A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto

A luz do jornalismo

A maior glória de um repórter é poder parafrasear o poeta Gonçalves Dias e declarar: “meninos, eu vi!”. Para ter visto os acontecimentos, precisa estar ao lado do canhão que dispara, da manifestação de protesto na rua ou mesmo fazer […]

Por Lúcio Flávio Pinto Publicado em: 15/12/2018 às 12:31

A maior glória de um repórter é poder parafrasear o poeta Gonçalves Dias e declarar: “meninos, eu vi!”. Para ter visto os acontecimentos, precisa estar ao lado do canhão que dispara, da manifestação de protesto na rua ou mesmo fazer a pergunta incômoda (mas necessária para esclarecer a verdade) quando um potentado convocou uma entrevista coletiva para dizer o que quiser.

Mesmo numa cobertura pautada, como pode ser uma entrevista agendada pelo interessado no assunto (e seu protagonista), o compromisso do verdadeiro repórter é ser intérprete da voz da rua (geralmente muda ou emudecida) e não um levantador de bola para o poderoso cortar na rede da mídia.

Nos anos 1970, o escritor e cartunista Jules Feiffer advertiu: “Se você quiser uma mentira, vá a uma entrevista coletiva. Se quiser a verdade, roube-a”. Feiffer expressava o sentimento de espanto da opinião pública diante das falcatruas, ardis e trambiques do até então poderoso presidente Richard Nixon que resultaram no escândalo de Watergate, na ameaça de ser submetido a impeachment e, por fim, diante do seu desmascaramento, da sua renúncia.

Repórteres dos grandes jornais americanos, à frente o Washington Post, não engoliram as mentiras do ocupante da Casa Branca. Para provar a verdade, chegaram a roubar relatos secretos, como os “documentos do Pentágono”, sobre a guerra no sudeste asiático.

A revista Time, o mais importante magazine da imprensa mundial, resolveu escolher como Personalidade do Ano em 2018 não uma pessoa, mas um conjunto delas. É a 2ª vez em 91 anos da iniciativa que a publicação opta por uma premiação coletiva. A honraria foi conferida ao jornalista saudita Jamal Khashoggi, articulista do Washington Post assassinado barbaramente, em 2 de outubro deste ano, no consulado de seu país em Istambul; à jornalista filipina Maria Ressa, perseguida pelo regime ditatorial de Rodrigo Duterte; às jornalistas birmanesas Wa Lone e Kyaw Soe Oo, correspondentes da agência britânica de notícias Reuters, que foram presas; e a cinco funcionários executados durante uma invasão do jornal Capital Gazette, de Annapolis, Maryland, no qual trabalhavam, em 28 de junho.

Só os cinco últimos não são ou foram jornalistas, mas combatem, foram presos ou morreram por causa de um ato de violência contra o jornalismo de linha de frente, que testemunha os fatos e os relata conforme os viu e percebeu. Todos “pagaram um preço terrível por enfrentar o desafio deste momento”, disse o diretor da revista, Edward Felsenthal.

A iniciativa deste ano é oportuna. O traço em comum entre os jornalistas premiados é que enfrentam as adversidades para se tornarem testemunhas dos grandes acontecimentos do dia a dia no momento mesmo em que eles se consumam para depois virarem história. E arcam com as consequências do que escrevem. Respondem não só pela fidelidade aos fatos como pelas reações adversas que provocam.

Estes são os verdadeiros repórteres, aqueles que não atalham caminhos em busca de uma celebridade ou negociam seus textos. Podem pagar caro pelo compromisso e a coragem. Sem eles, porém, o jornalismo não passaria de burocracia de aluguel, ou, como assinalou Millôr Fernandes na frase (sempre lembrada e pouco aplicada), seria armazém de secos & molhados, mesmo com muitos secos e muitos molhados.

O jornalismo trai a sua missão mais nobre quando deixa de cumprir a função de auditor popular do poder. Essa investigação é ainda mais difícil e essencial por não dispor de amparo institucional. A única arma do jornalista é a sua inteligência, que utiliza com disciplina, aplicação, humildade, rigor, competência e honestidade. Nos momentos decisivos, antes de tudo, com coragem.

Este repórter está rareando nas redações. Em parte, por influência da internet. Diante dos computadores ou manejando seus celulares, os jornalistas têm acesso imediato, impessoal, inadvertido e pessoalmente mais seguro a bancos de dados, fontes e assessores. Não precisam sair dos seus locais de trabalho – nem mesmo de suas residências – para cumprir pautas.

Sempre mais intimidador é o ambiente lá fora, nas ruas das grandes cidades ou no sertão, aquele sertão para o qual Guimarães Rosa advertiu: é onde “criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade”. Como o vasto sertão amazônico, campeão de conflitos de terras, de assassinatos de índios e de pistoleiros de aluguel, que executam pessoas incômodas aos poderosos por encomenda a preços módicos.

Até anos atrás, os repórteres transitavam pelas estradas poeirentas que abrem caminho para a devastação ambiental e a selvageria social quase invisíveis, como escrivães da frota (a da nova ocupação, sobre rodas). Eram personagens neutros num cenário de extremos e radicalismos. Hoje, são também alvos. Os mandantes são versões tisnadas de moderno dos velhos senhores de baraço e cutelo.

Dos anos 1960 a 1990 andei intensamente pela Amazônia, ora acompanhado por um fotógrafo (e um motorista) ora sozinho. Testemunhei verdadeiras guerras envolvendo índios, fazendeiros, madeireiros, garimpeiros, posseiros e outros atores sociais. Nunca sobrou uma bala perdida com meu endereço. Ouvi os dois lados em confronto. Fui aos lugares que quis.

Esses roteiros se tornaram proibidos ou extremamente perigosos. Por isso, cada vez menos temos relator “no calor da hora”, como se costuma dizer das reportagens de Euclides da Cunha sobre o conflito de Canudos, no alvorecer da república brasileira. Num momento em que um número crescente de jornalistas prefere se manter à distância, é animadora a iniciativa da Time de destacar o repórter do front. Afinal, como lembra o poeta turco Nazim Hikmet: “Se eu não queimo/ Se tu não queimas/ Se nós não queimamos/ De onde virá a luz?”

As imagens que ilustram este artigo, as reproduções das capas da Revista Time, são de autoria de Moises Saman/Magnum Photos

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Veja outros artigos do autor.

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Sobre a matéria

Lúcio Flávio Pinto

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.