200 mil. O pisoteio dos animais agrava a erosão, conhecida como “terras caídas”. Mas o problema é antigo. Muito mais nova é a presença de três hidrelétricas em funcionamento no médio e baixo rio Araguari. O canal que surgiu antes da sua foz, a poucos quilômetros de distância, engrossou muito a partir de 2014, absorveu praticamente as águas do Araguari.

A primeira hidrelétrica no Araguari, que foi também a primeira da Amazônia, começou a operar em 1976. A segunda passou a funcionar exatamente em 2014 e a última, em 2017. Elas têm reservatórios pequenos. Somados, eles atingem 90 quilômetros quadrados, praticamente só gerando a plena capacidade durante o período de maior vazão do rio, no inverno amazônico. Mas sua operação pode alterar o regime da água e alterar a dinâmica do transporte de sedimentos, o que pode ter relação com a abertura do canal de Urucurituba.

Mas tudo são hipóteses, ainda sem confirmação por falta de pesquisas científicas suficientes. O efeito da construção de grandes barragens para a geração de energia sobre estuários começou a ser estudado quando a hidrelétrica de Assuã foi construída, no Egito, nos anos 1950. O barramento do segundo maior rio do mundo teve efeitos negativos sobre o delta do Nilo, provocando a intrusão de sal em áreas até então sem a sua presença dominante, prejudicando a pesca e o abastecimento de água potável.

Três décadas depois, problema semelhante aconteceu quando o governo federal construiu a quarta maior hidrelétrica do mundo, com um reservatório de 3 mil quilômetros quadrados, no rio Tocantins, no Pará. Só sete meses antes do fechamento das comportas da barragem para o enchimento do lago artificial, que armazenou mais de 50 trilhões de litros de água para gerar 8,2 mil megawatts (capacidade suficiente para atender 15% da demanda nacional por energia), é que foram feitos os estudos sobre os efeitos abaixo da usina.

Num país que já construíra tantas represas, como o Brasil, foi o primeiro levantamento sobre as consequências a jusante da interrupção do fluxo de um rio que é o 25º do planeta, com 2,5 mil quilômetros de extensão, drenando 8% da área do Brasil. Sua foz é em outro importante e complexo estuário no litoral do país, a 200 quilômetros da capital do Estado, com 1,5 milhão de habitantes. Felizmente, os efeitos foram discretos, em virtude do imenso volume de água de vários rios que descarregam suas volumosas drenagens no local. Mas, e no Amapá?

A imagem que ilustra este artigo mostra morador do Bailique, na foz do rio Amazonas recebendo água potável levada pelo Corpo de Bombeiros (Foto: Governo do Estado do Amapá)

Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

* lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.

* valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

* amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

* cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.

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Sobre a matéria

Citações

"A salinização da água e da terra é o efeito, com aspectos positivos e negativos, por um período de três a quatro meses. "

Lúcio Flávio Pinto

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.