Parteiras querem liberdade para acompanhar gestantes em maternidades do Amazonas

Por Vandré Fonseca Publicado em: 12/12/2018 às 23:44

O trabalho das parteiras é reconhecido pelo Ministério da Saúde, mas elas afirmam que são impedidas de acompanhar os partos nas unidades de saúde (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Manaus (AM) – Parteiras criaram uma associação para defender o direito de acompanhar gestantes no atendimento em hospitais públicos do Amazonas. A Associação das Parteiras Tradicionais do Estado do Amazonas (Aptam), constituída em setembro deste ano, quer assegurar a adoção de uma política de portas abertas nas maternidades. Segundo as parteiras, ainda existem unidades de saúde onde elas são impedidas de acompanhar o parto das mulheres que assistem. “Queremos o reconhecimento de que nosso trabalho tem valor”, defende a parteira Tábita Santos, presidente da Aptam. Ela atua na comunidade ribeirinha Deus é Rei, que fica a 127 quilômetros da sede do município de Tefé, às margens do Rio Solimões.

Tábita, que ajuda em partos desde a adolescência, quando começou a acompanhar a mãe, que também era parteira, é uma das líderes da mobilização das parteiras que lutam para serem integradas oficialmente no sistema de atendimento às gestantes. “A parturiente já poderia ter no cartão de pré-natal indicando que ela está aos cuidados de uma parteira”, explica ela.

A pauta de reivindicações da Aptam apresenta, também, a necessidade de equipamentos para a atuação dessas mulheres e homens (sim, existem parteiros, segundo a associação). Em suas atividades, eles e elas utilizam luvas, toalhas, tesouras etc. Usam também estetoscópio (instrumento usado para ouvir batimentos cardíacos e respiração). Embora a remuneração não tenha sido incluída como bandeira de luta da categoria, elas querem que esses equipamentos e produtos sejam fornecidos pelo governo.

A Aptam começou a se organizar em junho deste ano, durante o 13º Congresso Internacional da Rede Unida, realizado em Manaus. Mas as discussões já vinham ocorrendo durante as oficinas realizadas pelo Instituto Leônidas e Maria Deane — Fundação Oswaldo Cruz. Em um dos encontros realizado em Manaus, nos dias 20 e 21 de setembro de 2018, também houve uma assembleia de criação da entidade que reúne as parteiras de todos os municípios do Amazonas.

Redução da mortalidade infantil

A parteira Maria Solange Garcia com gestante (Foto: Alberto César Araújo/Amazônia Real)

Parteira é uma ocupação reconhecida pelo governo brasileiro, mas estas mulheres ainda são identificadas como leigas. O Ministério da Saúde também reconhece a atividade. Mas elas afirmam que são impedidas de acompanhar o parto de mulheres que assistem em muitas unidades de saúde.

Mais de 1300 parteiras estão cadastradas na Secretaria de Estado da Saúde do Amazonas (Susam), segundo a coordenadora de Saúde da Mulher no estado, Sandra Cavalcante. Ela admite que esse número não representa nem a metade do total de mulheres e homens que auxiliam as grávidas durante a gestação e partos em todo o estado.

A coordenadora afirma que a Susam reconhece e apoia o trabalho e o papel importante que as parteiras têm na redução da mortalidade de mulheres e de recém-nascidos. Uma das razões desse apoio é porque que as gestantes confiam nelas. Por isso, mesmo onde há equipes de saúde, as mulheres procuram as parteiras.

“Onde existe parteira, mulher só deixa de fazer o pré-natal se não existir nenhuma equipe de saúde. Elas sabem da importância do pré-natal: da mulher ter atendimento. Elas sabem quando a mulher não está bem, pelos conhecimentos tradicionais, elas sabem que precisam encaminhar essas mulheres para uma unidade de saúde”, garante Sandra Cavalcante.

Outro ponto importante, destacado pelos especialistas em saúde, são os cuidados necessários no trabalho com as mulheres que dão à luz. Para o chefe do Laboratório de História, Políticas e Saúde na Amazônia da Fiocruz, Júlio Schweickardt, as parteiras contribuem muito para a redução da violência obstétrica.

“Mesmo com uma política de humanização de parto, ainda há muitos relatos de violência obstétrica, de violência contra a mulher. Não é dizer que o profissional vai violentar, mas o próprio ato hospitalar é uma violência, porque a mulher está submetida a regras e normas do hospital”, diz o professor da Fiocruz.

Júlio Schweickardt salienta que essa avaliação não é uma crítica aos hospitais, mas é preciso considerar que, num momento de fragilidade, em que a pessoa requer uma atenção especial, é melhor que ela esteja com alguém conhecido, que sabe como proceder e o que fazer, e essa pessoa tradicionalmente é uma parteira.

Atendimento de madrugada

Mãos de dona Prazeres, parteira desde os 13 anos de idade em Pernambuco (Foto: Jan Ribeiro/ Secult PE – Fundarpe)

Não importa se é dia ou noite: quando chega a hora, as parteiras estão prontas para atender as grávidas. A parteira indígena da etnia Tikuna, Lourdes Firmino Araújo, 52 anos, conta que teve muito trabalho na véspera da viagem para Manaus, onde participou da assembleia de constituição da Aptam. Ela vive na comunidade Umariaçu 2, em Tabatinga, região de fronteira do Brasil com a Colômbia e Peru.

Ela foi acordada para atender uma mulher que estava com dores de parto antes do dia da viagem. Lourdes relata: “Três horas da madrugada, bateram palmas dizendo que a mulher estava com dores há três dias”, conta a parteira. “Peguei meu kit e cheguei lá. A criança estava torta (fora da posição para nascer em parto normal). Virei um pouco, porque não era muito. Estava com bolsa, por isso a criança não nasceu. Furei a bolsa e disse que ia nascer em pouco tempo.”

Às cinco da manhã, a criança já tinha vindo à luz, com cinco quilos. “Bem gordinho”, descreve Lourdes, que ainda preparou o banho para mulher e o chá com folha de algodão. No final da manhã, após descansar, a parteira ainda passou para ver a criança e, depois de constatar que “estava tudo bem”, ficou tranquila para viajar para Manaus.

A comunidade onde Lourdes vive, Umariaçu 2, é praticamente um bairro da periferia da sede de Tabatinga, onde existe um hospital e alguns médicos. Porém, a gestante preferiu recorrer à parteira por uma questão de confiança. A relação entre as mulheres e as parteiras, principalmente de comunidades distantes ou tradicionais, mantém o ofício vivo e forte dessas mulheres, mesmo quando serviços médicos estão disponíveis.

Antes, durante e depois do parto

Casa de Parto de São Sebastião ( Foto: Rodrigo Nunes/MS)

Ser parteira é mais do que ajudar a mulher na hora do parto, conforme contam as mulheres que conhecem o ofício. A parteira também é conselheira, uma vigilante da saúde do bebê e da mãe. É a pessoa que está ao lado da gestante nos primeiros dias após o parto, quando ela ainda tem dificuldades para as tarefas rotineiras.

A parteira Juscilange Garcia Alves, de 54 anos, mais conhecida como Solange, vive e atende no ramal do Pau-Rosa, zona rural de Manaus. Duas vezes por semana, ela faz a viagem da comunidade até o bairro Educandos, na Zona Sul da capital amazonense, para acompanhar uma paciente especial. A filha dela, Luciana Garcia Alves, de 20 anos, também está grávida e pela primeira vez.

Aos quatro meses de gravidez, espera o nascimento do menino Artur, sob os cuidados e orientações da mãe. Segundo ela, ter uma mãe com quem possa compartilhar a experiência com ela, tem sido importante para quem é grávida de primeira viagem.

“Uma vez, eu liguei chorando. Eu fiquei assustada porque estava produzindo leite durante a gravidez e ela [minha mãe] teve que me acalmar. Contou que era normal”, completa a jovem”.

Então, Solange completa: “Eu gosto de acompanhar desde o início, porque a criança gira. É tipo uma maquinazinha que a cada mês vai rodando. E nesse rodar assim, a criança às vezes enrola o cordão umbilical todinho. E quando a criança está com o cordão umbilical enrolado no pescoço, é complicado. A primeira coisa é tirar aquele cordão”.

A parteira Solange diz que normalmente as mulheres atendidas dão uma contribuição de R$ 200,00 a R$ 250,00, pelos dias que ela passa acompanhando o pós-parto. Mas esse pagamento não é obrigatório e nem sempre as mulheres atendidas têm condições de pagar.

“Às vezes a gente tem dó. Tem gente que é muito humilde. Uma vez fui assistir uma pessoa na vila do Jundiá, em Roraima, na divisa com o Amazonas. Eu falei com as amigas e juntei uma cesta básica e até o dinheiro do gás eu levei, porque não tinha nada para comer”, conta ela.

Partos no Alto Solimões

Oficina Troca de Saberes na Comunidade Indígena Belém do Solimões, no Amazonas (Foto: Divulgação)

Um levantamento, realizado pelo Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) do Alto Solimões, região na fronteira do Brasil com Colômbia e Peru, indica que 84% dos nascimentos registrados em terras indígenas da região ocorrem com auxílio de parteiras. O levantamento foi realizado em 2017, quando nasceram cerca de 2.500 crianças em comunidades indígenas da região.

A responsável técnica pela Saúde da Mulher no Dsei, Cristiane Ferreira da Silva, conta que no Alto Solimões existem 13 polos base de saúde, em sete municípios, que atendem 233 aldeias. Ela destaca que mesmo quando existem equipes médicas ou de saúde, as mulheres optam pelo auxílio das parteiras.

“Todos os polos base têm equipes completas, mas as mulheres sempre têm uma parteira de confiança”, conta Cristiane. “Essa parteira acompanha o pré-natal e, mesmo depois que a criança nasce, ela acompanha a mulher, lava a roupa no rio para essa mãe, faz comida para outras crianças. É alguém de confiança da mulher ali, a partir do momento em que engravida”, completa.

Lourdes Araújo, a parteira Tikuna, diz ter uma situação privilegiada em comparação com muitas colegas de outras regiões do Amazonas.

Em Tabatinga, o hospital tem uma sala de parto indígena, preparada para o trabalho das parteiras. “Tem salinha, tudo completo”, conta a indígena que está com 52 anos. “Lá já tem roupinha, a fralda da mulher, lugar para banhar a criança que nascer”. Lourdes é uma das parteiras que participou da criação da associação das parteiras tradicionais.

Mesmo com o espaço que Lourdes diz ter para trabalhar no sistema de saúde, ela sabe que ainda há muito a fazer em favor das parteiras.

“Achei bom [a criação da associação] porque vai ajudar a nós. No meu povo, pessoas mais velhas que eu ainda estão trabalhando, com 85 anos, sem receber nada em troca”, conta a parteira que aprendeu o ofício pelas mãos da avó, também parteira, que a chamou para ajudar num parto quando Lourdes tinha 13 anos de idade. O primeiro parto foi da minha cunhada, ajudando a avó. Até hoje estou partejando”, conta com alegria.

Tradição passada de mãe para filha

Dona Nazaré Amaral (Foto: Vandré Fonseca/Amazônia Real)

Na adolescência, acompanhando e ajudando a mãe ou avó, é quando as parteiras geralmente se iniciam no ofício. Foi assim com Tábita Santos, presidente da Aptam, com a indígena Lourdes e também com a paraense Nazaré Souza de Amaral, 58 anos, que começou ainda mais cedo do que as colegas, mesmo um tanto contrariada.

Nazaré relata como tudo aconteceu: “Quanto eu tinha 12 anos, minha mãe me chamou para ajudar a segurar a lamparina e desde então eu ajudava nos partos. Depois, a parteira fez curso técnico em Enfermagem e agora atua na comunidade de Lindóia, em Itacoatiara. Não achei que seria minha profissão”.

Foi quando Nazaré veio para o Amazonas, ainda acompanhando a mãe, que ela percebeu que as mulheres precisavam de ajuda. Quando ainda não tinha serviços de saúde em Lindóia, as pessoas a procuravam quando precisavam de cuidados. Não eram só as gestantes, mas até crianças que se machucavam e precisavam de curativos que também recorriam a ela. Nazaré recorda desse tempo em que vivia na comunidade.

“Na minha comunidade, quando alguém se cortava ou alguém se feria, ia pra minha casa por eu gostar de ajudar. E ajudei até ter uma Unidade de Saúde”, lembra a parteira.

“Por causa disso, me colocaram lá para trabalhar como voluntária, mas eu pedi que tivesse uma sala de parto. Pedi a sala, pedi banheiro, coloquei uma maca, medidor, balança para pesar…”. Assim, cita as vitórias que obteve ao longo dos anos em favor do próprio trabalho e também de quem precisa de atendimento.

A parteira Nazaré ainda relembra: “meu primeiro parto, a mulher me pegou e disse: ‘Você mesmo que vai pegar meu filho.” E era uma menina maravilhosa. Acho que não fui eu quem ajudou: foi Deus. Eu nunca tinha pego uma criança. Nunca tinha pego numa tesoura para cortar umbigo, estava assim (ela mostra as mãos tremendo)”. Isso foi no tempo em que a parteira vivia no Mauzinho, bairro da Zona Leste de Manaus.

Projeto de práticas populares

No Amazonas, há o projeto Redes Vivas e Práticas Populares de Saúde: Conhecimento Tradicional das Parteiras e a Educação permanente em Saúde para o Fortalecimento da Rede de Atenção à Saúde da Mulher no Estado do Amazonas, que é desenvolvido pelo Lahpsa da Fiocruz. Esse projeto é realizado em parceria com a Secretaria de Estado de Saúde do Amazonas (Susam) e com apoio financeiro do Ministério da Saúde (MS).

O projeto abrange nove regiões do Amazonas e já reuniu mais de 130 parteiras tradicionais e indígenas em 10 Oficinas de Troca de Saberes, realizadas na capital do estado e cidades do interior. Além de apoio às parteiras, o projeto estuda a relação delas com os serviços de saúde.

O chefe do Lahpsa, Júlio César Schweickardt, avalia a relação entre profissionais de saúde e parteiras: “Quando o sistema de saúde foi se consolidando, com equipes médicos profissionais e operadores, eles foram ocupando os espaços. As parteiras, muitas vezes, foram ignoradas ou até mesmo esquecidas por várias políticas.”

Elas têm apoio, também, do Instituto de Desenvolvimento Sustentável Mamirauá (IDSM), que realiza cursos de capacitação para parteiras tradicionais desde o ano 2000 em Tefé e municípios vizinhos.

O símbolo da associação Aptam é o algodão-roxo (do gênero botânico Gossypium, da família Malvaceae). Essa é uma planta muito utilizada por parteiras para ajudar a gestante na hora do parto. O chá dessa planta (algodão) ajuda a reduzir o sangramento e combate infecções urinárias, segundo o conhecimento tradicional das parteiras. Por isso, a criação da associação com esse símbolo escolhido por elas, vem para fortalecer, ainda mais, as parteiras na promoção da vida das grávidas e de seus filhos em todo o Amazonas.

Veja a galeria de imagens da fotógrafa documentarista Stephanie Pommez* feita no Pará, parte da exposição “Mães de Umbigo”

Fotos do ensaio e exposição "Mães de Umbigo, parteiras da Amazônia" (Stephanie Pommez/Gamma)
Fotos do ensaio e exposição "Mães de Umbigo, parteiras da Amazônia" (Stephanie Pommez/Gamma)
Fotos do ensaio e exposição "Mães de Umbigo, parteiras da Amazônia" (Stephanie Pommez/Gamma)
Fotos do ensaio e exposição "Mães de Umbigo, parteiras da Amazônia" (Stephanie Pommez/Gamma)
Fotos do ensaio e exposição "Mães de Umbigo, parteiras da Amazônia" (Stephanie Pommez/Gamma)
Fotos do ensaio e exposição "Mães de Umbigo, parteiras da Amazônia" (Stephanie Pommez/Gamma)
Fotos do ensaio e exposição "Mães de Umbigo, parteiras da Amazônia" (Stephanie Pommez/Gamma)

*Stephanie Pommez é fotógrafa e cineasta. Viveu a infância e parte da juventude no Brasil, formou-se pela Universidade McGill, em Montreal, e hoje, mora em Nova York. Após anos de trabalho na área humanitária tanto no México quanto nos Estados Unidos, lançou sua carreira de fotógrafa documentarista no final dos anos 90. O enfoque de seu trabalho é o pertencimento – o registro da origem de uma cultura ou do espaço que une pessoas e sua importância na própria identidade. Seus trabalhos foram publicados por em diferentes veículos internacionais e expostos em cidades da França e dos Estados Unidos. Para saber mais, acesse http://www.stephaniepommez.com/index.html

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