Nossa Responsabilidade Caboca

FÁTIMA GUEDES Falar de água, hoje, é trazer à luz duas realidades fundamentais: direito à vida e bem comum. O controle das fontes de água potável tem sido um dos objetivos estratégicos de governos imperialistas. Grandes empresas multinacionais já […]

Por Amazônia Real Publicado em: 17/03/2015 às 11:53

A arte dos curumins (meninos) nas águas do rio Amazonas (Foto: Floriano Lins)

FÁTIMA GUEDES

Falar de água, hoje, é trazer à luz duas realidades fundamentais: direito à vida e bem comum. O controle das fontes de água potável tem sido um dos objetivos estratégicos de governos imperialistas. Grandes empresas multinacionais já privatizam água potável mundo afora: Vivendi e Suez-Lyonnaise (da França), RWE (da Alemanha), Thames Water (da Inglaterra), Bechtel e Coca-Cola (dos Estados Unidos), Nestlé (da Suíça).

Em atenção às análises e projeções técnicas ambientalistas, em 1997, em Marrakesh, a ONU defendeu a água como bem econômico. E, no II Fórum Mundial da Água, em Kyoto, na segunda quinzena de março de 2003, os debates se voltavam para o avanço do mercado do líquido precioso. Neste mesmo ano, aos 22 de março, em Florença, o I Fórum Alternativo Mundial da Água declarava a água como um direito humano, na tentativa de frear a privatização dos serviços de abastecimento e de regulamentação do chamado mercado da água. Já, em 21 de julho de 2010, a ONU, contrapondo-se à mercantilização, aprovou a resolução: água potável e segura e saneamento básico constituem um direito humano essencial.

Outros dados merecem atenção para se melhor entender que, em se tratando de bens naturais – de modo especial desse recurso insubstituível e aparentemente inesgotável na Amazônia – é impossível ignorar a estreita conexão deste com as necessidades mundiais de sobrevivência do conjunto das espécies, com influência direta e indireta sobre a qualidade de vida e sobre a existência de todos os seres vivos. Dados apontam que1,5 bilhão de pessoas no mundo carecem de abastecimento de água. Por falta desse acesso ou de saneamento, morrem por dia, mais de 30 mil pessoas. Em Florença, foi proposto o Contrato Mundial da Água, segundo o qual, as nações em adesão comprometem-se a impedir que nenhum de seus cidadãos, seja negado acesso à água potável até o ano 2020.

É imprescindível também elucidar que, nos países empobrecidos, de cada cinco crianças, morre uma, antes de completar cinco anos de idade, por doenças relativas à qualidade da água. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), 85% das doenças estão relacionadas com a água.

No sentido de reforçar o compromisso universal com a questão, já anunciado em momento anterior, faz-se necessário não confundir quantidade com a qualidade do líquido de que dispomos para garantir sobrevivência saudável. Das águas que cobrem a maior parte do nosso planeta, 97,5% são salgadas; somente 2,5% são doces ou potáveis. (68,9% dessas águas doces encontram-se congeladas nos polos, geleiras e no cume das montanhas; quase todo o restante (29,9%) são águas subterrâneas. Restam 0,9% nos pântanos, apenas 0,3% nos rios e lagos. A distribuição desse 0,3% é desigual e ameaçadora no Brasil: 70% se destina à irrigação na agricultura (principalmente grande monocultura exportadora), 20% à indústria, restando apenas 10% para uso humano e animais, ou seja, 0,03% da água doce de rios e lagos do planeta.

Em meio às análises e estatísticas, daqui da Ilha do Boi Bumbá, nosso olhar se volta para os rincões mais isolados (em termos geográficos e informativos) desta cobiçada região; perscruta o silêncio acomodado da companheirada caboca mal acostumada à dadivosidade da fauna e flora; se reporta para cada beiradão esquecido cuja única certeza se perde no volume dos rios, lagos e igarapés, às vezes, fonte única de sobrevivência e outras tantas, fenômeno ameaçador. Com tantas miragens problematizadoras a realidade torna-se opaca e enigmática.

E enquanto prevalece nosso monólogo regional em relação aos agravos que afligem os parentes amazônidas, assalta-nos o terrorismo a respeito da escassez da água, alardeada apenas sob o eixo da quantidade em metros cúbicos, omitindo-se o real sobre o fator qualidade. Pras bandas de cá, passa despercebido que 0,03% da água potável do planeta, destinado ao consumo humano e animal, além do envenenamento por adubos químicos e pesticidas agrícolas do agronegócio, têm parcela já contaminada por empresas mineradoras, inclusive por metais pesados. Que dizer das prioridades governistas, em favorecimento do agronegócio exportador (soja, carne, celulose, milho…), das megamineradoras, ameaçando o direito à vida e transformando um bem comum em produto financeirista? Quem pagará pelos prejuízos?…

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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