“O Olho da Rua” mostra o desafio de viver num país chamado Brasil

Por Elvira Eliza França Publicado em: 16/10/2017 às 19:48

Eliane Brum apresenta riqueza de conteúdos nas reportagens e desvenda o processo de escrever (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Somos bombardeados cotidianamente por uma grande quantidade de informações, muitas delas notícias sobre diferentes acontecimentos, que são divulgadas pelos meios de comunicação. As notícias podem ser apresentadas continuamente, durante dias, dependendo da necessidade de atualização dos dados, até a conclusão do fato. Contudo, também podem ficar ausentes por um tempo para serem retomadas depois, até cumprir com o objetivo de conclusão.

As reportagens, por outro lado, são apresentadas de modo diferente, pois o repórter precisa de mais tempo para coletar as informações sobre os fatos, apresentando-os de modo mais profundo e com mais detalhamento, utilizando-se, portanto, de uma quantidade maior de palavras. É um processo de comunicação que requer investigação minuciosa, mais tempo para pesquisa e uma percepção do fenômeno descrito a partir do ponto de vista de diferentes interlocutores.

Assim, ao lermos uma reportagem, podemos ter acesso a muitas vozes e opiniões de pessoas que foram ouvidas pelo repórter para poder produzir seu texto. Isso nos dá uma oportunidade de conhecer lugares, pessoas e histórias de vida que estariam invisíveis e inacessíveis a nós, mas que passam a se tornar visíveis por meio da reportagem.

Além disso, devido à forma detalhada como conhecemos alguns aspectos do contexto da vida das pessoas, descritas na reportagem, passamos a ser empáticos a elas e solidários com seus problemas. As palavras e imagens de uma reportagem podem modificar nossas emoções, interferindo nos nossos afetos, quando o outro do texto passa a fazer parte de nós mesmos, deixando de ser um estranho em nossa vida, para ser alguém como nós.

É justamente isso que acontece durante a leitura de “O Olho da Rua: uma repórter em busca da literatura da vida real”, de autoria de Eliane Brum, que foi lançado no dia 6 de outubro na Banca do Largo, em Manaus. Trata-se de uma coletânea de reportagens, produzidas em vários lugares do Brasil para a revista “Época”, entre os anos de 2000 e 2008, agora publicadas na segunda edição – revisada e ampliada. Ela apresenta dez reportagens sobre diferentes temas e, ao término delas, faz comentários sobre o processo da organização das viagens, os lugares e pessoas com quem conviveu mais diretamente, e dá outras informações sobre a elaboração dos textos, desvelando um pouco mais sobre o processo de escrever.

Lançamento do livro da jornalista Eliane Brum na Banca do Largo São Sebastião (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Com isso, possibilita ao leitor não somente o conhecimento de diferentes aspectos da realidade brasileira e de pessoas, mas também dá uma lição sobre estratégias para elaboração de textos de reportagem, fazendo alertas acerca de possíveis erros que podem ser evitados pelo repórter. O livro também contém fotos tiradas por parceiros de reportagem de Brum, sendo que no final há dois destaques: um a Lilo Clareto, que fez quase a metade das reportagens do livro; e outro para o fotógrafo Marcelo Min, que a acompanhou no trabalho sobre a morte, e que faleceu em 2015.

Para se ter uma ideia maior do conteúdo de “O Olho da Rua”, segue um breve resumo das dez reportagens, sendo que três delas estão compostas por mais de um texto sobre o tema. A primeira é “A floresta das parteiras”, que aborda a vida de mulheres que atuam no útero da floresta, realizando procedimentos de parto leigo. Eliane Brum conta sobre seu contexto, crenças e mistérios transmitidos de gerações para gerações, enquanto ajudam as mulheres a trazerem seus filhos ao mundo. No final, ela compara as lições do parto das crianças com o parto das palavras que são ditas ao repórter, e alerta sobre a importância de saber ouvir e esperar o devido tempo de quem fala, para que o parto das palavras não se transforme em uma cesariana.

No segundo texto, “A guerra do começo do mundo”, são abordados conflitos entre indígenas e brancos em Roraima na disputa pelo território Raposa/Serra do Sol, rico em minério e com solo favorável para o plantio de arroz. Brum relata a história de migrantes pioneiros que se apossaram das terras indígenas e o papel das organizações religiosas e não-governamentais, assim como do Exército na relação de conflito. Relata sobre a preparação para a viagem e autorização para entrar na terra indígena, onde viveu por um mês, viajando e entrando em contato com diferentes grupos para entender melhor a forma diferenciada de pensar dos interlocutores. Mas mesmo procurando apresentar as razões das posições diferentes na reportagem, posteriormente recebeu cartas expressando desaprovação de algumas pessoas, porque naquele contexto era impossível manter a unanimidade entre as oposições.

Noite de autógrafos de Eliane Brum na Banca do Largo, ao lado do Teatro Amazonas (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

A terceira reportagem, “A casa de velhos”, é sobre a vida dos internos na Casa São Luiz para Velhice, no bairro do Caju, no Rio de Janeiro, onde a repórter ficou hospedada por uma semana para conhecer a rotina e entrevistar os internos. Parte deles vive em quartos privados quando têm condições de pagar, enquanto que outros vivem em quartos coletivos por serem mais pobres. Brum relata o histórico da criação da instituição e detalha a forma de viver e de pensar dos internos, abordando as limitações físicas, carências afetivas, dependência de cuidados, dificuldades alimentares, limitação ao lazer, memórias da juventude, desejos sexuais etc. No final, comenta sobre o impacto que uma reportagem pode causar na vida de quem é entrevistado, lembrando sobre o cuidado que o repórter deve ter para não violar certas intimidades das pessoas, que podem se sentir traídas e expostas quando suas confidências são reveladas na reportagem.

Em “O homem estatística”, a quarta reportagem, Brum aborda as questões do desemprego e da pobreza vividas por um homem inscrito na Prefeitura de São Paulo para receber benefícios sociais. Relata as dificuldades sofridas para ele garantir a sobrevivência da família, depois da perda de pequenas conquistas na qualidade de vida, com a falta do salário mensal. No final, comenta como a reportagem proporcionou entusiasmo e autoestima ao entrevistado, que fez questão de manter a repórter atualizada nos fatos de sua vida, mesmo após a publicação da reportagem.

O quinto texto, “O povo do meio”, tem uma abordagem mais coletiva sobre as constantes ameaças de morte sofridas pela população em terras do Pará, entre os rios Xingu e Iriri, devido à ação de grileiros interessados na madeira e no ouro dessas terras. Eles ameaçam a vida das pessoas que vivem do extrativismo e que protegem a floresta da destruição. Brum também conta sobre os desafios pelos quais passou na floresta enquanto estava realizando a reportagem.

Em “Expectativa de vida: 20 anos”, a sexta reportagem, Brum apresenta três textos, sendo o primeiro sobre a vida de um rapaz sobrevivente de uma chacina, depois que um documentário sobre o tráfico, produzido por um grupo da comunidade, foi apresentado num programa de televisão de grande audiência num domingo à noite. O texto evidencia as pressões que a população sofre na favela, diante da escolha que algumas pessoas fazem para ganhar dinheiro e prestígio, envolvendo-se com o tráfico de drogas. Também apresenta o relato sobre o sofrimento das mães, vítimas da violência doméstica e com filhos que se envolveram com o tráfico e morreram precocemente. A autora fornece dados da Unesco sobre violência no país e complementa a reportagem com depoimentos das mães. No final dá mais detalhes sobre as estratégias para produção dos textos para que o repórter seja realmente um tradutor da realidade.

Na sétima reportagem, “Coração de ouro”, Eliane Brum aborda a situação do garimpo de Eldorado do Juma, em Apuí, no sul do Amazonas. Destaca as regras de como funciona a exploração do minério, explicitando as relações de poder estabelecidas entre quem tem a posse para exploração, o “patrão do garimpo”, com os que extraem o ouro da terra, os garimpeiros. Nessa reportagem conta sobre a vida de aventureiros que deixaram tudo em busca do ouro, e como gastam o que ganham, com alimentos, transporte, prostituição, jogo etc. No que diz respeito aos comentários sobre esse trabalho, Brum aborda o desafio do repórter para buscar e encontrar as pessoas certas para entrevistar, para cumprir com a verdade no ato de escrever uma reportagem.

Em “Um país chamado Brasilândia”, a oitava reportagem do livro “O Olho da Rua”, Brum aborda sobre a vida numa favela de São Paulo, na qual também passou a viver por um determinado período para conhecer a forma de pensar e de viver da população. Comenta sobre a teia de relações perigosas nesse contexto, ao mesmo tempo em que funciona uma rede de solidariedade entre os moradores. Destaca a importância dos animais considerados membros da família, atuando como amenizadores das preocupações com os problemas de sobrevivência, desemprego, contravenção etc.

Lançamento do livro da jornalista da Eliane Brum (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

A seguir, em “O inimigo sou eu”, a nona reportagem, Brum enfoca a experiência pessoal de participação num retiro espiritual no Rio de Janeiro, onde passou dez dias, cumprindo um código rígido de disciplina de silêncio, sentada com a coluna ereta, observando a respiração, as sensações corporais, os pensamentos e focando a mente no tempo presente. Essa é a única reportagem em que escreve na primeira pessoa, comentando sobre os desafios que teve que enfrentar consigo mesma para cumprir com o programa do retiro. Relata as descobertas que fez sobre si mesma, enquanto relutava para permanecer no local e cumprir com todas as etapas até concluir seu trabalho de coleta para a reportagem.

No décimo texto, “A vida até o fim”, Brum vai para a Enfermaria de Cuidados Paliativos do Hospital do Servidor Público de São Paulo para registrar as experiências de pessoas que estão no limite entre a vida e a morte. Apresenta o histórico dos cuidados paliativos nos hospitais, e de como ele é realizado pelos profissionais de saúde, num processo de escuta, que também envolve o cuidado com a família. Assim, a pessoa que está em sofrimento no final da vida recebe o devido preparo para desligar-se do corpo, sentindo amor e fraternidade de quem a cuida. Com uma visão crítica sobre a forma como a sociedade rejeita falar sobre a morte, Brum menciona vários livros sobre o tema, mas evidencia a importância da história viva de uma paciente de câncer, a quem acompanhou por 115 dias, mostrando a riqueza de sua vida e a importância de ter alguém para quem contar sua história. Comenta sobre o desafio de escrever sobre a vida de uma pessoa que não iria ler a reportagem, e de como tal experiência mudou sua vida como repórter, devido à relação mais íntima que passou a ter com alguém que queria continuar vivendo.

No posfácio, “Os limites da palavra”, Brum ainda relata sobre camponeses bolivianos de Cochabamba, enfrentando a resistência dos barbeiros, os insetos-vetores da doença do Mal de Chagas. Brum ainda fala sobre a experiência própria vivenciada na infância com a escrita, e dá mais detalhes sobre as estratégias para produção das reportagens. Complementa com a triste realidade das pessoas que haviam sido expulsas do território de uma ilha no rio Xingu, no Pará, que passou a pertencer à Usina Hidrelétrica de Belo Monte. Relata sobre o sofrimento de quem se viu despojado das referências da terra, perdendo parte da história de sua vida, que se transformou em líquido.

O que se destaca na recomendação para a leitura do livro de Brum não é somente a riqueza dos conteúdos que ela apresenta nas reportagens realizadas, mas principalmente a forma como ela escreve. Dona de um estilo próprio e criativo, insere o leitor em cada tema, fazendo a devida contextualização geográfica, histórica, social, cultural e econômica, com uma ampla visão dos lugares e das pessoas que participaram da construção dos textos como entrevistados. Seleciona algumas pessoas que são destacadas na reportagem, mas que também falam pelo coletivo do grupo social em que vivem. Brum utiliza ricas e poéticas metáforas que ajudam o leitor a conhecer pessoas anônimas, que passam a se tornar íntimas no momento da leitura.

Com uma visão humana ao falar sobre as pessoas, com seus dilemas, problemas, desafios e esperanças, Eliane Brum fornece detalhes ricos sobre o contexto e o momento histórico em que a pessoa vive, fazendo comparações curiosas e criativas, num processo de articular presente, passado e futuro. Além de proporcionar ao leitor um clima emocional de se sentir presente no contexto, ao ler os fatos, possibilita com a leitura a vivência da intensidade das experiências em diferentes ambientes como floresta, favela, garimpo, cidade, hospital e outros. Quando aborda a questão da morte, toca mais profundamente o coração do leitor, porque apresenta a realidade de quem está diante da morte, falando sobre a vida.

É uma obra que recomendo e posso dizer que, depois de iniciada a leitura, fica difícil interrompê-la, pois a motivação que a autora cria com as palavras é intensa. Então, ao término, fica a saudade e a vontade de procurar outros textos que Brum escreveu, porque mesmo falando sobre realidades tão problemáticas e duras, o gosto que ela dá às palavras delicia a mente de quem gosta de ler sobre o que é verdadeiro e real no desafio de viver num país chamado Brasil.

Lançamento do livro “O Olho da Rua” de Eliane Brum (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Onde encontrar:

O Olho da Rua: uma repórter em busca da literatura da vida real.

Arquipélago Editorial, 2017.

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educação: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS).

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Elvira Eliza França

Elvira Eliza França é mestre em Educação pela UNICAMP, especialista em Neurociência e Comportamento pela PUC (RS), especialista em Programação Neurolinguística pelo NLP Comprehensive dos EUA e graduada em Comunicação Social pela Universidade de Mogi das Cruzes (SP). É autora dos livros: “Crenças que promovem a saúde: mapas da intuição e da linguagem de curas não-convencionais em Manaus, Amazonas” editado pela Valer e Secretaria de Cultura e Turismo do Amazonas (2002); “Corporeidade, linguagem e consciência: escrita para a transformação interior” (1995), “Dimensões interiores da escrita: a voz da criança interior” (1993), “Do silêncio à palavra: uma proposta para o ensino da filosofia da educação” (1988) e “Filosofia da educacão: posse da palavra” (1984), publicados pela Editora Unijuí (RS). Criou a técnica terapêutica com as expressões das emoções denominada “Caretas Articuladas com Movimentos das Mãos - CAMM.”