A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto

A grilagem de terras de volta

O Iterpa (Instituto de Terras do Pará) tem realizado arrecadações sumárias e retificações de áreas de terras que podem vir a dar origem a novos conflitos fundiários, como o da Agropalma, o mais importante que está em curso no Estado. […]

Por Lúcio Flávio Pinto Publicado em: 10/08/2021 às 15:26

O Iterpa (Instituto de Terras do Pará) tem realizado arrecadações sumárias e retificações de áreas de terras que podem vir a dar origem a novos conflitos fundiários, como o da Agropalma, o mais importante que está em curso no Estado. A empresa declara ser “a maior produtora de óleo de palma sustentável da América Latina”.

Instalada no Pará em 1982, a empresa diz ser proprietária de 107 mil hectares no “triângulo do dendê”, que abrange os municípios de Moju, Tailândia e Acará, sob a influência da rodovia Belém-Brasília. Trinta mil hectares são de plantios de dendê e 64 mil hectares de reserva florestal.

Há muitos anos, entretanto, a dominialidade dessa área é contestada – administrativamente e em juízo. É um conflito confuso. Até recentemente, a grande imprensa, beneficiada por grandes anúncios da empresa, estava toda ao lado dela. O Diário do Pará, Jornal da família do governador Helder Barbalho e do senador Jader Barbalho, mantém essa posição. O Liberal, da família Maiorana, vinculada à rede Globo de televisão, passou a combatê-la.

A disputa foi intensificada por recente decisão judicial, que declarou nulos os 12 títulos definitivos com os quais a Agropalma se considerou dona das terras e passou a cultivá-las. Entretanto, além de diversas irregularidades administrativas e cartoriais, na demarcação dos títulos expedidos pelo Iterpa, sem a verificação de campo, houve uma ampliação da área de plantio, de 2,7 mil para 35 mil hectares.

A origem dessa divergência é uma bem conhecida grilagem praticada nos anos 1970 por Jairo Mendes Salles, com a conivência do cartório de registro de imóvel do Acará. Toda a sequência conturbada na cadeia dominial pela transmissão dos registros se fundamenta num questionamento básico: foi legal o desmembramento dessas terras do patrimônio público para o domínio privado? O dolo percorreu toda cadeia de sucessores do grileiro original? Ou é possível promover a regularização da área, nos limites legais, se comprovada a boa-fé do último adquirente.

Legalmente, o instituto estadual se baseia em lei federal de 1987, que atribui expressamente aos Estados-membros da federação “a faculdade de promover a arrecadação de terras públicas devolutas de seu domínio”. Para isso, precisam observar, “no que couberem”, as disposições do artigo 28 da lei n. 6.383, de 1976.

Essa lei é específica para a discriminação de terras devolutas da União. Foi inspirada pelo Conselho de Segurança Nacional durante o governo do general Ernesto Geisel. Era a consolidação de duas iniciativas do CSN no mesmo ano, em plena ditadura, para a regularização das grilagens de terras por particulares em áreas extensas (através da exposição de motivos 005) e da ocupação de posseiros, em áreas menores (exposição de motivos 006), aprovadas pelo presidente da república.

Para agir com rapidez e efeito prático (e drástico), a lei permitia a arrecadação sumária de terras a serem destinadas. Dispensava o levantamento minucioso no local, substituído pela pesquisa em cartório e outras informações (hoje, por monitoramento de imagem de satélite).
Cabe realizar esse tipo de arrecadação hoje, em plena democracia, quando já há uma ocupação mais ampla das áreas do Estado, as medidas dirigidas aos problemas fundiárias precisam ser mais seguras e não cabe mais destinar terras à venda num mercado de requerimentos de compra para os interessados, que a requerem conforme os seus interesses?

Transformar a terra em commodity, com isso refreando ou anulando a necessidade de planejar a ocupação de novas áreas para combater a grilagem e o uso irracional dos recursos naturais? Não significa exatamente o contrário: o incentivo indireto às práticas dilapidadoras e dissipadoras da Amazônia?

Enquanto o Estado volta a avançar no saque dos bens do seu estoque fundiário e a sociedade se cala diante de questão de tal relevância. E a Amazônia sofre.

A imagem que ilustra este artigo é uma reprodução do vídeo institucional da Agropalma em seu canal de YouTube e mostra área de mata da empresa.

Além de colaborar com a agência Amazônia Real, Lúcio Flávio Pinto mantém quatro blogs, que podem ser consultados gratuitamente nos seguintes endereços:

* lucioflaviopinto.wordpress.com – acompanhamento sintonizado no dia a dia.

* valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

* amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

* cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.

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Sobre a matéria

Lúcio Flávio Pinto

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.