Philip M. Fearnside

O valor intrínseco da biodiversidade amazônica: 2 – Mudar a argumentação para conservação

Por Philip Martin Fearnside Publicado em: 08/07/2021 às 19:36

Impedir que a biodiversidade amazônica seja destruída desperta um enorme interesse em pessoas de outras partes do planeta, como Europa e América do Norte — e no Rio de Janeiro e São Paulo — embora muito poucas dessas pessoas conheçam a floresta amazônica em primeira mão. Assim como as pessoas podem ser altamente motivadas a proteger a icônica vida selvagem africana, como elefantes e gorilas, mesmo que nunca vejam um na natureza, elas podem ser apaixonadas pela floresta amazônica como um ecossistema, mesmo que não possam nomear uma única espécie vive aqui.

Manter os estoques de carbono na vegetação e no solo na floresta amazônica do Brasil é fundamental para conter o aquecimento global [1, 2]. O discurso sobre por que a floresta amazônica deve ser mantida se concentra em evitar o aquecimento global, mas a mesma paixão não surge para manter intactos outros estoques de carbono, como o petróleo sob as areias dos desertos árabes. Isso reflete o fato de que há mais coisas em jogo na Amazônia do que carbono.

O valor intrínseco da biodiversidade pode ser traduzido em ações para proteger os ecossistemas amazônicos de várias maneiras. O Brasil proíbe causar deliberadamente a extinção de uma espécie, o que resulta em avaliações de impacto ambiental para projetos de desenvolvimento que vão longe para avaliar os impactos potenciais sobre as espécies ameaçadas. No entanto, isso não é necessariamente eficaz na prevenção de extinções.

A barragem de Belo Monte foi construída apesar de saber que ameaçava várias espécies de peixes encontrados apenas na área do reservatório e no trecho do rio de 130 km de onde 80% do fluxo de água foram desviados [3]. Uma dessas espécies é o acarí zebra (Hypancistrus zebra), um famoso peixe ornamental que deverá ser extinto na natureza [4]. Ao contrário das outras espécies ameaçadas por Belo Monte, o acarí zebra sobreviverá em aquários ao redor do mundo.

A biodiversidade pode motivar os países amazônicos a tomar medidas como a restrição do desmatamento e a criação de áreas protegidas. O SNUC (Sistema Nacional de Unidades de Conservação) do Brasil é um reflexo disso. Outro exemplo é oferecido por algumas decisões do Brasil sobre o que exportar. Antes de 1965, o Brasil exportava peles de onça, mas suspendeu esse comércio, embora o mundo estivesse mais do que disposto a comprar essa mercadoria.

Pode haver interação entre visões nacionais e internacionais sobre tais decisões, conforme ilustrado pela exportação de mogno do Brasil (Swietenia spp.). Em 1996, o Brasil instituiu uma moratória à exportação desta espécie de madeira mais valiosa da Amazônia (e a moratória foi renovada em 1998, 2000, 2002 e 2003, embora com inserção de algumas lacunas). Na reunião de 1997 da Convenção sobre o Comércio Internacional de Espécies Ameaçadas (CITES), o Brasil se recusou a aceitar qualquer listagem de mogno como ameaçado de extinção [5], mas em 1998 o Brasil listou suas populações de mogno no Anexo III da CITES, que tem o nível mais baixo restrição e, em 2002, acrescentaria o mogno ao mais restritivo Anexo II [6]. Entre 1971 e 2001, as exportações de mogno do Brasil totalizaram US $ 3,9 bilhões [7]. A moratória brasileira sobre o mogno começou antes de quaisquer restrições da CITES sobre esta espécie, e a participação dos países exportadores e importadores na CITES parece ser amplamente motivada pela preocupação com a extinção de espécies, em vez de maximizar os retornos monetários.

Os países são livres para decidir o que exportarão e o que importarão. Por exemplo, se um país africano deseja exportar marfim de presas de elefante, isso não significa que outros países sejam obrigados a importá-lo. O Brasil não deve se surpreender se os países colocarem restrições às importações de commodities brasileiras que impulsionam o desmatamento na Amazônia. Os países podem suspender totalmente as importações de commodities amazônicas ou condicionar suas importações à demonstração de que as cadeias de abastecimento não provocam o desmatamento direta ou indiretamente. Evitar o impacto “indireto” no desmatamento é essencial, por exemplo, no caso da soja brasileira plantada em antigas pastagens, o que induz a migração dos fazendeiros que venderam as suas terras, se deslocando para áreas de floresta tropical [8-10].

A preocupação com a biodiversidade amazônica pode motivar países em outras partes do mundo a contribuir financeiramente para os esforços dos governos dos países amazônicos para conter o desmatamento, e essa preocupação pode motivar empresas e cidadãos privados a contribuir para a manutenção da floresta amazônica, tanto financeiramente (por meio de organizações não governamentais) e por meio de seu poder como consumidores. Em suma, o valor intrínseco da biodiversidade amazônica é a chave para manter os ecossistemas amazônicos com todas as suas funções ambientais.

A destruição ambiental na Amazônia atingiu níveis críticos e tanto as forças subjacentes por trás dessa destruição quanto os resultados visíveis, como o desmatamento, estão aumentando rapidamente. Os argumentos usados atualmente para convencer os formuladores de políticas a alterar esse curso são claramente insuficientes. O valor intrínseco da biodiversidade da Amazônia precisa ser reconhecido explicitamente, tanto por aqueles envolvidos diretamente nos debates políticos da Amazônia como pelos muitos outros atores cuja influência afeta as decisões e ações na Amazônia. [11]

A imagem que abre este artigo mostra a chuva acima do rio Mucujaí, na Terra Indígena Yanomami (Foto: Bruno Kelly/Amazônia Real)

Notas

[1] Barros, H.S. & Fearnside, P.M. 2019. Soil carbon is decreasing under “undisturbed” Amazonian forest. Soil Science Society of America Journal 83: 1779-1785.

[2] Fearnside, P.M. 2018. Brazil’s Amazonian forest carbon: The key to Southern Amazonia’s significance for global climate. Regional Environmental Change 18: 47-61.

[3] Fitzgerald. D.B., Perez, M.H.S., Sousa, L.M., Gonçalves, A.P., Py-Daniel, L.R., Lujan, N.K., Zuanon, J., Winemiller, K.O. & Lundberg, J.G. 2018. Diversity and community structure of rapids-dwelling fishes of the Xingu River: Implications for conservation amid large-scale hydroelectric development. Biological Conservation 222: 104-112.

[4] Gonçalves, A.P. 2011. Ecologia e Etnoecologia de Hypancistrus zebra (Siluriformes: Loricariidae) no Rio Xingu, Amazônia Brasileira. Dissertação de mestrado em ecologia aquática e pesca, Universidade Federal do Pará, Belém, Pará. 133 p.

[5] Fearnside, P.M. 1997. Protection of mahogany: A catalytic species in the destruction of rain forests in the American tropics. Environmental Conservation 24: 303-306.

[6] CITES (Convention on International Trade in Endangered Species). 2020. Bigleaf mahogany. CITES, Genebra, Suiça.

[7] MMA (Ministério do Meio Ambiente). 2003. Governo prorroga moratória do mogno. 12 de fevereiro de 2003.

[8] Arima, E.Y., Richard, P., Walker, R. & Caldas, M.M. 2011. Statistical confirmation of indirect land use change in the Brazilian Amazon. Environmental Research Letters 6: art. 024010.

[9] Fearnside, P.M. 2017. Deforestation of the Brazilian Amazon. Oxford Research Encyclopedia of Environmental Science

[10] Richards, P.D., Walker, R. & Arima, E.Y. 2014. Spatially complex land change: The indirect effect of Brazil’s agricultural sector on land use in Amazonia. Global Environmental Change 29: 1-9.

[11] Este texto é uma tradução parcial de: Fearnside, P.M. 2021. The intrinsic value of Amazon biodiversity. Biodiversity and Conservation 30: 1199–1202.

Leia o primeiro texto da série:

O valor intrínseco da biodiversidade amazônica: 1 – Reconhecer o “elefante na sala”

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

Philip Martin Fearnside

É doutor pelo Departamento de Ecologia e Biologia Evolucionária da Universidade de Michigan (EUA) e pesquisador titular do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), em Manaus (AM), onde vive desde 1978. É membro da Academia Brasileira de Ciências. Recebeu o Prêmio Nobel da Paz pelo Painel Intergovernamental para Mudanças Climáticas (IPCC), em 2007. Tem mais de 600 publicações científicas e mais de 500 textos de divulgação de sua autoria que podem ser acessados aqui. https://philip.inpa.gov.br