A política do reconhecimento étnico e os índios no Brasil contemporâneo

Por: Dalvo Cruz | 20/01/2019 às 19:37

“O discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente aquilo que se manifesta (ou oculta) o desejo; é também aquilo que é o objeto do desejo; é visto que isto a história não cessa de nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo, por que, pelo que se luta, poder do qual podemos nos apoderar, permitir a transubstanciação e fazer do pão um corpo”, (Michel Foucault, A ordem do discurso, pg. 10 )[1].

A política do reconhecimento étnico se dá quando o grupo étnico se reconhece culturalmente diferente, numa conjuntura multicultural e se posiciona politicamente para ser reconhecido pelos demais, enquanto grupo distinto e com direitos à diferença. Isso deve ocorrer de maneira equânime, em relação às demais etnias que compõem a sociedade étnico-cultural diversificada, quando se trata de um estado democrático de direito.

No Brasil, desde a colonização, até os anos 1980, as diferenças étnico-culturais indígenas eram baseadas na teoria da aculturação e na prática ideológica evolucionista social. Essa teoria era de cunho assimilacionista, cujo sentido quer dizer que os indígenas deveriam, obrigatoriamente, assimilar a cultura dos brancos; era também integracionista, porque considerava que, pelo fato deles representarem a minoria da população, deveriam se integrar à cultura da maioria que compunha a sociedade brasileira.

Tal teoria, circunscrita ao positivismo social, predominou até a promulgação da Constituição Federal, em 1988. Com isso, o reconhecimento do indígena, com suas especificidades éticas e culturais tomou corpo, em concomitância com outros movimentos sociais ambientalistas internacionais. A Constituição brasileira reconhecia a realidade da diversidade étnico-cultural brasileira, respaldada pela Convenção n^o 169 da Organização do Trabalho (OIT), de 1985, que foi ratificada pelo Brasil posteriormente, em 2002.

Foi a partir da Constituição Federal de 1988 que os indígenas brasileiros passaram a se manifestar com mais autonomia, acerca de seus direitos. Assim, eles passaram a ser reconhecidos pelo Estado, por meio da legislação vigente, como seres com os respectivos direitos. Por isso, os indígenas se sentiram empoderados e passaram a reivindicar suas pautas de luta pelas políticas públicas que levassem em consideração suas especificidades étnicas.

Na tônica das fricções interétnicas pacíficas, nos últimos trinta anos de militância pela prática dos direitos indígenas, foram construídas entidades representativas regionais e nacionais em defesa dos indígenas, inclusive com expressão internacional. Um exemplo é a Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (APIB), organização de professores indígenas, movimento de mulheres indígenas e outras organizações afins, com propósitos comuns de defender a alteridade indígena. Nas suas pautas de discussão e de luta, vieram confirmar a diversidade étnico-cultural como realidade dos tempos modernos do país, ainda que tardiamente. Esses movimentos contrapunham-se à ideologia unificadora anterior, com as ideais de pseudo-homogeneização, que vinha sendo defendida e praticada desde o século 19.

Nesse cenário de conquistas e de posicionamentos de alteridade dos indígenas no Brasil, há detalhes semânticos, de ordem legal, que precisam ser trazidos à tona. É isso que possibilitará que não se convencione como “verdade”, o que de fato não o é. Com isso, a legislação criou condições para que o Estado desse um tratamento adequado aos povos indígenas, assegurando-lhes a legitimidade de autonomia e de independência política, que até então haviam sido negados. Antes da Constituição de 1988, os indígenas eram governados por meio de direitos limitados e difusos, sob a batuta da condição de tutelados pelo Estado brasileiro. Depois da Constituição de 1988, eles passaram a ter garantia de seus direitos, passando a defendê-los com bases legais.

Na prática, o que se alarma como propriedade dos índios, na verdade, é a propriedade da sociedade brasileira, sob a gestão da União, enquanto ente gestor dos direitos difusos dos cidadãos brasileiros. Nesse sentido, cabe aos índios usufruir da fauna e da flora, sendo-lhes vetado o direito à exploração do subsolo dos territórios das terras por eles ocupadas. Para os legisladores, explorar minérios em território brasileiro, é algo que cabe somente ao Estado, por meio de concessões a interesses e a práticas empresariais particulares. Aqui está o ápice da questão: o Estado discrimina os índios na tônica de que há “muita terra pra pouco índio”. Com essa visão, atrita os indígenas contra a sociedade envolvente e vice-versa, numa falsa retórica em nome de uma nação homogênea, mas que, na prática, é uma sociedade composta por diversidade étnico cultural circunscrita na legislação vigente do país.

Vale lembrar, ainda, que nessa matéria, cabe inserir o etnocídio, tipificado no genocídio, instituído juridicamente no processo de Nuremberg, em 1946. Portanto, dizimar etnias, por meio de etnocídio ou de genocídio, implica em crime. Esse é um assunto que deve ser tratado por instâncias competentes dispostas na lei vigente. Isso se aplica não somente à dimensão nacional, mas, sobretudo na dimensão internacional, até mesmo porque já se tinha essas matérias dadas por encerradas.

No entanto, infelizmente a política de negação dos direitos aos povos indígenas voltaram à pauta mais recentemente. Por isso, esse é um assunto que deve ser tratado com a máxima seriedade que as intenções impõem ao tema sobre a política do reconhecimento ético. Afinal de contas, a Constituição de 1988 continua vigente, e como tal estabelece os direitos indígenas, que devem ser contemplados nas políticas públicas do país.

Nota

1.FOUCAULT, Michel. A Ordem do Discurso (L’Ordre du discours, Leçon inaugurale ao Collège de France prononcée le 2 décembre 1970, Éditions Gallimard, Paris, 1971). São Paulo: Loyola, 2014. 24° ed.

A imagem que ilustra este artigo é do 15º Acampamento Terra Livre, organizado pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil), em Brasília, em abril de 2018. (Fotos: Yanahin Matala Waurá/Amazônia Real)

Dalvo Cruz é professor de antropologia e de filosofia. Tem experiência em educação indígena, doutorado em Linguística pela Universidade de Paris IV, mestrado em Educação, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, especialização em Antropologia na Amazônia, pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e graduação em Filosofia, pelo Centro Universitário Assunção.

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