Mulher joga futebol: a superação das indígenas do time Hiwy

Por Amazônia Real Publicado em: 07/07/2019 às 01:04

Elas, que foram seis vezes campeãs do campeonato “Peladão”, contam como é enfrentar o preconceito e a falta de apoio no esporte (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Por Alicia Lobato e Jackeline Lima, colaboração para a Amazônia Real

Manaus (AM) – Mulheres indígenas, mães, donas de casa e artesãs: todas jogadoras de futebol em Manaus, no Amazonas. Atualmente, elas estão cada vez mais envolvidas com o esporte. Só na capital, existem cerca de sete times e um deles é o Hiwy FC, nome que é da comunidade onde vivem no bairro Santos Dumont, zona centro-oeste Manaus.

Fundado há 11 anos, o time Hiwy (significa “gavião” na língua Sateré-Mawé) tem atualmente 16 jogadoras, incluindo as 11 titulares e as reservas. Elas são das etnias Sateré-Mawé, Tikuna e Mura, cujos territórios tradicionais ficam no Amazonas. Algumas moram em comunidades distantes de Manaus e viajam até a capital para participar dos jogos, sejam em competições ou não.

A agência Amazônia Real entrevistou seis atletas do time Hiwy: Anita Ferreira Lima, Camila Ferreira de Souza, Beatriz Ramos, Brenda Carolina, Sara Ramos e Suzy Ferreira de Souza. Elas contam que suas histórias, ao iniciar no futebol feminino, não são muito diferentes da maior artilheira das copas do mundo, Marta Silva, a camisa 10 da Seleção Brasileira, que começou enfrentando muito preconceito e jogando com meninos em sua cidade natal Dois Riachos, em Alagoas.

Segundos as jogadoras do Hiwy, quando elas saem para os jogos andando juntas pelas ruas do bairro da Redenção, próximo de Santos Dumont, e os moradores as identificam como indígenas, as olham de forma preconceituosa. Além disso, durante os jogos, é recorrente o uso pejorativo da palavra “índio”. “Quando a pessoa faz isso, é porque ela não tem conhecimento. É ignorância, né?”, comenta Sara Ramos.

A jogadora Sara Ramos segurando um troféu do campeonato “Peladão”
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Como forma de combater o preconceito, o time Hiwy participa de competições com mulheres não-indígenas também. O objetivo é ressaltar que não há diferenças entre elas pois, naquele momento, todas as mulheres estão juntas pela mesma paixão: o futebol. “Às vezes, as mulheres não-indígenas jogam com a gente; às vezes jogamos com elas. É divertido e não tem motivo para preconceito”, ressaltaram as jogadoras.

Assim como Marta, quando crianças, as mulheres indígenas iniciaram jogando com os meninos. “Começamos com os meninos, mas fomos em busca de times de mulheres para que pudéssemos disputar os campeonatos. Jogamos pela primeira no time ‘Mulheres Indígenas’ no campeonato Peladão. Nós jogávamos em times separados, também, mas nunca representando a comunidade. A ideia do time [da comunidade] foi do meu marido”, disse Sara Ramos, 39 anos, da etnia Mura.

Meio campista, ela afirma que no começo do Hiwy as jogadoras usaram uniformes doados de times masculinos. “As roupas largas tivemos que mandar consertar. Apenas depois conseguimos fazer um uniforme nosso. Como não tínhamos dinheiro, cada uma ficou responsável por comprar o seu”, disse.

Sara contou que as mulheres não recebem salários, mas todas se ajudam mutuamente diante das dificuldades no esporte. “Nós participamos de muitos campeonatos, mas a premiação é pouca: apenas mil reais. A gente joga futebol porque gosta mesmo, porque esse dinheiro não paga nem os equipamentos.”

Jogadoras do Hiwy são campeãs do campeonato “Peladão Indígena”
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O Campeonato de Peladas do Amazonas, nome oficial do Peladão, foi criado em 1972 como um projeto social da Rede Calderaro de Comunicação, proprietária do jornal, rádio e televisão A Crítica. A cada ano, o torneio reúne mais de mil times amadores e cerca de 23 mil atletas. As competições começam a partir do mês de julho. O torneio é dividido nas categorias masculina, feminina, adolescentes, crianças e indígenas. Atualmente, o campeonato conta com a participação de mais de 10 times de mulheres indígenas. Apesar do bom desempenho e conquista dos títulos, o time ainda sofre com a falta de patrocínio e de ajuda financeira.

A rotina dos treinos

Beatriz Ramos Sateré Mawé, 15 anos, é meio-campo do Hiwy
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Acordar às 5 horas da manhã, pegar o ônibus para chegar a tempo ao treino às 8h – e, muitas vezes, esperar os times masculinos do bairro acabar: essa é a rotina das jogadoras do Hiwy FC. Quando o treino é a noite, elas começam a treinar por volta de 21h e terminam por volta das 3 horas da madrugada. “O tempo passa muito rápido”, comentou Camila Ferreira de Souza, 23 anos, artesã e lateral esquerda do time.

Essa rotina intensa do time Hiwy é desde 2008, ano em que elas ganharam o primeiro lugar no “Peladão Indígena”. Também foram campeãs invictas em 2015 e 2016, somando ao todo três campeonatos de vitórias.

Além da ausência de apoio, as jogadoras do Hiwy afirmam que enfrentam a dificuldade para treinar, pois elas aproveitam o campo do bairro para se preparar para os campeonatos. Porém, no primeiro semestre de 2019, o time interrompeu os treinos, pois o local que é usado regularmente está ocupado por um parque de diversões. O bairro da Redenção conta com outro campo que as jogadoras poderiam usar, mas as jogadoras informaram que não se sentem seguras no local, mesmo sendo próximo da comunidade.

Para as jogadoras indígenas, a prática do esporte torna-se uma forma de empoderamento feminino e de manter as tradições culturais, já que os ensinamentos são passados de geração para geração, como é o caso de algumas jogadoras que levavam – ou ainda levam – os filhos para acompanhar os treinos de futebol. Alguns deles já ingressaram na prática do esporte.

Mães jogadoras

Brenda Caroline , 20 com o filho Gustavo. (Foto: Alberto César Araújo/Aleam)

Anita Ferreira Lima Sateré-Mawé, artesã, com sua filha
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

As jogadoras do Hiwy dizem que conseguem conciliar a rotina dos treinos e a criação dos filhos, como conta a lateral Camila Souza. “Agora eles já estão maiores, mas antes eu levava meus filhos para a escola, trazia para casa, fazia tarefa com eles, fazia tudo, e aí, depois, eu ia para pelada à noite. É ao contrário, né? Quem ia para pelada era eu, não o meu marido”, contou a jogadora.

A indígena Suzy Ferreira de Souza, 27 anos, da etnia Sateré-Mawé, disse que, quando não está ensinando a língua de sua etnia às crianças da comunidade Y´Apyrehyt, joga no time Hiwy. “Para mim significa um momento de lazer. Temos a oportunidade de conhecer outros bairros, lugares que nunca visitamos; não conhecemos nada por aqui, só os lugares onde acontecem os jogos. Mesmo tendo que tirar o dinheiro do próprio bolso para custear as viagens, vale a pena”.

Com relação ao futebol feminino no Amazonas, seja amador ou profissional, as jogadoras do Hiwy dizem que, apesar de ter melhorado em relação aos anos anteriores, o esporte ainda enfrenta a falta de apoio, tanto de iniciativas privadas quanto governamentais, que seria fundamental para ajudar a reverter esse quadro do esporte no Amazonas.

A professora Suzy Ferreira de Souza é zagueira do time Hiwy
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

De acordo com as indígenas do time, a Fundação Nacional do Índio (Funai) em Manaus foi procurada para ajudar com apoio; porém, não obtiveram sucesso. Segundo relatos, o órgão ressaltou que o apoio era concedido somente às etnias que não residem na capital.

Proibidas de jogar no Brasil

Time do Clube Radar representando a Seleção Brasileira Feminina

O primeiro time de futebol feminino do Brasil foi o Esporte Clube Radar, fundado em 1932, no Rio de Janeiro. Em 1941, as mulheres brasileiras foram proibidas de jogar futebol. À época, o presidente Getúlio Vargas (1882-1954) decretou em lei que o esporte era “incompatível com as condições da natureza feminina”. A liberação do futebol das mulheres só aconteceu em 1979, durante a ditadura militar (1964-1985). Sendo assim, elas ficaram por 38 anos sem jogar oficialmente.

O time Radar só voltou a jogar na década de 80. A primeira Copa do Mundo Feminina aconteceu na China, em 1991, organizada pela Federação Internacional de Futebol (Fifa).

“Quando o futebol feminino começou, tinha gente que achava que não ia ser popular no país. Fazendo um paralelo, tem gente que diz que a seleção feminina não tem estrutura: olha, mas esse cenário já foi muito pior, a evolução é gradativa. Na década de 1980 e 1990, as meninas sofriam muito para jogar futebol”, conta o jornalista Leanderson Lima, que é editor do jornal Manaus Hoje e foi editor de esportes do jornal A Crítica, tendo participado, inclusive, da cobertura de copas do mundo e como comentarista do esporte no rádio e na TV.

Com blusa masculina do Brasil, a goleira Meg foi do time Radar (Foto: Seleção Brasileira)

Leanderson lembra que a primeira emissora a transmitir a Copa do Mundo Feminina na década de 1990 foi a Rede Bandeirantes, mas pelo esforço do jornalista Luciano Do Valle (1947-2014). O profissional mineiro, segundo o jornalista, inovou na época, pois a TV foi pioneira no incentivo e transmissão dos jogos de futebol feminino no Brasil.

“O Luciano do Valle insistia em narrar os jogos. Na década de 90 ninguém ligava para a prática do esporte do futebol delas. Hoje é muito importante essa visibilidade que se tem porque é o seguinte: como é que o futebol melhora? Ele melhora quando você tem a prática em massa; é assim que funciona o esporte de alto rendimento”, enfatizou o comentarista esportivo. Depois da Band, apenas a TV Brasil transmitiu os jogos de mundiais, em 2015.

Mas ainda falta muito apoio às mulheres jogadoras e investimentos nos times. Dados publicados, em 2017, pelo Sindicato Mundial de Futebolistas (Fifpro), mostrou que metade das jogadoras de futebol não recebe salários dos clubes profissionais. A pesquisa foi baseada no depoimento de quase 3.300 atletas e destaca a grande diferença das remunerações entre as categorias masculina e feminina. A baixa remuneração é a mais citada pelas jogadoras, quando questionadas sobre a dificuldade para atuar no esporte.

Marta é seis vezes a melhor jogadora do mundo (Foto: Fifa Getty Imagens)

Apenas em 2019 foi que a Fifa passou a exigir a igualdade de gênero nos clubes masculinos. O artigo 23 do Estatuto da federação obriga que todos os clubes que participam da série A do Brasileirão, Copas Libertadores e Sul-Americana tenham um time feminino. Leanderson Lima disse que muitas pessoas comemoram essa decisão, mas ela saiu 40 anos após as mulheres poderem jogar oficialmente no Brasil. “É uma forma de pressionar; não é o ideal, que seria se as pessoas se interessassem e tivessem seus times femininos naturalmente”, disse o jornalista esportivo.

Futebol profissional no Amazonas

As jogadoras do Iranduba ( Foto: Michael Dantas/Allsports/MídiaNinja)

Quando questionado sobre quais eram as maiores dificuldades dos times femininos amazonenses, Leanderson Lima disse que falta o campo para os treinos, o tempo integral ao esporte, por conta do baixo salário, e conciliar os estudos com o esporte. “Além da própria questão de ser um esporte amador que não favorece o cenário regional em termos profissionais”, disse.

Com relação aos times profissionais Iranduba e 3B, Leanderson Lima ressaltou que são times que pagam salários, que têm uma estrutura consolidada, se comparada a outros times amadores. O 3B, especificamente, fica desativado no período que não tem competição. O time é montado para o Brasileiro e para o campeonato amazonense.

Porém, segundo o jornalista, para os outros times superarem isso é uma questão de tempo e trabalho de longo prazo.

“Eu acho que, atualmente, Manaus oferece uma visibilidade muito boa para o futebol feminino. Hoje, ele chega na disputa na primeira e segunda divisão. Aqui, as meninas têm um cenário favorável para pessoas carentes por futebol, e já lotaram estádios; porém, eu não digo que essa visibilidade se repete na região Norte como um todo, até porque é muito precário o futebol feminino dessas outras regiões”, enfatizou Leanderson Souza.

Copa do Mundo da França

Marta faz gol da vitória e do record na Copa do Mundo da França (Foto: CBF)

O futebol feminino ganhou uma visibilidade inédita com a realização da Copa do Mundo da França, que começou em 7 de junho e termina neste domingo (7 de julho). No Brasil, pela primeira vez, a Rede Globo transmitiu apenas os jogos da Seleção Brasileira Feminina. O time de Marta, Formiga e Cristiane foi eliminado pelas francesas, mas o jogo foi o de maior audiência, com 88,4 milhões de telespectadores no país, segundo dados do Kantar Ibope Media obtidos pelo blog do jornalista Rodrigo Capelo.

Mayara Vaz é ex-jogadora do time amazonense Iranduba. Ela falou sobre a visibilidade para os times de mulheres com a Copa do Mundo da França. “A tendência é aumentar cada vez mais e espero que isso aconteça através da copa, pois muitas meninas lutam para isso, mas infelizmente poucas têm oportunidade”, disse.

A história de luta dela pelo futebol não é diferente das jogadoras indígenas e das jogadoras da Seleção Brasileira. Ela começou a jogar no quintal de casa com os meninos do bairro. Aos poucos, conseguiu oportunidades para crescer no esporte.

Mayara jogando pelo Iranduba (uniforme verde) com Sport, em 2018 (Arquivo)

“Duas amigas me viram e me levaram para uma escola para fazer teste e ganhei uma bolsa escolar. A partir disso, comecei a disputar campeonatos e recebi uma proposta pra jogar em Santa Catarina. No começo, sentia muita falta da minha família, mas aos poucos fui me acostumando e, graças a Deus, deu tudo certo. Estou muito focada e dedicada para poder dar o meu melhor”, disse Mayara, que atualmente joga pelo clube chinês Hebei Aoli.

A ex jogadora do time amazonense 3B, a paulista Rebeca Monteiro, conta que não teve apoio em casa. “Não tive apoio da minha família; comecei na escola mesmo. É claro que ninguém acreditava que poderia chegar em algum lugar”, disse ela, que hoje joga pelo clube paulistano Palmeiras.

Apesar das inúmeras dificuldades ainda presentes, o futebol feminino, sendo indígena ou não, está lutando e perseverando. Nos próximos anos, quando as gerações futuras estudarem toda a trajetória de suas antecessoras no esporte, encontrarão inspiração, sentido e força para continuarem o legado de mulheres no futebol, ampliando o reconhecimento e área de atuação, de forma local, nacional e internacional.

Mulheres torcem pelas jogadoras

Campanha “Jogue como uma garota” no Curupira, Mãe do Mato em Manaus
(Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

A audiência recorde da Copa do Mundo da França mostrou o crescimento do público para a competição em que as mulheres são as protagonistas. Tanto em Manaus, como no município de São Gabriel da Cachoeira, no estado do Amazonas, as transmissões foram realizadas pela campanha nacional Jogue Como uma Garota, criada pela designer e feminista Karina Gallon, da marca-protesto @peita, de Curitiba, com apoio da agência Amazônia Real e organizações e coletivos de mulheres feministas.

As campanhas tiveram como embaixadoras a jornalista Kátia Brasil, em Manaus, e a Edneia Teles, coordenadora do Campeonato de Futebol de São Gabriel da Cachoeira, no Alto Rio Negro.

A campanha também convidou mulheres que são dirigentes de bares em 21 cidades para promoverem as transmissões dos jogos: em Manaus, eles foram transmitidos no Espaço Cultural Curupira Mãe do Mato, de Gabriela Refosco; e em São Gabriel da Cachoeira nos bares Recanto do Gringo e Tio John, de Erlange Figueiredo Araújo e Jucilene Albuquerque Cruz.

A audiência da Copa do Mundo da França foi tão grande no Brasil que, pela primeira vez, a Globo transmitiu a final do mundial, neste domingo (7 de julho), entre as seleções dos Estados Unidos e Holanda. As jogadoras norte-americanas ganharam com um placar de 2 x 0 o título de campeãs. A capitã do time Megan Rapinoe foi escolhida a melhor jogadora da Copa do Mundo de 2019

A última transmissão da campanha Jogue como uma garota aconteceu nos bares:

( • ) Manaus

Local: Espaço Cultural Curupira Mãe do Mato, na Avenida Sete de Setembro, no 1.710

Entrada: R$ 5,00

( • ) São Gabriel da Cachoeira

Local: Bar Tio Jhon, que fica próximo ao ginásio campo municipal.

( • ) Acompanhe a cobertura da campanha aqui.

( • ) www.peita.me

Alicia Lobato é estudante de jornalismo da faculdade Fametro e desde o mês de junho de 2019 participa do 4º Treinamento em Jornalismo Independente e Investigativo da agência Amazônia Real.

Jackeline Lima também fez parte do 4º Treinamento em Jornalismo Independente e Investigativo da agência e, após formada, passou a fazer parte da equipe de repórteres da Amazônia Real.

Este texto foi atualizado para inserir o resultado do jogo entre Estados Unidos e Holanda.

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Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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