O Grande Tuxaua também era Pajé – In Memorian

FÁTIMA GUEDES Se alguém, em Parintins, pede informações sobre a vida de Deusdite Venâncio da Costa, certamente terá muita dificuldade em chegar às intenções; porém, o mesmo não acontece se a solicitação fizer referências a Didi Faz Tudo. Quem teve […]

Por Amazônia Real Publicado em: 01/06/2015 às 15:14

FÁTIMA GUEDES

Se alguém, em Parintins, pede informações sobre a vida de Deusdite Venâncio da Costa, certamente terá muita dificuldade em chegar às intenções; porém, o mesmo não acontece se a solicitação fizer referências a Didi Faz Tudo. Quem teve o privilégio de conhecê-lo e conviver com Ele enfrenta um grande impasse: de onde vem a sabedoria que lhe fez merecer o codinome que o tornara conhecido, se apenas rabiscava o próprio nome?

Didi Faz Tudo marcara seu tempo aos 13 de junho de 1934, em Parintins/AM. Entre tantos percalços, aqui, tecera uma história de vida dedicada à arte, ao seu Boi Garantido e à solidariedade em cuidados naturais de Saúde. Do casamento com Oleia Alfaia da Costa, nasceram sete filhos, doze netos e dois bisnetos.

Segundo as informações de Claudenora Alfaia da Costa, quarta filha, natural de Parintins, o Curador sempre enfrentou grandes dificuldades financeiras, motivo que o impossibilitou de frequentar a escola, tornando-se, assim, analfabeto do saber técnico. Ainda criança, aprendera com o pai, Francisco Pinheiro da Costa (Sacaca), práticas populares de fazer saúde.

Dentro das escassas oportunidades que a vida lhe proporcionara, construiu seu movimento histórico-existencial desenvolvendo várias atividades como forma de fazer-se existir e sobreviver entre desigualdades e exclusões.

Foi habilidoso pescador. No Boi Bumbá Garantido, revelou-se artesão, desenvolvendo técnicas originais na confecção de fantasias de tuxauas, particularidade que lhe conferira o título de Grande Tuxaua do Boi Garantido.

Dentro de nossa perspectiva, podemos considerar Didi Faz Tudo, o Grande Pajé: costurava rasgaduras, benzia crianças com quebranto, consertava desmintiduras, preparava garrafadas, pomadas e ainda acompanhava partos, quando não havia assistência médica nem parteiras disponíveis.

Claudenora nos revelou que o grande sonho do pai era se especializar em fisioterapia e montar um centro para desenvolver seus trabalhos, no entanto, a dura realidade negara-lhe o sonho e o direito.

O processo de atendimento aos pacientes que o procuravam era realizado na residência do Curador. Com apoio dos filhos, adquirira alguns aparelhos como forno, vibradores, mantas, travesseiros elétricos, rolos para massagem, melhorando, assim, suas habilidades.

Durante a conversa, Claudenora nos informara sobre a falta de apoio institucional para que o pai desenvolvesse com segurança suas práticas de saúde. Com pesar, também falara sobre as restrições e os preconceitos sofridos pelo Pai em relação à realização de seu trabalho.

Assim como todos os outros curadores de Parintins, Didi Faz Tudo desenvolvia suas práticas a partir das demandas não supridas pela Saúde dita oficial, tendo por princípio o respeito, a escuta e a solidariedade. Embora contasse com o apoio constante dos filhos, não houve interesse da parte destes em adquirir seus saberes e práticas.

Em outubro de 2004, com 70 anos, o coração do Grande Pajé decidiu repousar. Didi fez tudo o que estava ao seu alcance; fora além das escassas oportunidades permitidas e deixadas pelo sistema. O sonho da formação profissional e do centro de fisioterapia ficam como débitos para o Sistema e, ao mesmo tempo, como provocação para que os outros Curadores populares que ainda estão por aqui, caminhando na invisibilidade, busquem a organização da categoria e lutem pelo o direito à participação e à inclusão nas decisões políticas, e pela efetivação da Política Nacional de Saúde Integral das Populações do Campo e da Floresta, contida na Portaria n⁰ 2.866, de dezembro de 2011, e pactuada pela Comissão de Intergestores Tripartite, Resolução n⁰ 3, do mesmo mês e ano, que orienta a operacionalização, para que, enfim, a Saúde se transforme em “direito de todos e dever do Estado”.

Tuxaua – Chefe indígena.

Sacaca – Conceituação para quem “nasce” com dons para curar. Sentido mágico da relação com o sobrenatural. Quem tem a capacidade ou “o dom” de lidar com práticas que permitem essa relação. Segundo a tradição, é a mãe que identifica o Sacaca, quando este chora em seu ventre, aos oito meses de gravidez. Os pajés são considerados Sacacas porque nasceram com esse “dom”. Dentre outras conceituações, o termo Sacaca, apresenta outra versão popular – “grande conhecedor da floresta”. Essa versão não tem cunho religioso, restringe-se à medicina popular/tradicional, baseada no conhecimento empírico.

Costurar rasgaduras – No universo da curandagem, rasgadura é o mesmo que hérnia. Há dois procedimentos de ‘costurar’ o músculo ‘rasgado’: Aplica-se resina de casca da laranja-da-terra (Citrus aurantium L) sobre a lesão, seguida de emplasto com breu (Protium heptaphyllum – Aubl. – Marchand). Repete-se a terapia por três dias e recomenda-se ao paciente chá de cidreira (Melissa officinalis L, ou capim santo (Coix lacrima-jobi L). Outros curadores, utilizam um quadradinho de tecido e agulha com linha. Concentram-se. Com orações vão costurando aquele tecido em forma de alinhavo sobre a lesão. O tratamento também dura três dias. A cada dia, se costura uma parte do tecido até concluir. É o tempo em que é retirado o frio da região afetada e a carne volta ao normal. O paciente também deve tomar o chá.

Consertar desmintiduras ou Pegar ossos – Conceito que define o tratamento de contusões e deslocamentos de ossos. A técnica é conhecida por puxação. As nomenclaturas surgem da associação entre os elementos envolvidos nas especificidades das práticas. Exemplo: o Pegador de Ossos ou Consertador de Desmintiduras serve-se de um jeito especial para ‘pegar o osso e consertá-lo’. O termo desmintidura vem de desmeter, isto é, o osso ou o músculo deslocou, saiu do lugar.

Benzer crianças com quebranto – Técnica mítica desenvolvida através de rezas específicas, gesticulada com o auxílio de um pequeno ramo de pião roxo (Jatropha gossypiifolia L.) ou arruda (Ruta graveolens L.). Geralmente, o quebranto é próprio em crianças que apresentam quadro de abatimento físico seguido de diarreia esverdeada. Segundo a crença popular, o quebranto é produzido pelo olhar de pessoas carregadas de energias negativas.

Garrafadas – São preparados de ervas medicinais com propriedades tônicas muito utilizadas na infertilidade, anemia, estados depressivos e similares.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

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