“Confesso que Vivi”

FÁTIMA GUEDES A princípio, peço permissão ao Escritor Pablo Neruda para sorver gotículas de sua fonte e titular com as devidas coerência e sensibilidade o presente registro. Na sequência, aceito o convite do Poeta Thiago de Mello – “o canto […]

Por Amazônia Real Publicado em: 20/10/2014 às 13:47

Foto: Fátima Guedes

FÁTIMA GUEDES

A princípio, peço permissão ao Escritor Pablo Neruda para sorver gotículas de sua fonte e titular com as devidas coerência e sensibilidade o presente registro.

Na sequência, aceito o convite do Poeta Thiago de Mello – “o canto molhado e barrento de Menino do Amazonas” – para ensaiar a ternura e o respeito pela Vida: “Vem ver comigo o rio e as suas leis / vem aprender a ciência dos rebojos / vem escutar os cânticos noturnos / no mágico silêncio do igapó / coberto por estrelas de esmeralda…”

E assim, “nesse reino generoso, onde os homens que nascem dos seus verdes continuam cativos e, contudo, profundamente irmãos”, “confesso que vivi”. Em essência, a declaração absorvida do Poeta Chileno me define o que, certamente, as palavras admitir-se-iam limitadas para traduzir toda a riqueza e experiências compartilhadas com Pajés, Pegadores de Ossos, Parteiras e Erveiros (Sateré-Mawé), na Comunidade “20 Quilos”, Rio Andirá, Município de Barreirinha/AM.

Sem dúvidas, aquela I Oficina de Revitalização dos Saberes, Práticas e Cuidados Tradicionais, realizada pelo DSEI de Parintins (Distrito Sanitário Especial Indígena), fora inspirada por Mãe Natureza em resposta às urgentíssimas necessidades dos filhos daquela Nação já ameaçada, ou mesmo, contaminada pela virulência de um sistema tecnicista e excludente que não reconhece a Ciência das populações tradicionais.

Foram quatro dias de intensa convivência e aprendizado. A Oficina fora tecida por compromissos provocadores em prol da revitalização de memórias perdidas na relação de bem-viver dos povos da floresta e ao mesmo tempo para oportunizar a construção da ‘roda’ entre o Saber dos povos Indígenas e modelo Biomédico moderno.

Dentre os dezessete participantes, reconhecidos por aquele coletivo como “Médicos da Natureza”, o diferencial fora marcado pelos anciãos septuagenários – o Tuxaua/Pajé Jurismar e o Pajé Simão. Ambos, conhecedores de segredos da natureza, de histórias míticas, de cuidados em Saúde recheados de sentido e Ciência. Considerando-se o acúmulo de saberes e experiências dos Anciãos referendados a comunidade indígena os considera – “Bibliotecas Vivas”.

A propósito, durante a reconstrução das memórias, era contagiante a atenção, o silêncio e a reverência da comunidade aos respeitáveis Pajés… É como se testemunhassem o adeus de um ritual sagrado esquecido, talvez a última chance de conhecerem as legítimas raízes de sua cultura traduzida em lendas, contos, símbolos, rituais, cantos… Êxtase de poesia, sabedoria e significados.

Na lenda – a “Origem das doenças e cura” – Pajé Jurismar traz respostas holísticas e filosóficas como justificativas das mazelas do mundo. Segundo o Sábio Pajé, as doenças são resultado das maldades, ambições, conflitos e perversidades produzidas pelos humanos entre si e entre as outras espécies – das formigas às castanheiras. Assim, ferir a floresta, as plantas, os frutos, os rios, o ar, os bichos é violentar a si próprio… A natureza somos todos nós. Ela dá a vida e também a morte. Afirmara.

E concluiu, propondo um retorno no tempo das antigas comunidades onde todas as coisas criadas por Tupana eram de todos; todos se cuidavam como família e nada faltava… “Só desse jeito, meus parentes, o mundo vai ter saúde e vida com fartura”. Despedira-se, acenando com o chapéu.

Encerramos o evento tomando como ponto de partida o caminho apontado pelo Médico da Natureza…

Do meu canto, sem ressalvas, suspirei… Sei que nada sei.

Nota:

Rebojos– Redemoinhos causados pelo movimento das águas dos rios.

Igapó – Área de mata inundada da Amazônia, rica em espécies vegetais e animais.

Pegadores de Ossos – O mesmo que Consertadores de Desmintiduras; quem cuida de contusões, deslocamento de ossos, fraturas e realiza massagens.

Sateré-Mawé – Nação indígena do Médio Amazonas na divisa com o Pará. Sateré (lagarta de fogo, clã mais importante dentre os que compõem essa sociedade; indica, tradicionalmente, a linha sucessória dos tuxauas – palavra que designa chefe político); Mawé (papagaio inteligente e curioso).

Tupana – Deus Supremo.

Comunidade “20 Quilos” – A denominação vem em referência aos 20 quilos de guaraná, primeira produção daquela comunidade exportada para a Europa.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins e da Articulação Parintins Cidadã.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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