A Amazônia segundo Lúcio Flávio Pinto

O dinheiro do povo

Um dos principais órgãos do governo federal para a melhoria da deficiente educação brasileira é o poderoso e milionário FNDE, o Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, muito disputado pelos políticos. Um dos seus braços na relação com os Estados […]

Escola de ensino fundamental São José, em Vila Formosa, território quilombola no município de Acará, tomada pelas águas e abandonada pelo poder público. (Foto: Cícero Pedrosa Neto)

Por Lúcio Flávio Pinto Publicado em: 15/07/2020 às 15:35

Um dos principais órgãos do governo federal para a melhoria da deficiente educação brasileira é o poderoso e milionário FNDE, o Fundo Nacional do Desenvolvimento da Educação, muito disputado pelos políticos. Um dos seus braços na relação com os Estados é o Programa Especial de Fortalecimento do Ensino Médio.

Ao longo do tempo, o Ministério da Educação (MEC) e o seu FNDE têm sido muito criticados, não sem motivo. Mas há casos que demonstram uma responsabilidade múltipla e mais desconcertante do que simplesmente transferir toda culpa para os largos costados de Brasília.

Em 2008, para se favorecer desse programa, o governo do Pará, na época chefiado pela bancária Ana Júlia Carepa, uma das principais lideranças estaduais do PT (hoje no PSOL), tornou obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena nas instituições de ensino fundamental e médio, públicas e privadas.

Dois anos depois, já no fim do seu mandato (iniciado em 2007), o único do PT até agora, o governo decidiu comprar o livro Sociedade em Construção: história e cultura afro-brasileira e indígena, para distribuí-lo entre os 365 mil alunos do ensino médio.

A iniciativa provocou estranheza. A contratação foi direta e não por licitação pública. O valor foi considerado alto: na época, mais de 13 milhões de reais (R$13.468.500,00) R$36,90 cada volume. Do total, R$11.853.972,00 viriam do governo federal e R$1.074.528,00 do tesouro estadual. O valor atualizado é de mais de R$ 22 milhões.

Relatório de própria auditoria estadual, do ano seguinte, apontou várias irregularidades no processo de inexigibilidade de licitação: falta de caracterização de singularidade do bem e direcionamento do objeto; inadequação do atestado de exclusividade; pagamento indevido a fornecedor, gerando prejuízo ao erário por recebimento parcial e pagamento integral de livros.

Nota técnica da Coordenadoria de Educação Escolar Indígena e análise pedagógica emitida pela Coordenação de Ensino Médio da secretaria estadual não foram conclusivas quanto à harmonização dos livros aos propósitos da orientação pedagógica.

A aquisição do livro resultou não de decisão da secretaria estadual, mas de proposta apresentada pela empresa Gráfica e Editora Direção, protocolada em 12 de novembro de 2010. Na capa do Processo consta: “Solicita análise de proposta de livros didáticos de história e cultura afro-indígena brasileira, conforme anexos”, com o valor da compra informado.

O juiz federal diz que não pôde saber o teor do requerimento, “visto que embora tenha dado início ao processo o mesmo foi retirado dos autos”. Os anexos nunca foram juntados ao processo. A compra foi efetuada um mês depois.

O MP observou que a secretária de educação teria autorizado a aquisição dos livros sem observância das exigências da lei de licitações e realizado pagamento sem a devida entrega da totalidade dos bens.

A denúncia, feita pelo Ministério Público Federal, foi recebida em agosto de 2016. Ontem, o juiz Rubens Rollo d’Oliveira, da 3ª vara federal criminal do Pará, condenou a então secretária de educação, Ana Lucia de Lima Santos à pena de seis anos e oito meses de detenção, em regime semiaberto, e multa de 200 dias-multa. Decretou também a perda do cargo público da condenada, “uma vez que violou os deveres funcionais de lealdade, probidade e moralidade”.

O juiz se disse convencido de que a secretária sabia que todo o processo de inexigibilidade de licitação estava eivado de vícios e simulações”. Para Rollo, “salta aos autos a celeridade com que foi tratada a compra dos livros mediante inexigibilidade de licitação, cujo procedimento durou menos de dois meses, nos últimos dias do mandato da governadora Ana Júlia Carepa.

Em geral, a compra de livros didáticos em montante elevado (mais de 22 milhões de reais – valor atualizado) demandaria mais de seis meses para análises por vários departamentos. Só um agir doloso explicaria tanto empenho”.

O dolo, segundo a sentença, “consiste na vontade livre e consciente de praticar o ato de não exigir licitação, tendo consciência da sua ilicitude”. Já que a secretária “tinha plenas condições de saber que a compra do livro reclamava a realização de certame licitatório adequado e mediante procedimento com observância das formalidades legais”. Esse dolo “fica bem evidente por acontecer o fato em fim de mandato (ou salve-se quem puder)”.

O juiz federal admitiu nunca ter visto “tantas irregularidades num só processo de inexigibilidade de licitação, com flagrante inobservância do princípio constitucional da legalidade, pela Administração Pública. A burocracia serve para proteger a sociedade, não para acobertar ilícitos administrativos. Portanto, estou convencido de que houve graves violações aos princípios básicos da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da igualdade, da probidade administrativa, e dos que lhes são correlatos, que regem as licitações”.

Causou-lhe “enorme estranheza a normalidade com que se procederam as condutas ilícitas, defendidas como se fosse uma prática ordinária, que não geraria ofensa ao ordenamento jurídico brasileiro. Ora, inexigência indevida de licitação é uma agressão à sociedade brasileira, e sua prática reiterada não pode ser tolerada, sob pena de por-se em xeque as contratações da Administração Pública”.

Na atual administração pública, a licitação, de regra, passou a ser a exceção. O juiz observa que o “modus faciendi” da inexigibilidade de licitação colocado sob a sua apreciação “não foge do corriqueiro desvirtuamento da lei. Primeiramente, os ‘consultores’ e ‘assessores’ que comandam os procedimentos de forma tal a favorecer os interesses escusos do grupo que domina o órgão. Quando se vê tal centralização espera-se, pelo menos, que na Secretaria de Educação estejam pessoas habilitadas para não levar adiante os procedimentos co m irregularidades escancaradas. No caso dos autos, isso não ocorreu”.

No caso, “a pressa na realização do negócio mal esconde o dolo de causar danos ao Erário. Talvez aplicando soro da verdade ou torturando os envolvidos, chegássemos a saber a quem se destinavam as vantagens do delito. Afinal, todo crime interessa a alguém. Mas, atuando o direito de forma civilizada, mas não ingênua, fácil constatar que a Secretaria de Educação do Estado do Pará conseguiu sobreviver a uma série de desmandos administrativos, hoje de trabalhosa e difícil investigação pelos órgãos de controle e pelo MPF”.

Como a ex-secretária ainda pode recorrer à instância superior, o Tribunal Regional Federal, em Brasília, espera-se que o julgamento final não demore tanto para que a verdade e a justiça, se consumando, contribua para fazer com que a regra legal imponha o procedimento padrão no uso do dinheiro do povo.

A foto deste artigo mostra a Escola de Ensino Fundamental São José, em Vila Formosa, território quilombola em Acará, tomada pelas águas e abandonada pelo poder público. (Foto: Cícero Pedrosa Neto)

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* valeqvale.wordpress.com – inteiramente dedicado à maior mineradora do país, dona de Carajás, a maior província mineral do mundo.

* amazoniahj.wordpress.com – uma enciclopédia da Amazônia contemporânea, já com centenas de verbetes, num banco de dados único, sem igual.

* cabanagem180.wordpress.com – documentos e análises sobre a maior rebelião popular da história do Brasil.

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.

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Sobre a matéria

Lúcio Flávio Pinto

Lúcio Flávio Pinto é jornalista desde 1966. Sociólogo formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo, em 1973. Editor do Jornal Pessoal, publicação alternativa que circula em Belém (PA) desde 1987. Autor de mais de 20 livros sobre a Amazônia, entre eles, Guerra Amazônica, Jornalismo na linha de tiro e Contra o Poder. Por seu trabalho em defesa da verdade e contra as injustiças sociais, recebeu em Roma, em 1997, o prêmio Colombe d’oro per La Pace. Em 2005 recebeu o prêmio anual do Comittee for Jornalists Protection (CPJ), em Nova York, pela defesa da Amazônia e dos direitos humanos. Lúcio Flávio é o único jornalista brasileiro eleito entre os 100 heróis da liberdade de imprensa, pela organização internacional Repórteres Sem Fronteiras em 2014. Acesse o novo site do jornalista aqui www.lucioflaviopinto.com.