Cafua e Caixa-Preta

FÁTIMA GUEDES Entre as memórias da casa de nossa infância, a cafua sobrevive nitidamente. Aquele espaço singular, no barracão dos fundos do quintal, vivia constantemente atufalhado de bregueços indispensáveis, não tanto pela utilidade material, mas pelo valor afetivo que […]

Cidadãos parintins protestam por saúde pública (Foto: Floriano Lins/Amazônia Real)

Por Amazônia Real Publicado em: 26/09/2016 às 19:31

FÁTIMA GUEDES

Entre as memórias da casa de nossa infância, a cafua sobrevive nitidamente. Aquele espaço singular, no barracão dos fundos do quintal, vivia constantemente atufalhado de bregueços indispensáveis, não tanto pela utilidade material, mas pelo valor afetivo que cada ‘relíquia’ ali guardada representava.

Vez por outra, aproximo os limites do tempo e me permito um retorno àquele acervo cuja funcionalidade proporcionava reaproveitamento responsável de objetos em desuso e ao mesmo tempo evitava proliferação de lixões descontrolados. Deparo-me procurando memórias e restos de infância: flores desidratadas, adereços e sonhos de rainha, o renegado ferro de engomar, o cuidado com o fio da velha peixeira utilíssima na ticação dos peixes para a boia dos puxiruns, a bota sete-léguas do Velho Onça, empoeirados fragmentos de Ledo Ivo, Sepê Tiaraju, Machado de Assis, Monteiro Lobato, Lígia Bojunga, Fernando Sabino, Guimarães Rosa… Ôpa! A Infância Brasileira!…

Que gostosa e rica aquela cafua!… Porém, no momento, é melhor fechá-la, agasalhar a tranca cuidadosamente, até porque a virulência dos novos tempos pode corroê-la, destruí-la… Os impositivos das inovações tecnológicas danosamente refutam e interferem sobre nossos símbolos e valores culturais, razão pela qual resguardo aquele acervo inalienável.

Com a modernização dos espaços domésticos e dos armazenamentos de objetos dispensáveis ou não, as cafuas entraram para o rol das inutilidades, das memórias ditas ultrapassadas. Sobrevivem como metáforas nas ousadas viagens de iniciados acadêmicos, ávidos por novidades culturais cuja materialidade alimenta corpus de pesquisas. Para as gerações já contaminadas por referenciais modernistas, o funcional abrigo de utilidades indispensáveis, com nova roupagem, transforma-se em depósito, despensa, almoxarifado e etc. De espaço lúdico, fonte de curiosidades e reinvenções, virou entulho, abarrotado de condimentos, materiais de limpeza, restos de construção, enfim, de tralhas mercadológicas, vazio, porém, de simbologia e subjetividade.

Onde pretendo chegar? A lembrança da cafua instiga-me destrinchar códigos linguísticos similares em natureza, embora opostos semanticamente – a “caixa preta”. A inovação vocabular nega-lhe qualquer sentido prazeroso; criador e criatura acidentam-se constantemente num jogo de esconde-esconde; há sempre um medo terrível de abri-la, expô-la… Em outras palavras, “caixa preta” é arquivo proibido à apreciação pública; é tumba que segreda fantasmas medonhos, verdades ocultas, podridões que ameaçam poderes. Logo, “caixa-preta” é exclusividade das classes sociais privilegiadas do sistema.

Cidadão comum não tem “caixa preta”, tem cafua, rabo-de-palha, rabo-preso… E facilmente se entrega, escancara a porteira, quando submetido à averiguação de fatos que lhe põem em dúvida a integridade.

Assim funcionam, na prática, os mecanismos de julgamento no Estado dito Democrático. São visíveis e agressivos os vieses classistas da “justiça” brasileira, os disfarces democracistas de seus membros, quando se trata de cafuas e caixas-pretas. Os poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – são peças dessa construção estatal e se consolidam sob uma base unificada de interesses comuns, ao mesmo tempo harmoniosa, em relação à defesa do Estado: uma abjeta sujeição às regras neoliberais, semelhantemente a cães de guarda em relação a seus tutores.

Em materialidade, movimentos organizados de Parintins/AM cansaram de denunciar ao Ministério Público corrupções de agentes públicos por abusos de poder político e econômico com impactos destrutivos à saúde, coleta de lixo, educação, iluminação pública, merenda e transporte escolar, demissões em massa, desvios de finalidade e etc., sem qualquer resposta. O mesmo não acontece quando as denúncias exigem visibilidade a tralhas escondidas em cafuas.

Observa-se ainda com indignação a cerca de jurubeba aos “senhores intocáveis”, assentados acima do bem e do mal, embargando outras instâncias, conforme afirmações descaradas: “outros órgãos dependem da consciência do magistrado na aplicação da justiça”.

Eis-nos a dúvida: que é justiça?… Será o legalismo que negocia deus pra uns e diabo pro resto?… Será o ardil legalista, inacessíveis a cidadãos comuns?…Será o conjunto de símbolos e títulos hierárquicos a serviço das elites?… Os cafuados entendem por Justiça a equidade de direitos, a faculdade de julgar com imparcialidade… Em reforço, Platão nos socorre: “Não pode haver Justiça sem homens justos”.

Fome e sede de Justiça, a cada dia, matam milhões de brasileiros, de amazonenses e parintinenses… Que os Doutores da Lei nos oportunizem produzir artigos cujas temáticas falem de flores, amores… De reinvenções de mundos, de Justiça e comunicações de Paz.

Ticação – termo popular para designar o processo artesanal de retalhar o lombo de peixes miúdos com objetivo de eliminar espinhas.

Puxiruns – o mesmo que mutirão.

Velho Onça – alcunha atribuída a meu Pai, Otávio Guedes de Araújo, haja vista sua íntima relação com a floresta.

Infância Brasileira – livro didático, multisseriado, adotado nas primeiras séries do antigo curso primário e admissão ao ginásio.

Cerca de jurubeba – metáfora designativa de inacessibilidade.

Cafuados – neologismo para referendar categorias em desvantagem socioeconômica.

A foto acima mostra cidadãos parintinenses protestando por saúde público no município (Foto: Floriano Lins/Amazônia Real)

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), Guararema (SP). Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e é Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Amazônia Real

A agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real é uma organização sem fins lucrativos, criada por jornalistas mulheres em 20 de outubro de 2013, em Manaus, no Amazonas, Norte do Brasil. Sua missão é fazer jornalismo ético e investigativo, pautado nas questões da Amazônia e de seu povo. A linha editorial é voltada à defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos. ([email protected])