À Mãe que nos pariu

FÁTIMA GUEDES Perdoem-nos os conservadores pela ousadia linguística em relação ao trato materno-filial, porém, na tentativa de parir estes rascunhos, fluiu a imagem da mulher mãe despida de adereços estilísticos; afinal, no segundo domingo de maio, a personagem é lembrada […]

Por Amazônia Real Publicado em: 04/05/2015 às 15:12

FÁTIMA GUEDES

Perdoem-nos os conservadores pela ousadia linguística em relação ao trato materno-filial, porém, na tentativa de parir estes rascunhos, fluiu a imagem da mulher mãe despida de adereços estilísticos; afinal, no segundo domingo de maio, a personagem é lembrada nos mais diversos estilos. Assinale-se que, este ano, desde o final de março, seu nome já configurava dentre os marketings de maior venda no mercado.

A conjuntura histórica de gênero já não nos permite perder tempo com disfarces hipócritas e falso romantismo no trato de nossa fêmea natureza. A cada ano, dá gastura o surrado lengalenga das masoquistas mensagens radiofônicas: “ser mãe é padecer no paraíso…”. Tal poética seducionista acredita legitimar as homenagens à “rainha do lar” configuradas em panelas, pratos, fogões, ferros de engomar, assadeiras, liquidificadores, batedeiras e outras tralhas similares ao universo da discriminação.

É importante trazer para o debate que Mãe não é alegoria doméstica nem coisa do outro mundo: é gente que ama, odeia, chora, ri, peca, goza; é matéria humana constituída de erros e acertos, vícios e virtudes, bondades e maldades, digladiando constantemente com seus anjos e demônios, na tentativa, muitas das vezes frustrante, de representar personagens irreais: “anjo infalível”, “modelo de virtude”, “símbolo do sofrimento” e outros selos de um imaginário caduco e perverso.

Parir é uma outra particularidade de toda fêmea, no entanto, a expressão vocabular geralmente é evitada; “soa mal” ao convencionalismo e aos preconceitos. É mais “elegante” expressões do tipo: “dar à luz”, “ganhar nenê”, “receber visita da cegonha” e etc. – esses recursos românticos de interesse da moral figurativa para tapear uma realidade biológica que envolve a genitália da mãe culturalmente modelada; sem contar que Maria, a mãe de Cristo, nos é apresentada sem as funções sexuais normais.

Arquivo pessoal de Fátima Guedes

Em se tratando da mãe, da mulher comum, as particularidades linguísticas que envolvem a geografia genital são de domínio público. Sua sintaxe existencial conduz a ação verbal que transita livremente para o extrauterino, para as bandas de cá, para o vir-a-ser. A mãe comum, apesar das contradições e limitações a que enfrenta, contextualiza o verbo em questão sem precisar de recursos estéticos. Serve-se de uma genitália trabalhada para a liberdade e coloca no mundo a extensão de si mesma, a representação biológica de sua marca humana, o produto de um relacionamento sexual – prazeroso ou não. (É outra questão).

É interessante refletir ainda que as imagens poéticas desenvolvidas em torno de um ato biologicamente natural como é o parto, subentendem ideais relacionadas a sexo e sexo ainda é assunto estigmatizado, proibido para as mulheres e permitido para os homens; logo, necessita de disfarces hipócrita-estilísticos.

O combate a esses estigmas, que passa necessariamente pela audácia de assumir a condição humana em toda a sua dimensão, sem traumas e sem medo de riscos, confere à mãe de carne e osso o poder de anular as reproduções socioculturais, quando a materno-cidadania torna-se exigência primeira nas relações familiares.

Nossa mãe, Dona Tila (in memoriam), mulher comum, foi uma excelente parideira. Não só pelos doze filhos que pariu, mas por ter sabido conjugar com sua prole o verbo da cidadania, sem subterfúgios, provando-nos que saber parir é um ato soberanamente feminista.

Gastura – No popular, produz desgaste, chateação.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

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