Réquiem para os Pajés

FÁTIMA GUEDES Vez por outra as populações indígenas brasileiras erguem a voz reprimida em protesto a corrupções e negligências de representantes de órgãos que se delegam donos ou tutores dos destinos dos povos nativos. Em mídia nacional, terça-feira, 5 […]

Por Amazônia Real Publicado em: 12/05/2015 às 16:42

Foto de Fátima Guedes

FÁTIMA GUEDES

Vez por outra as populações indígenas brasileiras erguem a voz reprimida em protesto a corrupções e negligências de representantes de órgãos que se delegam donos ou tutores dos destinos dos povos nativos.

Em mídia nacional, terça-feira, 5 de maio, o site Portal Amazônia divulgou mais um levante da Nação Yanomâmi, região de Surucucu, município de Alto Alegre, Boa Vista/RR, contra velhos esquemas de saqueamento, desta vez, sob o comando de Antônio Alves, atual Secretário Especial da Saúde Indígena e de Maria de Jesus Nascimento, coordenadora do Distrito Especial Indígena (DSEI-Y). É sabido que ninguém chora ou reclama se as necessidades fundamentais estão satisfeitas.

A propósito das divulgações, vale rememorar fatos similares envolvendo o DSEI/Parintins, até mesmo como provocação para possíveis intervenções locais.

Eis a questão: em outubro de 2014, na Comunidade “20 Quilos”, Rio Andirá, Município de Barreirinha/AM, realizou-se a I Oficina de Revitalização dos Saberes, Práticas e Cuidados Tradicionais, em atenção à solicitação de Pajé Simão ao DSEI/Parintins, por conta das urgentíssimas necessidades daquela Nação já ameaçada e contaminada pela virulência de um sistema tecnicista, excludente que não reconhece a Ciência das populações tradicionais.

A experiência foi compartilhada com dezessete PAINIS (Parteiras, Benzedores, Consertadores de Desmintiduras ou Pegadores de Ossos e Erveiros) Sateré-Mawé das aldeias Castanhal, Boa Visita, Molongotuba, Bem-Te-Vi, Umirituba, Vila Nova, Kuruatuba, Santo Antônio, Jatuatuba, Fé em Deus; com representantes do Conselho Distrital de Saúde Indígena, da Divisão de Atenção à Saúde Indígena, Programa Saúde na Escola Indígena, Farmácia, Educação Popular e Marcha Mundial das Mulheres.

Foram quatro dias de intensa convivência e aprendizado. Teceram-se ali compromissos coletivos em prol da revitalização de memórias perdidas nas relações de bem-viver dos povos da floresta, objetivando-se assegurar o respeito às formas diferenciadas de cura – caminho para a construção da ‘roda de saúde’ entre o Saber dos povos Indígenas e o modelo Biomédico moderno. Dentre as prioridades documentadas, apontou-se a urgente necessidade de incluir na Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena, as figuras de Pajés, Parteiras, Erveiros e Puxadores de Ossos buscando-se melhor interface nos atendimentos e valorização dos saberes étnico-culturais.

Como resultado da Oficina, documentaram-se encaminhamentos via Carta Aberta. Segundo o acordado, a Carta teria ampla divulgação e entraria no planejamento anual da Saúde Indígena. Seguem na íntegra:

Reconhecimento e incorporação de Saberes e Cuidados Tradicionais de PAINIS (Parteiras, Benzedores, Consertador de Desmintiduras e Erveiros), no Sistema de Saúde;
Incentivo, orientação e capacitação técnica para cultivo de plantações diferenciadas das culturas tipicamente indígenas assim como criação de animais, tendo em vista valorizar as espécies de costumes tradicionais;
Realização da II Oficina de Saberes, Cuidados e Práticas Tradicionais, em marco de 2015, com a participação de Técnicos envolvidos na Saúde Indígena e OPISMA;
Criação do “Canteiro da Semente” e Viveiros Comunitários (em polos base) com apoio de técnicos e órgãos públicos afins, como estratégia de recuperação de sementes nativas/cabocas e ao mesmo tempo, arborização das áreas degradadas com espécies arbóreas e medicinais em contribuição à soberania alimentar das populações tradicionais;
Incorporação das Mulheres Indígenas como Agentes de Saúde Indígena – AIS, tendo em vista as exigências relativas às especificidades de gênero.

Assinale-se: nada se cumpriu. Desconhecem-se os motivos do silenciamento. Todo o esforço, reivindicações assim como os investimentos materiais perderam-se no dito pelo não dito; no feito pelo não feito. Da parte do Secretário denunciado pelos Yanomâmi nem uma resposta, apesar de ter sido provocado, na época, a tomar providências.

Verifica-se que, dentre os males de nossa prostituída república, omissão e prevaricação constituem-se o câncer destrutivo para qualquer tentativa de desenvolvimento humano. Logo, é impossível ‘deixar pra lá’ tais omissões.

O atual Governo que se desafia superar desigualdades, vencer preconceitos e racismos não pode permitir que atitudes mesquinhas, arbitrárias e descomprometidas de gestores viciados abortem necessidades e construções democráticas.

Por fim, as possibilidades em direção à solidariedade universal exige de seus agentes políticos determinação para transgredir as transgressões institucionais e efetivar a Justiça Social começando pela Saúde – “direito de todos e dever do Estado”.

Notas

Sapó – Ritual Sateré-Mawé regado similar às rodas de conversa onde se discutem e planejam ações. Durante o ritual, toma-se guaraná ralado em água para manter os participantes ativos e estimulaos.

Pegadores de Ossos – O mesmo que Consertadores de Desmintiduras; quem cuida de contusões, deslocamento de ossos, fraturas e realiza massagens.

Sateré-Mawé – Nação indígena do Médio Amazonas na divisa com o Pará. Sateré (lagarta de fogo, clã mais importante dentre os que compõem essa sociedade; indica, tradicionalmente, a linha sucessória dos tuxauas – palavra que designa chefe político); Mawé (papagaio inteligente e curioso).

Comunidade “20 Quilos” – A denominação vem em referência aos 20 quilos de guaraná, primeira produção daquela comunidade exportada para a Europa.

Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Graduada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). É também fundadora da Associação de Mulheres de Parintins e da Articulação Parintins Cidadã.

Reportagem Noticiosa

Sobre a matéria

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