O novo livro de Milton Hatoum evoca memórias da juventude no período ditatorial

Por Elvira Eliza França Publicado em: 05/12/2017 às 18:29

“A noite da espera” foi lançado segunda-feira (4) na Banca do Largo, em Manaus. Na foto, os escritores Milton Hatoum e José Maria Pinto (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Muitas pessoas que já montaram quebra-cabeças com mais de 1000 peças, conhecem o desafio que a montagem requer: dedicação e tempo necessário para formar a imagem completa. É mais ou menos assim que o leitor poderá se sentir diante do novo romance de Milton Hatoum “A noite da espera”, primeiro volume da trilogia “O lugar mais sombrio”, publicado em 2017, pela Companhia das Letras. São milhares de palavras impressas que não se referem apenas a uma noite, mas sim a muitas noites de espera, nas quais Martim, um exilado brasileiro vivendo na França no final da década de 70 evoca memórias da adolescência e juventude. Permite que o leitor acesse dados de sua relação familiar e social, vividas no período ditatorial do país, como filho de pais separados, sofrendo carência emocional e dificuldades para a livre expressão.

Martim é a personagem principal do romance e mora em Paris. O tempo da sua narrativa é o final de 1977 até o inverno de 1979. Inicialmente, mora na Rue de la Goutte-d’Or e depois muda-se para a Rue d’Aligre, com o apoio do ex-professor de artes cênicas e companheiro de exílio Damiano Acante, com quem se reencontra em Paris. No novo endereço monta o atelier de escritor. Para sobreviver, Martim dava aulas de português, gramática e conversação (p.11, 97) e também ganhava algum dinheiro cantando com o violão em estação do metrô (p. 12-3). Anda pelas ruas e reencontra alguns amigos exilados. No atelier, manipula “cadernos, fotografias, cadernetas, folhas soltas, guardanapos com frases rabiscadas, cartas e diários de amigos” (p. 16-7). Tenta recompor a própria história de vida como exilado, fugido da repressão do regime ditatorial militar brasileiro, alimentando as saudades e os afetos com as lembranças que lhe vêm à mente. Relembra, principalmente, a relação com sua mãe, Lina, e a namorada Dinah, além dos amigos do grupo de artes cênicas, do livreiro e alguns familiares dos amigos. Nesse contexto de memórias, não consegue evitar, também, outras lembranças sofridas, como as que vivenciou na relação com o pai.

A mãe de Martim, Lina, era professora particular de francês, e na infância levava o filho à livraria Francesa aos sábados (p. 24). Em casa, lia trechos dos romances, explicando os tempos verbais, traduzindo palavras e incentivando o menino a fazer anotações em caderno. Com um mapa de Paris nas mãos, faziam passeios imaginários à capital francesa, caminhando por ruas, visitando museus e cafés (p. 97). No tempo presente do romance, Martim, usa o mesmo mapa para se mover pela cidade de Paris, como se fosse um local conhecido. Recorda experiências da adolescência e juventude no Brasil, enquanto caminha pela rua: “A quietude foi assaltada por lembranças de lugares e pessoas em tempos distintos” (p.12). É o momento em que ele se lembra dos nomes de alguns amigos do passado e do fato de, às vezes, imaginar estar vendo, nas faces das pessoas desconhecidas na rua, os rostos das pessoas amadas com quem conviveu no Brasil, especialmente Dinah, a namorada.

“Um expatriado pode esquecer seu país em vários momentos do dia e da noite, ou até por longo período. Mas o pensamento de um exilado quase nunca abandona seu lugar de origem. E não apenas por sentir saudade, mas antes por saber que o caminho tortuoso e penoso do exílio é, às vezes, um caminho sem volta” (p. 14-5).

As recordações que Martim apresenta no livro se referem a poucos contextos em Paris e a muitos contextos no Brasil. Poucos dos contextos brasileiros ocorrem em São Paulo, onde ele conviveu com mãe, pai e familiares maternos, até o final do ano de 1967, quando os pais se separaram. A maior parte dos contextos ocorre na capital federal, onde Martim vai morar com o pai no início de 1968. As recordações de Brasília são as que dão mais corpo ao romance, quando o rapaz relembra os momentos vividos no apartamento na Asa Norte, onde morou com o pai, de março de 1968 a dezembro de 1971 (p. 28-9 e 130-1). Também relembra o Centro de Ensino Médio e a relação que tinha com os amigos do grupo de artes cênicas (p. 30-1). Outro local é a Universidade de Brasília – UnB, onde fazia as refeições, sozinho ou com os amigos, no bandejão chamado de “Palácio da Fome” (p. 30, 66). Ali também frequentava a Biblioteca Central, assistia seminários e aulas e participava de alguns movimentos estudantis (p. 53). Martim também se recorda dos bares de Brasília que frequentava (p. 68, 72, 92). Na livraria Encontro, onde conquistou o primeiro amigo e livreiro Jorge Alegre, comprava e emprestava livros (p. 27, 66, 132), e também realizava outras atividades como: “ensaios de dramaturgia, palestras, projeções de filmes, exposições de pintura e até festas” (p. 27).

Martim sofreu represália do pai, devido à relação que tinha com o “livreiro comunista” e com os amigos do grupo de artes cênicas que também frequentavam a livraria. Por isso, as poucas memórias agradáveis que ele tinha do pai (p. 102, 130), não conseguiam competir com as experiências emocionais intensas e conturbadas de medo que o adolescente sentia na relação com o Rodolfo, desde que era criança. Relembrava momentos da adolescência, e as situações de agressão, vividas na infância, antes mesmo da separação dos pais (p. 130). Eram experiências que se somavam e intensificavam às experiências de agressão verbal e negligência depois da separação (p. 19, 21, 29-30, 34, 43, 48, 51, 52, 54, 67, 76, 102, 124, 126-128, 130 e outras). A vida em Brasília com o pai foi uma fase em que Martim teve que enfrentar a falta do anteparo materno na relação com um homem que não havia conhecido os próprios pais quando criança, e que começou a trabalhar desde cedo com o tio que o criou (p. 125). Formou-se engenheiro civil, muito trabalhador e dedicado às funções profissionais e também muito religioso, mas pouco atencioso à família (p.171). Foi esse um dos motivos que levou Lina, a esposa, a se apaixonar por outro homem: um artista pintor (p. 20-5), e ela abandonou o esposo, deixando-o com o filho (p. 23). Rodolfo também era um grande admirador dos militares da ditadura no país, iniciada em 1964, e que teve seus métodos repressivos mais endurecidos, após a promulgação do Ato Institucional n^o 5, justamente no ano em que ele e o filho foram morar em Brasília (p. 54-55).

Lopez e Mota (2008) explicitam melhor o que aconteceu no país depois da assinatura do Ato Institucional n^o 5, mais conhecido como AI-5, assinado pelo Presidente Arthur da Costa e Silva, em 13 de dezembro de 1968. “A partir do AI-5 toda a vida brasileira passou a ser regulada por um regime policial-militar estrito e rigoroso. O Congresso, as Assembleias estaduais e as Câmaras Municipais podiam ser dissolvidas quando o governo achasse necessário. Além disso, absoluta, a censura ‘instaurava-se’ (na passiva, à moda do discurso da época da ditadura, sem sujeitos agentes, acobertando os responsáveis…) na imprensa, nos meios de comunicação, nas escolas e universidades. Indo mais longe na escalada repressiva, houve suspensão dos direitos de muitos cidadãos, cassações de mandatos, prisões preventivas de civis por militares, demissões do serviço público e perseguições em empresas particulares, reforma de militares, confiscos, etc. Fechado o Congresso, foram cassados os mandatos de 110 deputados federais, 161 estaduais, 163 vereadores, 28 prefeitos e 4 ministros do STF. Milhares de pessoas foram presas, entre as quais Juscelino, Carlos Lacerda e o General Teixeira Lott, cujo neto seria torturado mais tarde. Darcy Ribeiro é preso, julgado em um Tribunal da Marinha e mandado para o exílio. O campus da Universidade de Brasília, mais uma vez invadido, abrigou tropas do Exército durante três meses” (p. 830-1).

Foi nessa época que a escola pública começou a ser desmantelada, com a demissão, prisão e desaparecimento de professores e fechamento de escolas. A produção e as manifestações culturais, assim como as manifestações de estudantes secundaristas, universitários, operários, trabalhadores, artistas, intelectuais, políticos etc. contra o governo eram reprimidas pelo forte aparato policial armado que também usava bombas de gás e porretes para perseguir, espancar, prender e até matar as pessoas.

As notícias nos meios de comunicação só eram publicadas após a aprovação dos censores que cortavam e mudavam palavras, retiravam e proibiam imagens, impedindo a população de saber a verdade sobre os reais fatos que ocorriam no país. Os censores alteravam as cenas das peças teatrais, as letras das músicas e as reportagens dos jornais, artigos de revistas, livros, filmes, televisão etc. que passavam obrigatoriamente pelo seu crivo para serem aprovados. Tudo o que tivesse característica de contestação ou que revelasse contrariedade em relação aos atos arbitrários dos militares, ou ainda que disseminassem ideias ligadas ao socialismo e comunismo era reprimido. Os locais de produção dos materiais contra o governo eram invadidos, as produções confiscadas e destruídas, e os responsáveis presos. A morte de pessoas na prisão muitas vezes eram mostradas como sendo atos suicidas, enquanto que outros continuavam desaparecidos. Além dos protestos nos comícios, passeatas, panfletagem e outras manifestações dos estudantes, também havia no país grupos armados que reagiam contra o poder instituído dos militares, fazendo assaltos em bancos, sequestrando diplomatas e autoridades para serem usados na troca com os prisioneiros políticos (Lopez, Mota, 2008).

O pai de Martim rejeitava toda e qualquer pessoa da oposição aos militares, a quem chamava de comunista e sentia regozijo pelo que os militares estavam fazendo no país: colecionava revistas, jornais e fotografias do marechal Costa e Silva que para ele era um verdadeiro herói (p. 54-5). Reclamava constantemente da cidade e dizia que até mesmo os arquitetos que haviam projetado a capital brasileira, com espaço para moradia de pessoas mais modestas, eram comunistas (p. 29). Colocava o filho em estado de alerta permanente, dizendo que toda e qualquer pessoa ali poderia traí-lo, tal como Lina, a ex-esposa, havia traído ele e o filho (p. 34).

A influência materna na vida de Martim contribuiu com o foco afetivo maternal que ele manteve, mesmo distante da mãe, que foi alimentado pelo gosto que ela desenvolveu nele pela leitura de livros. Foi justamente isso que deu grande suporte emocional, intelectual e social ao adolescente e jovem quando foi viver em Brasília. Martim continuou aprendendo com os livros sobre o que era viver e se relacionar, o que era amar, ser traído e continuar vivendo, independentemente das adversidades da vida. É justamente esse aprendizado que caracteriza o conteúdo do livro, contando sobre essa fase difícil da vida de Martim, que vivia geograficamente longe da mãe e afetivamente longe do pai, suprindo sua carência afetiva na relação com os autores dos livros que lia e nas conversas com os amigos e alguns de seus familiares. Era um rapaz tímido e temeroso de participar dos movimentos estudantis, devido às ameaças que o pai lhe havia feito por várias vezes, depois que o adolescente, navegando no bote do pai no lago Paranoá, relaxou, dormiu, foi levado pelo vento para próximo do Palácio da Alvorada e foi levado pelos soldados: passou uma noite na delegacia para ser interrogado (p. 42-6, 48, 51).

O escritor amazonense Milton Hatoum durante o lançamento de “A noite da espera”, em Manaus (Foto Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O romance apresenta, assim, as peças do quebra-cabeça existencial de Martim e, juntamente com o leitor, ele vai formando a imagem final que se “incompleta”, (isso mesmo) com a leitura das 236 páginas do livro. Isso quer dizer que, ao término do romance fica aquela sensação de “quero mais”, que caracteriza o primeiro volume de uma trilogia. O romance deixa no final motivação para a continuidade da leitura, com a pergunta: quando terei acesso aos próximos volumes para completar esse jogo de memórias de Martim?

“A noite de espera” é um livro que pode ajudar os brasileiros a compor as peças da própria vida, principalmente, os que viveram e foram estudantes durante o período da ditadura militar. Para os que ainda não sabem o que isso representa, a leitura pode servir como reflexão para prevenir o retrocesso do país a essa situação política, considerando o fato de haver muitas pessoas defendendo a volta dos militares ao poder. Os atos de violência que Martim relembra como estudante podem ajudar a compor uma parte importante do quebra-cabeça do país, ajudando a compreender o motivo das tensões e temores que muitos intelectuais, pesquisadores e artistas sentem, nos dias atuais, em relação a esse tipo de proposta.

Martim relata o que sentiu durante um cerco policial aos estudantes, durante o protesto contra o assassinato de um deles em outro estado. Foi nesse dia que duas pessoas saíram de um carro que vinha na contramão e começaram a agredir um casal que vinha em outro carro: “Algemou-a e enganchou no pescoço dela o polegar e o indicador feito uma forquilha. […] ele se defendia dos socos e pontapés; a moça magra foi arrastada até o clarão, depois o corpo amolecido e ensanguentado…” (p. 40-1). A situação de insegurança e medo fez Martim vomitar. Havia cercos policiais que impediam a mobilidade das pessoas para o acesso à escola e à universidade (p. 47). Alunos que participavam dos movimentos estudantis eram expulsos da escola, universitários eram presos, e o barracão da Federação dos Estudantes saqueado, sendo que alguns estudantes também foram mortos (p. 48). Quando o campus da UnB “foi invadido e ocupado, professores, alunos e deputados da oposição foram espancados e presos, os laboratórios dos cursos de medicina e biologia, destruídos, os animais na mesa de cirurgia agonizaram até a morte, um estudante de engenharia foi baleado na testa… As incursões da polícia no campus continuaram até o fim do semestre” (p. 54).

Tudo era controlado pela polícia, até mesmo a compra de mimeógrafo, usado para reproduzir impressos (p. 85). Os bares viviam cheios de “dedos-duros”, que observavam os movimentos estudantis e encaminhavam a lista com os nomes dos líderes para a polícia (p. 92, 122). Eles também se faziam presentes nas salas de aula para observar os professores para denunciar aqueles que se opunham aos militares, deixando alunos e professores muito tensos e com medo de expressar o que pensavam (p. 123). A polícia entrava nos ambientes e inibia as atividades dos estudantes com bombas de gás. O reitor da universidade retaliava os estudantes e o vice-reitor queria “excluir disciplinas de artes e filosofia do curso de arquitetura”, além de ameaçar professores de serem demitidos (p. 180-2). As aulas dos seminários abertos, com muitos debates, estavam ameaçadas, havendo demissão de professores que dialogavam com os alunos, para serem substituídos por professores autoritários e indiferentes aos questionamentos dos estudantes: “as múmias da academia dos mortos-vivos”, (p. 181-3). Eles também não davam sequência aos conteúdos das disciplinas e não tinham qualquer compromisso com as dúvidas dos alunos.

A participação de Martim nos movimentos estudantis era tímida e cheia de medos, e por isso ele preferia se recolher nos livros. Recebia apoio do livreiro lhe emprestava livros e também o empregou como estagiário, pagando-lhe remuneração mensal e comissão nas vendas (p. 66, 152). O rapaz gostava de reler as cartas da mãe e amenizava as saudades que sentia dela quando se lembrava de Dinah, a namorada ativista do movimento estudantil (p. 44, 69), com quem teve suas primeiras experiências sexuais (p. 65, 73, 77, 81).

Seu pai era contra o trabalho do filho com um “livreiro comunista” e propôs dar-lhe uma mesada maior para que Martim deixasse o trabalho na livraria. Diante da negativa, o homem se enraiveceu e, aos poucos, foi embora de casa, deixando Martim sem local para morar (p. 127-9). Martim recebeu apoio do amigo amazonense Lélio Antunes (p. 45), membro do grupo de artes cênicas, conhecido como Nortista, que levou o amigo para morar em seu quarto, compartilhando suas coisas com ele (p. 132, 139). O envolvimento do amigo em atividades ilícitas fez com que Martim também viesse a ter problemas com a polícia (p. 175, 178, 190). Mas o motivo maior para a perseguição policial estava no fato de ambos estarem envolvidos na produção e publicação da revista Tribo, com seus artigos, fotos e desenhos ousados para o momento político do país (p. 73, 104, 109, 111, 144), e a apresentação da peça de Damiano Acante Prometeu Acorrentado, que não respeitou os cortes nem as modificações propostos pela censura (p. 111-120).

O escritor amazonense Milton Hatoum no lançamento do livro pela Banca do Largo,em Manaus (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

O livro de Hatoum está dividido em 25 capítulos numerados e com subtítulos negritados, nos quais constam o nome do local – cidade, rua, estabelecimento comercial ou residência – e a seguir o ano dos acontecimentos. No caso do contexto ser o mesmo para fatos ocorridos em diferentes dias, o autor altera a data, às vezes dando a precisão sobre o dia, o mês e o ano e até a hora em que tudo ocorreu. Esses dados merecem atenção do leitor, para que tenha a dimensão dos diferentes locais em que as evocações da memória de Martim ocorreram: os contextos em que ele evoca as experiências vividas no passado, e que são oferecidas ao leitor como peças do seu quebra-cabeça existencial.

É importante ressaltar que o tempo mental do romance é randômico, isto é, alternado. Isto quer dizer que uma informação pode ser iniciada numa página, e ser complementada em outra página distante, ou até mesmo em outro capítulo. O intervalo entre o início e fim da informação, quando ela se completa, pode confundir o leitor devido aos fragmentos de diferentes informações, que são oferecidas ao mesmo tempo e num mesmo capítulo. Por isso, o leitor precisa ficar atento, para manter as “pastas dos arquivos mentais” abertas, podendo arquivar as informações atualizadas à medida que os dados sobre um ambiente, fato e pessoa são oferecidos. É justamente isso que desperta a atenção constantemente e motiva a leitura, nessa busca constante das peças do quebra-cabeça, que devem estar combinadas para formar a imagem mental precisa sobre a vida de Martim, de seus familiares, amigos e também do país em que viveu na época da ditadura militar.

A compreensão sobre o momento político do país no tempo da adolescência e juventude de Martim fica melhor formada durante os relatos referentes aos movimentos estudantis da época, e também quando ele se recorda de duas personagens: a primeira é o embaixador Faisão, pai do amigo Fabius; e a outra é a amazonense Áurea, apelidada de Baronesa, tia da amiga Vana. O embaixador era um homem muito inteligente, culto, e com habilidades musicais. Sentia-se traído, ameaçado e acuado pelos militares, sem poder exercer a atividade profissional como gostaria, o que o enlouquecia (p. 158, 209). Martim foi morar na casa dele numa fase difícil da vida em que ficou sem ter onde morar, e com medo da perseguição policial. A residência era referência familiar para o jovem, devido à relação afetiva e intelectual que tinha com o embaixador que apreciava o interesse de Martim pela leitura e ele lhe doava e emprestava livros para ler e traduzir (p. 87-9). As conversas intelectuais e políticas eram sempre regadas com bom vinho importado (p. 89) e cachaça mineira (p. 156-7), ocasiões em que o embaixador aconselhava Martim a ir embora de Brasília, devido à situação vulnerável em que se encontrava, sem a proteção familiar nem de pessoas influentes (p. 156-9). O homem apoiava as atividades artísticas e culturais do filho e amigos e até alugou uma sala na W-3, a saleta da Super Confort (p. 109), para que eles se reunissem para discutir e produzir a revista Tribo, e os roteiros dos filmes que Fabius pretendia fazer com a Super-8 (p.193). A saleta também foi usada como dormitório pelo Nortista, amigo mais próximo de Martim (p. 191). O embaixador não tinha breque na língua e falava o que pensava dos militares (p. 201), especialmente quando bebia; e também chamava de patife ao senador de Alagoas e de puta à sua esposa: ambos pais de Ângela, a namorada do filho (p. 89). Seus atos constrangiam a esposa que tentava amenizar a situação falando algo ou então se retirando do local.

A outra personagem curiosa é a amazonense Áurea, conhecida como Baronesa, tia de Vana, amiga de Martim (p. 139-147). A mulher tinha amizade com políticos do governo e da oposição, assim como com militares. Recebia o apoio do Coronel Zanda (p. 142), para trazer da Zona Franca de Manaus produtos regionais e importados, enviados pelo sobrinho. Ela deliciava o paladar dos amigos oferecendo almoços aos domingos com especialidades amazônicas. As experiências no apartamento da Baronesa foram comentadas por Martim em carta enviada à mãe relatando: “É um entra e sai sem fim, mãe”, referindo-se aos homens que iam para lá: deputados de vários estados; políticos do governo e da oposição, assim como com militares e comandantes de Brasília e do Amazonas (p. 151), e de diferentes estados. Eles iam para lá também para comprar outro produto: maconha, que a mulher vendia por meio do estudante Nortista, cuja mãe produzia doce de cupuaçu que era enviado de Manaus nas latas de leite em pó importado, dentro das quais era feito o transporte e tráfico da droga (p. 144). Nas palavras de Martim: “É uma festa de sotaques, com bate-bocas e gargalhadas, uma animação animalesca e vulgar, e poucos se envergonham disso” (p. 151). Foi a Baronesa que montou o plano de fuga de Martim de Brasília para São Paulo, depois da invasão policial na sede da Tribo e a prisão de seus amigos (p. 231-33).

Uma personagem escondida no romance é a do homem com quem Lina, a mãe de Martim, foi viver: um artista e pintor. Martim o viu apenas uma vez (p. 24), mas nas muitas vezes em que se lembrava da mãe, imaginava o homem, comparando-o com outras personagens (p. 34, 68-9, 90). Sempre que lembrado, o homem aparece como alguém que levou Lina embora: a fonte do afeto maternal que ele tenta resgatar com as lembranças. Devido a esse relacionamento, Martim ficou praticamente “desfamiliado” em Brasília: “era raro meu pai falar diretamente comigo: as palavras dirigidas a mim eram ditas à minha mãe, e agora não havia espelho nem anteparo às palavras paternas” (p. 21). Por causa do pintor, Rodolfo, o pai de Martim, chamava a mãe de vadia, por tê-lo abandonado e dificultava a relação de Martim com ela, devido ao controle que fazia dos telefonemas (p. 33, 60) e também era vigilante em relação às cartas que ele recebia. Martim cobrava da mãe um reencontro, porque sentia saudades do contato direto e do carinho dela. A despedida e a promessa do reencontro breve estavam presentes em sua memória desde o último abraço de despedida: “Escutei uma voz meiga e um choro sufocado, depois senti o corpo da minha mãe: o abraço mais demorado e triste da minha vida de dezesseis anos” (p. 25).

É a riqueza de detalhes que às vezes pode fazer o leitor se perder para reter tantos dados na memória, porque eles não são transmitidos de modo sequenciado e nem sempre integrados. Na verdade, Hatoum oferece flashes das situações e obriga o leitor a manter a atenção para reter muitas informações na memória enquanto lê o romance, para formar o quadro específico de cada personagem, nos diferentes contextos, com situações vividas em diferentes momentos da vida. Isso requer que o leitor crie “várias pastas” no arquivo mental, que ficam abertas durante a leitura do romance, para que possam ser atualizadas a cada momento. Por isso, para um estudo preciso da obra, não basta apenas uma leitura: é preciso aprofundamento e pesquisa nos detalhes, para que não sejam confundidas as peças do quebra-cabeça, em termos dos papeis de cada personagem, dos ambientes e dos comportamentos, além dos dados secundários de outras personagens que também aparecem.

O enredo ocorre no tempo presente de Martim em Paris, mas seu tempo mental é da infância, adolescência e juventude no Brasil. O romance segue o fluxo natural da mente, que é randômico e desordenado, alternando e interrompendo as memórias, sem se preocupar com a sequência dos fatos no tempo, nem com a lógica entre eles na mente do leitor. É justamente isso que torna motivadora a leitura, devido às surpresas que cada peça desse quebra-cabeça literário é capaz de oferecer ao leitor, no decorrer dos capítulos do livro. Assim, muitas vezes a imagem mental que se faz num determinado momento, poderá ser desconstruída para ser reconstruída quando do surgimento de uma nova informação. Por isso, é importante enfatizar que é justamente a intensidade emocional do momento que Martim vive enquanto escreve, que dá o direcionamento da regra para a escolha das peças do quebra-cabeça do jogo literário e para a formação das imagens sobre o conteúdo do livro. Isso pode dificultar, num primeiro momento, o ato de compor uma imagem precisa dos fatos de imediato. Mas, ao mesmo tempo, pode fazer com que a leitura seja extremamente excitante e estimulante, à medida que ocorre o envolvimento na estratégia de buscar as peças ausentes para compreender a mensagem geral que o autor quer transmitir.

O lançamento do livro foi promovido pela Banca do Largo, localizada no Largo São Sebastião, centro de Manaus. (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Notas

HATOUM, Milton. A noite da espera. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

Referência: LOPEZ, Adriana; MOTA, Carlos Guilherme. História do Brasil: uma interpretação. 2ª ed. São Paulo: Senac, 2008.

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educação: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Elvira Eliza França

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS). Criou a técnica terapêutica com as expressões das emoções denominada “Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos - CAMM.”