Recados de Curador

Por Amazônia Real Publicado em: 31/08/2015 às 17:57

FÁTIMA GUEDES

Sob o sol de verão empoeirado a estrada que liga a Comunidade São José a Perpétuo Socorro do Laguinho, Gleba Vila Amazônia (Parintins/AM) se recolhia sob uma névoa amarronzada confundindo a visibilidade dos transeuntes. Dividindo aquele espaço, Isaías Lopes dos Santos – o Pelexote – em seu característico gingado, acompanhava um grupo de atletas infanto-juvenis dos quais é treinador. Ali mesmo, combinamos o encontro a partir do início da noite para a construção destas memórias.

Isaías é natural da Comunidade da Justina, às margens pródigas do Lago Grande do Salé, município de Juruti Novo, na região Oeste do Estado do Pará. A mãe, Idalzira Cordeiro, Sacaca, parteira, reside na Comunidade São José do Laguinho. O pai, Manoel Gonçalves (falecido) o Urutu, descendia de negros africanos escravizados. A matriz de conhecimentos de Isaías vem da mãe, atualmente com 97, ainda desenvolvendo práticas de cuidados.

Pelexote, hoje, com 64 anos, reside na Comunidade Perpétuo Socorro do Laguinho. É mais um entre outros invisibilizados que oferecem cuidados naturais de saúde a outros tantos esquecidos nesta Amazônia rural. Começou como curador aos 08 anos, quando foi identificado Sacaca por seu Mestre Adolfo – um indígena do Paraná de Parintins de Baixo. Até ali, era um garoto frágil, inseguro… Adolfo apercebendo-se dos “dons” do garoto, iniciara o ritual para lhe fechar o corpo, utilizando defumações, rezas e puxações. Estava preparado para trabalhar na cura através do diálogo com entidades espirituais.

Contou-nos que, desde gitinho era bom de bola. Dominava as peladas no interior. Por essas habilidades e seus traços negros, apelidaram-no Pelé. Aos 30 anos, sofrera um derrame cerebral afetando-lhe os movimentos de uma das pernas e passou a andar como se dançasse xote. Daí, a companheirada de bola e pinga ampliou o agrado – Pelexote.

O derrame veio em consequência do consumo intensivo de carne de porco. Fora desenganado pelos médicos. No entanto, expressa com entusiasmo: – Nem tudo tava perdido. O Inácio, um índio do Andirá, cuidou de mim. Fazia puxação com pimenta malagueta, pimenta do reino, copaíba e vergalho de jacaré ralado na língua de pirarucu. Também me dava, em jejum, um ovo de galinha misturado com ¼ de dente alho. O derrame deixa cólicas no intestino e se não curar o derrame volta. O preparo do ovo e alho tira todo o mal. É muito ruim de gosto, mas tô aqui. Nunca mais adoeci da muléstia.”

O mesmo índio, ensinara-lhe um antídoto contra AVC provocado por carne de porco: – A gente queima um pedaço da carne até virar brasa. Depois faz o pó e o chá. Bota copaíba, banha de jacaré, banha de boto e gergelim num litro de água. Toma todo dia, num 1 mês. Aí, pode tá.

Em meio à conversa, relatara que, através de sonhos, recebe “avisos” sobre jeitos naturais de cura a partir de ervas medicinais. Recebe ainda outros recados de acontecimentos do dia-a-dia. Foi assim que aprendeu tirar a dor provocada por picada de escorpião: – Rezo no lugar da ferrada e emplasto com alho e resina de castanha de caju. É tiro e queda, afirma.

Em seu universo de cura também tira espinha da garganta: benze um copo com água e faz o paciente bebê-la lentamente, enquanto reza sobre a cabeça deste. – Logo, logo a espinha sai. Assegura.

O universo de saberes de Pelexote vai além do que a ciência acadêmica pode prever ou mensurar. Benze erisipela, quebranto e sobre o último tece considerações: – No quebranto, o intestino da criança apodrece. Tem que limpar tudo. O remédio é chá de palha de alho”. E em caso de partos difíceis recorre a pessoas já acometidas por ferradas de arraia, – Basta encostar o pé na barriga e depois na cadeira da mulher que está com puxo difícil. É rapidinho. Argumenta com firmeza.

Durante o desenrolar da conversa, percebemos a ausência de vaidade ou presunção: – Só atendo quando me chamam. Sigo o exemplo de Jesus que pedia pra não contar quando Ele curava.

Expressou pesar sobre a indiferença do sistema oficial de saúde aos seus saberes assim como de outros curadores: – Nós não existe pra eles… Penso como vai ficar o povo do interior quando nós já não viver mais. Médico num mete o pé nessas paragens…

A hora avançada não nos permitiu sorver mais nutrientes daquele manancial ameaçado de extinção. E concluiu com um recado para as novas gerações: – Que meus filhos e outros jovens se interessem em aprender essas coisas. Qualquer dia tô partindo e nos meus não vai tê mais ninguém pra atender quem precisa. Aí a cultura vai morrer com a gente”.

Notas:

Sacaca – Quem nasce com a capacidade ou o dom de dialogar com entidades sobrenaturais e curar a partir das ervas. Os pajés são considerados Sacacas porque já nasceram com esse dom.

Urutu – Cascavel ou Surucucu.

Paraná de Parintins de Baixo – Comunidade Rural da várzea de Parintins.

Fechar o corpo – No universo da curandagem, o curador precisa fechar o próprio corpo para fortalecer seus dons de cura.

Defumações – Prática popular/tradicional de Saúde usada para purificar ambientes e tirar males do corpo e do espírito.

Puxações – O mesmo que massagem.

Desde gitinho – Do parintinês, ainda pequenino.

Companheirada de bola e pinga – O mesmo sentido de “turma do futebol e da cachaça”.

Agrado – Apelido; alcunha.

Andirá – Região do Município de Barreirinha/AM.

Copaíba – Óleo extraído da Copaifera, usado na medicina caboca.

Vergalho de jacaré – Órgão sexual do jacaré depois de ressecado.

Muléstia – O mesmo que doença grave.

Emplasto – Cataplasma.

Puxo difícil – Contração uterina no processo do parto.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã e Militante da Marcha Mundial das Mulheres.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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A agência de jornalismo independente e investigativo Amazônia Real é uma organização sem fins lucrativos, criada por jornalistas mulheres em 20 de outubro de 2013, em Manaus, no Amazonas, Norte do Brasil. Sua missão é fazer jornalismo ético e investigativo, pautado nas questões da Amazônia e de seu povo. A linha editorial é voltada à defesa da democratização da informação, da liberdade de expressão, da liberdade de imprensa e dos direitos humanos. ([email protected])

3 Comentários

Rosemare Alencar disse:

19/04/2021 às 12:52

Gostaria muito de aprender todos esse enssinamentos .

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Christiany Nazaré disse:

04/02/2021 às 15:22

Achei interessante esse relatório amei.. Adoro coisas do meu passado vindo uma orientação de remédios Naturais.
Gratidão

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Maria lucia Porto silva disse:

11/04/2020 às 10:43

Muito bom.ler fiquei muito feliz com os comentários da cura medicinal e dos bens que eles fazem . tenho 46 anos de idade de uns dois anos pra cá comecei a sentir muitas dores nas costas dores mesmos e dessas dores ocorreu um quadro de asma muito forte onde até hoje venho fazendo acompanhamento médico queria nunca mais em minha vida sentir falta de ar. Até na utei fui parar por conta da falta de ar e das dores nas costas engraçado que quando dá as dores nas costas dá tipo uma dormência .se vcs poderem me ajudar vou ficar muito feliz com algum remédio . agora mesmo estou sentindo muitas dores nas costas e queima que só Jesus na causa.meu número (27) 998808002

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